Crítica – Jogo da Guerra (Exterior 1) | Vamos pensar em formas de artivismo?

Imagem – Divulgação
Por Bruno Siqueira
Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
O tema “O Teatro e a Cidade”, que orientou a curadoria da quinta edição do Transborda/Usina Teatral deste ano, pelo SESC-Santa Rita/PE, reverbera o eixo de discussão de alguns ciclos de debate realizados em território nacional e internacional, como aconteceu no Centro Cultural São Paulo (SP), em 2001, cujo encontro internacional resultou na publicação de um livro homônimo, com ensaios de diversos pensadores[1]. Também foi o tema do XII Festival Recife do Teatro Nacional, em 2009, com curadoria de Kil Abreu. Isso demonstra que a relação entre os dois elementos, teatro e cidade, ainda rende muita discussão. Neste ano, o tema foi muito oportuno pelo viés político assumido pelo SESC/PE: a (des)construção dos espaços cênicos/urbanos na cena contemporânea.
Uma das atrações foi o Jogo da Guerra, do Erro Grupo, coletivo de teatro catarinense que persegue uma arte como intervenção política no cotidiano das pessoas. Esse trabalho, de 2018, consiste num tríptico: o jogo se divide em três espaços de uma mesma rua, resultando em três vivências e perspectivas simultâneas e distintas. Em Recife, a peça aconteceu num único dia e essa rua foi a da Imperatriz, sendo um espaço interno – o Sindicato dos Empregados no Comércio do Recife – e dois externos – um, Exterior A, entre a Rua da Aurora e a Rua da Imperatriz; outro, Exterior 1, entre a Rua Sete de Setembro e a da Imperatriz.
Esta crônica assume, portanto, sua limitação de perspectiva, uma vez que, em decorrência da simultaneidade dos acontecimentos num único dia de apresentação, só pude compor a cena e meu olhar crítico a partir do grupo que se dirigiu para o encontro entre a Rua da Imperatriz e a Rua Sete de Setembro. Infelizmente, o crítico não pôde se dividir em três[2]. No meu ponto de vista, o ideal seria se pudesse acompanhar o trabalho por, no mínimo, três dias seguidos.
No entanto, se essas foram as condições, é do meu lugar como espect-ator que me dou o direito de falar e de fazer meu depoimento. E uso o termo espect-ator com o sentido em que o criou Augusto Boal, uma das inspirações do Erro Grupo. Para além da linha divisória entre performers e espectadores, o público é convidado a participar das ações cênicas.

‘Jogo da Guerra’, do ERRO Grupo (SC) | Imagem – Divulgação | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem em preto e branco em um centro urbano, em que duas mulheres brancas carregam um saco de lixo cheio em uma calçada, em meio a uma diversidade de passantes. Ao fundo, carros diversos parados em uma faixa de pedestres.
A proposta do trabalho se insere na esteira do artivismo, termo ainda conceitualmente pouco instável, que articula, de forma explícita, a relação entre arte e ativismo político, estimulando o potencial da arte como ato de resistência e de subversão. A intenção foi boa, mas a performance do jogo cênico como guerrilha urbana, no nicho em que eu me encontrava, junto ao coletivo, fracassou.
Duas atrizes/performers/personagens (confusão proposital?) e um ator/performer/personagem (idem) organizaram o grupo numa roda e nos perguntaram o que estávamos fazendo e o que buscávamos naquele lugar. Chegaram numa ansiedade de quem está em guerra, precisando tomar alguma decisão e agir sobre a realidade que nos circunda. Teatro de guerrilha[3]. Propuseram realizar uma ação performativa – insistindo sempre na necessidade de poetizar essa ação – para agir sobre um problema do entorno, do qual os espect-atores decidiriam a escolha. A necessidade de pensar politicamente o espaço urbano era constantemente lembrado pelos condutores.
Em nosso grupo foram indicados três espaços: a casa abandonada, em que nasceu Clarice Lispector, na Praça Maciel Pinheiro; o Teatro do Parque, na Rua do Hospício, fechado há quase dez anos para uma reforma que ainda não se efetivou; o Banco Santander, que fica exatamente no ponto de encontro do terceiro espaço com que jogou o Erro Grupo, no qual nos encontrávamos.
Ainda que os condutores insistissem para ficarmos diante do Banco Santander, a maioria optou pela casa abandonada de Clarice Lispector. Todos seguiram para a Praça Maciel Pinheiro e, diante da casa em ruína, esses condutores nos perguntaram o que poderíamos fazer para manifestar nosso desejo de que a cidade ouvisse nosso apelo para que a casa fosse restaurada. Alguns espect-atores se manifestaram, gritando, timidamente, palavras de ordem e pixando a fachada da casa.
E daí?
A performance estava “morna” e os condutores procuravam tensioná-la, dividindo-se entre as que propuseram voltar à frente do banco e um performer que, à maneira de um teatro invisível, denunciou as ações políticas de uma esquerda “paz e amor”, propondo uma ação mais contundente, como fabricar coquetel molotov. Ele segurava uma panela de pressão, na qual colocou gasolina; quando ia colocando nela os pregos, foi interrompido por uma das performers, que lhe bateu na mão, fazendo caírem os pregos no chão. Ela enfatizou para o público que nem todo o grupo concordava com aquela opção.
Mas e daí?
No caminho de volta, elas ainda conclamavam a participação do público, todavia já consideravam a possibilidade do fracasso da ação. Sim, o fracasso de construirmos uma coletividade, um nós em ação. Diante do Banco Santander, elas denunciaram os banqueiros como agentes centrais do capitalismo desumano e, num ritual quase xamânico, com fogo aceso no interior da panela de pressão, dão fim à performance.
Como artivismo, vejo que o trabalho gerou um efeito ambíguo. Ele fracassou, na medida em que a condução dos performers não conseguiu a adesão calorosa do público, o qual, tímido, ficou sem saber bem o que fazer. Ao mesmo tempo, nos faz pensar: não teriam os performers mostrado que somos também responsáveis pelo fracasso, uma vez que estávamos imersos no jogo? Sendo esse o caso, lanço uma provocação: será que todos ali presentes estavam a fim de atuar/performar no jogo com ações diretas?

‘Jogo da Guerra’, do ERRO Grupo (SC) | Imagem – Mariana Rotili | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem colorida de um centro urbano à noite, em que se vê um grupo de pessoas brancas com roupas pretas de frente para nós. Em primeiro plano, um sujeito grita a plenos pulmões e, ao fundo, um sujeito segura um conjunto de papeis em branco acima da cabeça ladeado por outras pessoas com maquiagem de guerra.
Há uma diferença grande entre uma guerrilha urbana de fato e um jogo que procura performar uma guerrilha. A forma como os performers nos abordaram já nos colocava compulsoriamente no jogo. No meu grupo, percebi que todos procuraram cooperar, mas nem todos pareciam estar dispostos a performar. Diria que a maioria não estava. Por várias razões. Considere-se que era um grupo composto majoritariamente por pessoas ligadas ao teatro, o que, em princípio, seria um indicativo de maior disposição para performar.
Crítico e continuador do maior legado de seu pai, o Teatro do Oprimido (TO), Julian Boal nos permite perceber que, assim como o distanciamento brechtiano perdeu, hoje, muito de sua força política, a participação do espectador na cena tornou-se também banalizada e suavizada[4]. A reflexão que Rancière tece sobre o espectador emancipado mostra que a simples voz ativa do espectador pode estar longe da emancipação intelectual. Pode repetir formas e estruturas de pensamento cristalizadas e pouco revolucionárias. Quando se pensa em tirar o espectador de sua passividade e torná-lo ativo, ficam as perguntas: de que passividade está se falando?[5] A atividade se dá tão somente em tornar-se ator, no caso do teatro? A proposta de Augusto Boal do espect-ator pode ser utilizada tal e qual foi pensada no contexto da América Latina da década de 1970, ou precisamos repensar suas formas e fazer avançar a luta política do teatro de Boal, em sua relação complexa com o mundo contemporâneo?
Mesmo que a falta de disposição para agir politicamente seja um sintoma de nossos tempos e uma das razões do fracasso do jogo, faltou, a meu ver, uma maior habilidade dos performers na condução desse jogo. Afinal, o que é agir politicamente? Se a guerrilha urbana é uma opção possivelmente mais eficiente no estado atual das coisas, parece que foi fazendo confundir ficção com realidade que o grupo não conseguiu convencer o público. Guerrilha urbana naquela hora e lugar? Com que motivações diretas? Esperava-se fazer isso em 2h, tempo estimado da performance? Como fazer em 2h aquilo que não estamos conseguindo fazer na nossa realidade factual há alguns anos? Não terão sido ambiciosos demais os propósitos do grupo? E, mesmo tendo o público timidamente cooperado, não senti em mim e nos demais uma credibilidade nessa experiência particular de artivismo.
Talvez pensar em estratégias estético-políticas mais eficazes possa fazer o grupo conseguir do público uma maior imersão. Esse não é um caminho fácil, porque não se tem uma receita prévia para isso. É na experimentação cotidiana de formas e práticas que podemos pensar numa revolução política a partir de uma revolução da forma poética.
Notas de Rodapé
[1] CARVALHO, Sérgio de. O teatro e a cidade – lições de história do teatro. São Paulo: SMC, 2004.
[2] A crítica de Lorenna Rocha, sob a perspectiva INTERIOR, encontra-se publicada AQUI
[3] Para quem quiser compreender mais sobre o teatro de guerrilha, sugiro a leitura DESTE ARTIGO.
[4] Boal, Julian. Por una historia política del Teatro del Oprimido. Literatura: Teoría, História, Crítica, v. 16, n. 1, p. 41-79, 2014.
[5] RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.