Crítica – Retomada | Do rito primitivo à cena contemporânea
Imagens – Fernando Figueroa
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor Adjunto do curso de Licenciatura em Teatro (UFPE)
A residência de meu amigo Júnior Aguiar é um centro xamânico. Lá estive no final do ano passado, por ocasião de duas cerimônias, Sétima Lua e Caminho do Guerreiro. Sobretudo nessa última, comandada por Marcos Ninguém, pude vivenciar mais de perto um ritual inspirado na cultura indígena – a propósito, nela houve uma participação inspiradora de dois representantes da comunidade fulni-ô. A cerimônia, para além de sua finalidade de cura, se mostrou de uma teatralidade que há muito eu não participava. Teatralidade flagrante tanto na organização dos sujeitos no espaço quanto nas suas ações orgânicas em todo o processo ritualístico. Teatralidade equivalente a que viveu Artaud, muito provavelmente, quando de sua participação no ritual xamânico da cultura tarahumara, no México.
Na ocasião, lembro de Júnior Aguiar ter me falado que Fred Nascimento e membros de seu grupo, o Totem, passaram pelo centro, a fim de fazer uma pesquisa para seu novo trabalho, inspirado na ancestralidade de povos indígenas. Tenho acompanhado muito dos trabalhos do Totem, de quem sou admirador. Um dos expoentes da performance e do teatro performático em Recife, o Totem persegue, em suas pesquisas, o teatro ritualístico, na esteira do teatro ritual de Antonin Artaud. Em sua nova pesquisa, “Rito Ancestral Corpo Contemporâneo”, o grupo parte dos estudos sobre ritos primitivos para estabelecer uma ponte com os rituais contemporâneos. Resultado dessa pesquisa, o espetáculo Retomada estreou no 4o. TREMA! Festival de Teatro e encantou o público que lotou o Teatro Hermilo Borba Filho.
Como muito bem destacou Fred Nascimento, que assina a encenação, o espetáculo não procura mimetizar traços culturais e estéticos dos povos pankararu, xucuru e kapinawá, em Pernambuco, na comunidade dos quais o Totem fez residência. Em Retomada, fica claro para mim que o estudo profundo da performance orientou toda a pesquisa estética. Com isso, os rituais indígenas pesquisados foram processados antropofagicamente, no afã de alcançar na cena o poder e a força espiritual da ancestralidade desses povos. Uma ancestralidade feminina – da mãe Terra, sobretudo, vale salientar –, presente nos corpos flamejantes das atrizes-performers Gabi Cabral, Gabriela Holanda, Inaê Veríssimo, Juliana Nardin, Lau Veríssimo e Taína Veríssimo.
A música original de Cauê Nascimento, Fred Nascimento e Gustavo Vilar, executada ao vivo, expressa muito bem esse caráter antropofágico da cena na criação de um espaço-tempo ritualístico. Os sons produzidos pela guitarra e por instrumentos de percussão revelam a inserção do contemporâneo no ritual de inspiração primitivista. Dessa forma, gera nos corpos um movimento híbrido, calcado em ritos ancestrais e contemporâneos. Hibridismo reforçado pelo desenho de luz criado por Natalie Revorêdo, que confere ao espaço uma plasticidade de profunda poesia.
Retomada é, assim, um teatro que revela o contemporâneo por meio de um mergulho nas raízes ancestrais de nossa cultura. Como em Artaud, o espetáculo promove o encontro entre teatro e ritual, ressaltando a magia da cerimônia. Com isso, proporciona a cura espiritual, dimensão da terapêutica do teatro sonhada pelo artista e pensador francês. Pelo menos foi essa sensação que tive ao ver o público ao fim do espetáculo: admirado, entusiasmado e transformado. E o mais importante, a meu ver, é que o trabalho expressa um discurso político inconteste também quando direciona nosso olhar para a realidade do indígena, conduzindo o público ao grito final: “diga ao povo que avance!”. Uma forma de fazer as pessoas tomarem consciência da existência e força de uma esfera fundamental de suas raízes culturais.