#14 Confrontos | Paredes riscadas podem falar?

Imagem – Arquivo Pessoal | Arte – Rodrigo Sarmento
A partir do crescimento das cidades, nossa história registra uma manifestação guiada pelos jatos de tinta nas paredes dos prédios e transportes públicos. Ela ocupa as ruas do mundo, faz-se transitória nos nossos olhos, mas, ainda assim, irremovível. Recusados. Discriminados. Nascidos do impulso de um confronto direto com o sistema, o graffiti e o pixo distorcem nossos horizontes éticos-estéticos e, principalmente, nossos conceitos em torno de ‘arte’.
Em Recife, ao lado do Cinema São Luís, encontramos Johny C (ou Johny Cavalcanti), movimentando o único graffiti shop do estado de Pernambuco em funcionamento. Defendendo que ‘quanto mais repressão existe, mais a pixação/graffiti ocupa as ruas’, Johnny acredita que linguagens como o graffiti e o pixo são linhas de frente no combate a governos totalitários, uma forma prática de afetar o sistema, mostrando que também estão vulneráveis à uma sociedade civil organizada.
No dossiê Confrontos, partimos do trabalho deste artista visual para perceber como as manifestações do graffiti e do pixo se desenvolvem no limiar de conflitos externos e internos – ora reconhecida como parte criativa da reflexão social, ora condenada pelos impactos estéticos que provoca. Confira essa entrevista conduzida por João Guilherme de Paula.
Como começou e vem se desenvolvendo a tua relação com o pixo e com o graffiti?
Eu não tive a oportunidade de sair pra pixar com spray quando era mais novo, exceto com marcadores permanentes a base de água ou solvente, ou sementes de alguma fruta grande e escura (risos). Quando consegui ter autonomia e segurança pra isso, já tinha encontrado o desenho e referências de graffitis mais elaborados em revistas, blogs etc.
Então, a minha relação com o pixo parte do lugar da admiração e do estudo. Desde a infância, todo tipo de inscrição/escrita feita nos muros ou em qualquer superficie me chamava atenção. É uma ligação ancestral, como uma criança que ouve uma música e mexe o corpo.
Para muita gente de periferia, a pixação, para além do ato político genuíno, é também uma porta de acesso para conhecer o caminho das artes plásticas-visuais – e no meu caso não foi diferente. Antes de conhecer a definição ou a vivência do graffiti propagado mundialmente (esse que tem raízes nova-iorquinas e de outros lugares do mundo), eu vivia a pixação brasileira, pernambucana, regional que se mostrava nos muros do meu bairro – Afogados.
Hoje, consigo perceber as similaridades que existem nessas vivências, apesar das distâncias geográficas. São as mesmas intenções, advindas de pessoas que estão às margens, sendo escanteados e escanteadas, apagados e apagadas pelo descaso das iniciativas públicas e privadas. Assim como no Brooklin, a juventude se expressava e demarcava seus territórios como uma forma de pertencimento àquele lugar, de fazer com que aqueles que os oprimiam (governo, polícia, especulação imobiliária) pudessem ver que ali crescia uma manifestação de quem já ocupava aquele lugar.
Aqui não era, nem é diferente até hoje: é ocupar para além do movimento de morar em um lugar. Ocupar com um codinome, que está atrelado a um grupo de pessoas, um coletivo (as crews) que tem como missão propagar e expandir esse território. É um ato político que eu nem me dava conta que era arte.
A diferença é que aquilo que acontece em outros lugares, principalmente num país imperialista, acaba se tornando uma cultura mundial. Cultura hip hop nada mais é que cultura periférica e cada periferia vai ter uma expressão singular em qualquer lugar do mundo. E quando o sistema não consegue extinguir essas manifestações, cria aparatos para que essa expressão exista somente a partir de uma autorização e aborde temas desprovidos de questionamentos, sirva ao mercado, gere impostos etc. É uma domesticação que silencia ou manipula o discurso periférico para não formar opinião, pois se trata de uma forma do sistema se reinventar e continuar oprimindo

Johny C em Oficina de Graffiti no evento Ocupe Design | Imagem – Ocupe Design | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem colorida de um rapaz de perfil no lado direito da imagem. Ele possui cabelos negros e barba comprida, está em primeiro plano com o braço direito esticado para frente e usa uma camisa cinza. Ao fundo, uma parede branca com alguns graffitis nas cores bordô e azul.
Você praticou graffiti e pixo desde a adolescência, depois passou a trabalhar com a arte de rua e resolveu entrar na universidade, mais especificamente em Design Gráfico. Para você, a academia funcionou como um lugar de contribuição ou de confronto com as tuas práticas artísticas?
Sou muito grato por conseguir ter uma formação acadêmica, e ainda mais por ter conhecido o Design. No início, precisei me acostumar com as teorias e as leituras sem que soubesse muito onde elas poderiam influenciar na minha prática artística. Depois, comecei a entender que o conhecimento estava chegando por outro caminho e que trazia sentido para aquilo que eu já executava, o que me fez perceber o desenho para além dos efeitos.
Esse estudo me permitiu perceber também que tudo que existe possui um desenho – ainda que inconsciente. Quando tive a consciência de que o desenho é inerente à vida na terra, passei a reconhecer o desenho das coisas ao meu redor, perdendo o julgamento do ‘bonito’ ou ‘feio’ e passando a analisar com outros valores e criando novas perspectivas.
Por ter sido um curso tecnólogo, tinha um foco no mercado de trabalho, mas ainda havia muito respeito com a linha de atuação que cada aluno ia manifestando durante o curso. No meu caso, queria aperfeiçoar minhas criações, fortalecer os projetos de que faço parte e me munir de conhecimentos de outra ordem que não fosse a prática autodidata. Design gráfico é uma formação que me fez passear por diversas técnicas e criar uma espécie de repertório e ferramentas para comunicar melhor minha ideia sobre determinado assunto.
Aprendi também como me colocar no lugar do outro e a encontrar um ponto em comum na ideia sugerida por um cliente, por exemplo. Onde aquilo me toca? Onde dialoga com o que acredito? A demanda, seja de onde ela vier, é sua mestra. Provocada por um briefing (documento/momento que reúne informações para desenvolver um projeto), a demanda te ensina a criar seu próprio repertório de técnicas, e sua poética (método, traço, cores, temáticas).

Graffiti realizado num prédio abandonado no bairro da Várzea, Recife/PE | Imagem – Rafaella Ribeiro | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem colorida de um homem pintando um graffiti em uma parede cinza. Ele está do lado direito do muro e usa uma escada para subir e pintar; no muro, um rosto feminino na cor roxa e várias flores em cores distintas.
Como você vê o acontecimento do graffiti e do pixo nas ruas do Recife na atualidade?
Nos últimos dois anos, percebo que, apesar das constantes repressões e do atual desgoverno, a cena da pixação volta a se fortalecer – pelo menos aqui em Recife. Na realidade, essa relação inversamente proporcional é um dos combustíveis para ela acontecer. Quanto mais repressão existe, mais a pixação/graffiti ocupa as ruas. Essas linguagens são linhas de frente no combate a governos totalitários, uma forma prática de afetar o sistema, mostrando que também estão vulneráveis à uma sociedade civil organizada.
Na minha perspectiva, as movimentações sociopolíticas das maiorias minorizadas emergem a partir de um sentimento da urgência. Urgência para resgatar a justiça e a equidade e garantir os direitos e redistribuição dos recursos. Princípios que garantem uma vida digna. Nesse sentido mais social, pixação ou graffiti funcionam como o meio e o resultado visual mais instantâneos dessa indignação.
Por uma perspectiva mais artística da cena graffiti, destacaria as diferenças entre as gerações, pois observo que a geração passada hoje se expõe mais enquanto artistas do Graffiti, e talvez tenha atuado cada vez menos enquanto escritores e escritoras. Na cena graffiti/pixação, usa-se o termo ‘escritores’ e/ou ‘escritoras’ para designar as pessoas que praticam essa manifestação política sem, necessariamente, ter uma intenção de se exercer como expressão artística.
Ao meu ver, esse termo traduz quem se identifica mais com a vertente da pixação, das tags e/ou das inscrições mais rápidas com teor diretamente político. Ao longo dos anos, esse sujeito pode assumir, cada vez mais, o lugar de artista e cria sua poética, ocupando outros lugares antes não viáveis quando se é apenas escritor/escritora de graffiti. Vejo como uma transmutação inerente à idade e a perspectivas de vida, mas confesso que estou generalizando um pouco.
O desejo de ser reconhecido ou reconhecida como artista e viver da sua arte termina trazendo uma cobrança incoerente ao tempo de desenvolvimento e de estudo que a pessoa tem com as diversas linguagens artísticas. Pois, anteriormente, para uma pessoa que chegava à arte através do graffiti, levava um tempo para experimentar linguagens como a tatuagem, a pintura em telas, esculturas, dentre outras. Porém, hoje, vivemos um momento de novas possibilidades e campos de atuação, em que escritores e escritoras vivenciam esse acesso de uma forma diferente.
Sobre as políticas públicas, confesso que hoje temos mais abertura para promover uma conscientização da arte da periferia, mas, infelizmente, a burocracia ainda não permite termos uma maior intimidade com as secretarias ou os órgãos públicos.
Recife é pequena geograficamente, porém enorme em seu poder de conexão entre as pessoas, pois existe aqui uma cena muito conectada, em que todos estão aprendendo uns com os outros e umas com as outras. É bonito ver isso! Estamos criando uma cultura periférica mais consciente para que nosso movimento seja mais sadio: as gerações e as linguagens se entrelaçam, discutem, produzem, se abraçam e, às vezes, se afastam também.
Nesse sentido, o confronto é vivenciado pelo sentido mais belo da palavra: estar face a face.. A beleza do movimento marginal (leia-se daqueles que estão à margem da abundância) aparece quando encontra um terreno receptivo, pois não necessita mais confrontar para garantir um lugar de fala, da livre expressão das ideias, do que somos, do que acreditamos – e a prática artística como direito incentivado.
Mural ‘Engenho da Opressão’ realizado no Compaz da Avenida Caxangá em Recife/PE | Imagem – Felipe Correia | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem colorida um mural em uma parede com um rosto feminino nas cores verde, laranja e marrom. Diante desse mural, um homem com cabelos negros e barba comprida e usando um macacão laranja.
Existem vários relatos de grafiteiros e grafiteiras que iniciam com o pixo e, em seguida, passam para o graffiti e/ou muralismo na tentativa de amenizar esse confronto com o estado e buscar condições mais favoráveis para a sua produção artística. Como isso aconteceu com o teu trabalho?
As diferenças que as nomenclaturas trazem às linguagens acabam, de fato, criando mundos e propostas diferentes para justificar essa diferença e pertencimento – para mim, o pixo e graffiti são coisas da mesma ordem.
Toda escrita é uma tag (assinatura/marcação), mas nem toda tag se apresenta esteticamente como pixação; já o graffiti é o termo abrangente para todo tipo de inscrição. Porém, hoje, o graffiti se expressa para além das tags – com formas e preenchimentos cada vez mais elaborados – e ocupa um lugar de arte contemporânea que, antes, não era ocupado. Entretanto, a mídia fortalece essa diferença a fim de marginalizar as inscrições de teor mais político e apresenta os graffitis/murais por uma perspectiva desatrelada desse movimento politizado.
Hoje, me questiono até onde a arte que faço pode ser denominada graffiti e tenho estudado recentemente sobre o muralismo – inclusive para compreender o que faz uma pintura ser considerada um ‘mural’. Por enquanto, uso a seguinte analogia: graffiti é o título do livro que te chama atenção e o mural seria o próprio livro, onde você pode se aprofundar naquela temática. Num mural, você está muito mais pintando do que fazendo uma inscrição, pois nem todx artista que faz mural faz graffiti. É como pintar uma tela, só que numa larga escala e no meio da rua.
Apesar de transmitir uma mensagem, é algo que, dependendo da proporção, exige uma maior elaboração, um projeto de como fazer, com outro tempo, outros equipamentos e outra estrutura para sua realização – diferente de como o graffiti costuma se apresentar. A mensagem do graffiti é mais curta, mais rápida; é o titulo do livro que você vê na estante, mas não permite que você compreenda de forma aprofundada aquele conteúdo. O mural é a possibilidade de você apresentar um conteúdo mais denso e do espectador acessar isso com o tempo necessário.
Eu já experimentei e vivenciei muita coisa no graffiti e de forma muito intensa. Participei e sou participante de diversos coletivos, tive/tenho ateliê colaborativo, trabalhei em uma graffiti shop e, até hoje, mantenho uma; também produzi encontros, festivais e ações socioeducativas e contribuí para confecção de linha de sprays. Enfim, o caminho sustentável para sobreviver da minha arte foi abraçar esse turbilhão de possibilidades que me trouxeram muita bagagem e me abriram portas para acessar outras coisas. Foi a minha escola.
Então, confesso que o graffiti hoje tem um lugar diferente pra mim: um lugar de gratidão, pois, a partir dessa linguagem, me reconheci artista. Hoje, preciso produzir com mais tempo, tenho questões mais profundas do meu ser pra trazer no meu trabalho, buscando ser menos superficial, trazendo um conteúdo que possam promover cura, me transformar e tocar as pessoas, ressignificar espaços. Agora, consigo perceber que minha arte é aquilo que minha voz não consegue falar com a boca

Graffiti de Banksy cobrindo o de Robbo | Imagem – Autor Desconhecido | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem colorida de graffiti na parede, que retrata um pintor com macacão branco cobre com tinta cinza outro graffiti nas cores preta, vermelha e amarela.
Nessa imagem, vemos a obra de graffiti mais antiga de King Robbo em Londres no ano de 1985 sendo sobreposta por Banksy – clássica concorrência que gerou o retorno do Robbo às ruas para disputar o espaço com o colega (leia mais sobre essa história AQUI). Tomando esse conflito como ponto de partida, como você percebe os atritos internos e externos que as práticas do pixo e do graffiti provocam no mercado local de arte e, principalmente, nas formas de entender arte?
Essas relações de desapego e efemeridade que o pixo/graffiti trazem no discurso de quem reflete sobre seu fazer nem sempre são vivenciados positivamente pela cena como um todo. Às vezes, você pinta em lugares sabendo que são mais efêmeros e exercita mais o desapego; outras vezes, você faz uma pintura que imagina que vai durar anos em um lugar e, no outro dia, algo acontece e lhe mostra o contrário.
Porém, as vivências mudam o tempo todo de acordo com as regras de convivência de cada lugar. Talvez a chave esteja em observar o que esse acontecimento gera em nós e saber como lidar com o espaço público e com as suas intervenções, sejam elas pelas intempéries do tempo ou promovidas por algum sujeito. Quem eu sou quando o outro se torna algo que não é aquilo que eu espero? Além disso, quem sou eu para esperar isso ou aquilo desse outro?
No momento em que um confronto como esse entre Banksy e Robbo acontece à minha arte, percebo como um exercício importante para mim como artista me colocar no lugar de quem não se vê artista. Como posso intervir no lugar que também é do outro e não aceitar que alguém intervenha naquilo que é meu, quando minha arte também está em um lugar que também pertence a um outro? Isso muda minha perspectiva de intervenção, muda a forma como me coloco no mundo e ilumina com mais propriedade o motivo pelo qual estou fazendo aquilo.
Entendendo teu trabalho como manifestação performática, como você percebe as obras de pixação/graffiti como gestos de violência e resistência a valores da sociedade e da própria arte?
A performance na pixação/graffiti chega a ser tão sincera e espontânea que não se percebe performando, pois se está concentrado muito mais no resultado visual que ela proporciona do que nela em si. Alguém como uma câmera, uma poesia, vai conseguir testificar isso com mais propriedade do que nós mesmos que pintamos. É mais fácil alguém nos ler para além do que está sendo pintando ali no momento. Em outros momentos, a performance vai ser consciente, intencional, e se torna também resultado do trabalho bem como a parte plástica sobre a superfície.
Essa sensação de performance também depende bastante do local e da situação em que se está pintando: por exemplo, em um evento ou projeto que o público contempla o artista produzindo na hora, a performance tem um peso similar ao conteúdo da peça. A presença e movimentação no ato da pintura faz parte de um todo. Eu atuo conscientemente quando estou nesse lugar: faço algo mais livre, e deixo que a pintura me revele no final o que ela queria me falar naquele momento. Deixo a pintura livre enquanto performo.
Estamos sendo atacados, violentados, todos os dias, de diversas formas. Nossa ação é também uma reação. Reações visuais que vão desde pequenas e rápidas inscrições ou colagens realizadas às espreitas, até ações arte-visuais coletivas a espaços públicos abandonados ou não, que por ora, podem, tanto colaborar para uma revitalização de um espaço, ou desconstruir a imagem de um lugar opressor e causar ‘prejuízos’ a bens materiais.
Ainda assim, agimos na esperança de que esses prejuízos materiais sejam vistos irrelevantes aos danos causados diretamente ao povo todos os dias. No mais, podem trazer visibilidade para essa urgência. Na arte, o graffiti e a pixação questionam suas próprias definições e termos utilizados para defender essas linguagens enquanto arte.
Referências
Leia mais sobre o assunto AQUI
Graffiti Wars (Banksy vs Robbo) – assista ao filme de Jane Preston AQUI