Crítica – Luzir é Negro! | Arte, Política e Resistência

Imagens – Ricardo Maciel
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
Luzir é Negro!, o novo espetáculo do grupo Teatro de Fronteira, estreou dentro da programação do Outubro ou Nada – 1a. Mostra de Teatro Alternativo do Recife, dois dias antes do segundo turno das eleições 2016 para prefeito. Essas informações não são meramente protocolares; não constituem um simples detalhe. Começo por elas, pois nos oferecem elementos contextuais necessários para, mais adiante, compreender o espetáculo como um discurso estético e socialmente determinado.
O resultado das eleições 2016 revelou o que já estava suposto e esperado: o recuo vertiginoso da esquerda e o avanço avassalador de uma direita conservadora, reacionária, com não raros traços fascistas, no contexto nacional. Foi um processo que elegeu, por exemplo, um bispo licenciado da neopentecostal Igreja Universal do Reino de Deus para prefeito do Rio de Janeiro; e a missionária Michele Collins para vereadora na cidade do Recife, obtendo, inclusive, o maior número de votos.
A despeito de muitas críticas que possam ser feitas ao PT, nos treze anos em que governou o Brasil, foi inquestionável o avanço de políticas sociais, que promoveu a inserção da classe popular em atividades, experiências e contextos antes inimagináveis; criou condições para a garantia dos direitos civis dos grupos minoritários e abriu espaço para a participação democrática dos diversos segmentos sociais. Entretanto, com o golpe parlamentar e midiático que se instaurou no Brasil e com a consequente deposição da presidenta Dilma Rousseff, instalou-se no poder o que há de mais conservador e retrógrado em nosso horizonte político. Com esse governo ilegítimo, misógino, classista e racista, estamos assistindo a um desmonte covarde de muitas daquelas conquistas sociais alcançadas a duras penas na gestão anterior.
A votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos deputados, que foi de uma algazarra desrespeitosa, vergonhosa, carnavalesca e imprópria de deputados empenhados em decisão tão séria para o futuro político do país, teve seu áudio projetado no espaço d’O Poste, quando as portas se abriram para o espetáculo dirigido por Rodrigo Dourado e performatizado por Marconi Bispo. Foi inevitável reviver o circo de horror que fora aquela votação. Muitos espectadores não conseguiam esconder o riso ante o ridículo dos discursos e de seus pronunciamentos inflamados e patéticos. No centro, estava o ator e um baú aberto. Quando todos entram no espaço, Marconi Bispo fecha o baú, o áudio silencia e o ator começa a atuar, alinhavando as diversas narrativas que compõem seu biodrama. Um ator, cantor, performer, negro, passa a expor fatos de sua vida e vai se revelando ao público, em tom confessional. Fala como, em sua trajetória, foi interpelado como sujeito a reconhecer-se negro numa sociedade sistemicamente racista. Sua vida nos é revelada em camadas – infância, profissão, religião.
Como sabemos, o biodrama é um teatro performativo, documental, haja vista que o artista fala de acontecimentos de sua própria vida. Essa fricção entre o registro biográfico e a metáfora poética é o que permite ao espetáculo tornar-se em teatro, um encontro entre artista e público através da poesia da cena. Em Luzir é negro, o particular torna-se universal, à medida que o elemento biográfico se desdobra rizomaticamente em situações e temas relacionados à condição do negro na sociedade brasileira. Rodrigo Dourado constrói a dramaturgia com muito esmero, com muita poesia e com muito humor queer, como é próprio de sua estilística. Valeu-se de um baú posto em cena com adereços a serem usados pelo ator, para construir uma metáfora, singela e delicada – a do artista que abre o baú de suas memórias, de seus amores, de suas dores, de suas lutas, de suas esperanças.
Marconi Bispo teve muita coragem ao abrir seu baú. Isso já é um mérito. Os fatos concretos de sua vida, enraizados em sua carne e em sua estrutura emocional mais profunda, tornam o artista ainda mais vulnerável em cena. Ao contrário do teatro representacional, em que o ator se sente mais seguro e confortável na interpretação de uma persona que não é a sua, no tipo de teatro performativo em que se insere Luzir é negro, o ator/performer expõe não apenas seu corpo, mas suas feridas ainda não cicatrizadas, fatos biográficos tão reais, que tornam as emoções do artista nas emoções genuínas do homem por trás do artista. Nesses momentos, o ator desafina, titubeia; mas consegue rapidamente retomar o fio que o mantém equilibrado em cena. Essa vulnerabilidade é produtiva e constitui a arte da performance. Isso não significa dizer, contudo, que algumas cenas não mereçam do ator uma pesquisa e uma imersão maiores. Como o biodrama contém em si um movimento próprio que se relaciona de forma dialética com a vida – dinâmica, não estática –, compreendemos e aceitamos, mais do que noutros tipos de espetáculos teatrais, o não acabamento formal, uma vez que a forma se modifica e se aperfeiçoa a cada apresentação. Trata-se de um teatro orgânico, como orgânica é a vida. Tenho certeza de que Marconi alcançará outros bons resultados no trajeto ainda a ser percorrido.
Não poderia deixar de registrar aqui o sensível trabalho de João Guilherme de Paula no desenho da luz; e o de Marcondes Lima, que conferiu aos figurinos valor semiológico e uma maior praticidade na troca de peças em cena aberta. Os músicos, Kiko Santana e Basílio Queiroz, também, fazem um trabalho delicado, que contribui para a poeticidade da cena.
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Comecei meu texto, não casualmente, com duas informações contextuais, as quais fazem parte deste momento histórico em que a peça de Rodrigo Dourado e Marconi Bispo foi gestada – eleições 2016 e o Outubro ou Nada. Quero, com isso, demonstrar como o espetáculo Luzir é negro pode – e deve – ser lido como um discurso que posiciona os sujeitos artistas numa formação discursiva política e ideologicamente determinada.
Tal como Foucault, compreendo o discurso como um modo, linguístico ou não, de organizar o significado, os sistemas de poder/conhecimento. Ao mesmo tempo, entendo o discurso como um modo de ação, “uma forma como as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação”, como diz um analista crítico do discurso, o inglês Fairclough.
O discurso é uma prática de representação e de significação de mundo, na medida em que interpreta e atribui significados à realidade concreta onde nos encontramos inseridos, constituindo e construindo o mundo em significado. Assim sendo, o discurso contribui para a construção das identidades sociais, das relações sociais entre as pessoas e dos sistemas de conhecimento e de crença. Dessa forma, dá para compreender que o discurso encerra um posicionamento ideológico dentro de um debate mais amplo sobre o assunto a que se reporta.
Pois bem, Luzir é negro estreou às vésperas de uma eleição que revelaria a sedimentação de uma direita conservadora como modo hegemônico da política brasileira atual, e com essa realidade o espetáculo mantém uma relação dialética, contraditória. Os comportamentos dessa direita que revelam traços fascistas são levados à cena de forma irônica e cômica. Com a ironia e o deboche (o áudio da votação pelo impeachment, a cena do pastor e a de Camilo Imbecilli são primorosos), o espetáculo foge do pudor aristocrático e elitista ante o tratamento do “politicamente correto”, e assume um posicionamento crítico, apontando o ridículo (daí o cômico) dos comportamentos sociais, retrógrados e reacionários, nos quais se insere o racismo sistêmico ainda vigente em nossa cultura – e, no contexto político em que estamos vivendo, só tende a aumentar, desafortunadamente. Opondo-se a esse horizonte, o espetáculo assume um discurso de resistência, favorável às políticas raciais de respeito e valorização de pretos e pretas, bem como de garantia dos direitos civis dessa população historicamente massacrada. Significativo foi ter o espetáculo estreado n’O Poste, espaço de pesquisa, dentre outras, das relações étnico-raciais no e pelo teatro. Ao contrário de um ou outro espetáculo local que expressa o conservadorismo de uma elite branca e preconceituosa no tratamento de questões raciais no e pelo teatro, Luzir é negro assume um discurso afirmativo e de resistência ao racismo.
Some-se a isso o fato de o espetáculo ter estreado dentro da programação do Outubro ou nada, um evento cultural que surge como forma de resistência política a uma gestão que vem reduzindo cada vez mais o incentivo à cultura e mostrando um descaso absoluto quanto ao investimento dos nossos espaços teatrais. Mesmo com todas as dificuldades, o teatro mostra que pode existir sem o apoio do estado, o que torna o Outubro ou nada num libelo de artistas produtores a favor do teatro. Vida longa a esse trabalho tão importante e relevante do Rodrigo Dourado, do Marconi Bispo e de toda a equipe que compõe o Teatro de Fronteira!