Crítica – Feedback | Memórias de um corpo histórico e elétrico
Ouça essa notícia
|
Imagem – Daniel Pina
Por Sicillia Cabral
Licenciada em Dança (UFPE), pesquisadora das danças orientais, dançarina e arte educadora
Segundo o dicionário, Feedback é um termo que se refere à reação a um estímulo, uma resposta, retorno. Poucas palavras poderiam contemplar tão profundamente as sensações que a performance de André Braga, com direção artística do mesmo, junto a Cláudia Figueiredo, é capaz de provocar em quem o assiste.
Com produção de Ana Carvalhosa e Cláudia Santos junto a CLR – Central Elétrica, o trabalho baseia-se na “busca por novas gramáticas de sensibilidade, da inteligência selvagem dos corpos, do corpo chão da terra que reflete memórias ancestrais e desconhecidas”. E todas essas sensações quase que ancestrais já são evocadas no momento em que o espectador adentra o ambiente, sendo recebido por um perfume suave de incenso que, aos poucos, prepara nossos sentidos para um relaxamento que nunca acontece.
A construção do ambiente desarma o espectador, que se vê absorvido pelo teor contemplativo inicial e é pego de surpresa pelos sons intensos e até mesmo estridentes que conduzem a performance do início ao fim, exceto por breves momentos de respiro. Definitivamente, não é um trabalho indicado para pessoas com sensibilidade sonora, mas tal característica não é demérito, e sim uma construção bem pensada que cria da desordem sonora uma melodia caótica e única, produzida pelo contato de microfones pelo corpo do intérprete e em outras superfícies. Tal composição é criada graças aos esforços conjuntos do dançarino com João Sardanas, responsável pelo som ao vivo, fazendo com que cada performance seja única e se fixe de forma peculiar na memória de cada um presente. Cada espectador presente, assim, contribui com a criação apenas por escolher estar naquele ambiente, reagindo, refletindo e emitindo sons que constroem a dramaturgia auditiva da cena.
Falando em “memórias ancestrais e desconhecidas”, não se pode negar que esse é um dos combustíveis mais potentes e conectores que Feedback pode oferecer. Quando li o release do espetáculo, disponível no site do TREMA! festival, me questionei que memórias poderíamos compartilhar, estando eu e os criadores de Feedback, portugueses, a um oceano de distância e atravessados por uma relação anterior a nós mesmos, colonos e colonizados, algo que por si só já me desperta certo receio, sou obriga a confessar. É inegável que todo trabalho artístico é atravessado por narrativas, e um corpo em cena transmite as narrativas de seu meio, mesmo que não seja sua intenção trazer tais elementos e principalmente quando discutimos o tópico memória.
Pensar na relação entre o Brasil e Portugal, ainda hoje, é revirar um baú repleto de cacos de vidro com as mãos nuas, e normalmente nós, do Sul do mundo, somos quem mais saímos feridos nessa empreitada rumo à descolonização. Mas, para minha surpresa, os movimentos e sons intensos ainda eram capazes de transmitir dramaticidade e criar conexões profundas com memórias afetivas e saudades que existem dentro de todos nós. Isto acontece especialmente quando estes movimentos e sons são usados para conduzir o público a momentos de contemplação silenciosa, cortados apenas por pequenos monólogos, que acabavam por compor uma nova sinfonia tão caótica quanto a natureza humana. Tudo isso regado a uma iluminação (por Cárin Geada), igualmente repleta de personalidade e intensidade, aquecendo e esfriando o ambiente e criando ritmo para a cena, conduzindo os olhares de forma precisa e, ao mesmo tempo, sutil.
Podemos também nos atentar à presença das pedras, que sempre estão em cena de forma discreta ou dividindo o protagonismo com o intérprete, mas que são bases para diversos desenhos criados com o corpo e com o som, servindo também de conexão com essa natureza ancestral que o trabalho se propõem a recordar.
Feedback é um retorno às raízes de um corpo que transpõe fronteiras e cria ao seu redor um mar de desenhos e formas intensas, que conduz o espectador, entre a agonia e a contemplação por um caminho tortuoso e único a cada performance. Este percurso recorda a todos a potência de um corpo elétrico e presente, atravessado por memórias e conflitos, escrevendo histórias de vida e morte e relembrando, em meio ao cenário distópico no qual existimos hoje, que ainda existem semelhanças entre pessoas com vivências tão distintas. A saudade, palavra tão única da língua portuguesa seja PT ou BR, é um sentimento presente em todo o espetáculo e que conduz os espectadores a uma viagem ora contemplativa, ora cacofônica, mas que vale a pena.
Pensar as relações coloniais e a perspectiva quase biográfica em que a narrativa é construída, no fim, me faz imaginar que, talvez, as feridas coloniais que ainda nos afastam poderiam ser aos poucos contornadas e apaziguadas se fossemos tão humanos na vida quanto o intérprete foi em cena. Um pedido de desculpas do Estado português aos povos africanos escravizados e trazidos à força para estas terras Tupiniquins, como o escritor Laurentino Gomes bem ressaltou em sua declaração ao portal português Visão, também cairia bem, mas dadas as ameaças recebidas por ele vindas de alguns de nossos “amigos” portugueses, acredito que parte da população ainda não está preparada para essa conversa.
Imagina se eles descobrirem que devem desculpas aos sobreviventes do massacre promovido por seus ancestrais aos povos originários do Brasil, às mulheres brasileiras que sofrem com a xenofobia e o machismo em terras lusitanas até hoje, aos meus avós, que foram seguidos por seguranças em uma loja de souvenirs em Nazaré por terem o sotaque brasileiro… Eu poderia ficar por horas a fio citando casos e mais casos, porém, como disse anteriormente, muitos não estão prontos, e nem mesmo dispostos, a ter essa conversa conosco. Peguei-me imaginando como seria o Feedback à brasileira, e acredito que algumas de nossas memórias ancestrais não nos permitiriam tantos momentos de contemplação.