Crítica – Santo Genet | Um espetáculo grávido de possibilidades
Imagem – Li Buarque
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
Breno Fittipaldi já vem acalentando há alguns anos a ideia de montar um espetáculo a partir da ficção autobiográfica do escritor francês maldito, Jean Genet (1910-1986). Reiteradas vezes me convidou para fazer parte desse projeto, a fim de, juntos, pensarmos na dramaturgia. Há mais ou menos um ano, fui assistir a um dos ensaios que Breno vinha realizando com o grupo Calabouço Cênico. Voltando para casa, fui digerindo o que tinha visto e percebendo, pouco a pouco, que aquele trabalho revelava um Genet muito próprio e particular de Breno Fittipaldi. Um Genet distante de mim. O acúmulo de demandas na universidade me fez desviar desse foco e não voltei mais a interagir com o diretor sobre o trabalho. Em março deste ano, ele me convidou para ir ver o resultado de suas pesquisas, no espetáculo intitulado Santo Genet e as Flores da Argélia. Fui assistir em março e agora em agosto, ambas as vezes no Teatro Hermilo Borba Filho.
Não foi à toa que Fittipaldi pensou numa parceria comigo. Ambos, eu e ele, temos um grande apreço pelo escritor francês. Devoramos avidamente a literatura de Genet. Sua prosa é poética, a ponto de Martin Esslin (O Teatro do Absurdo) qualificar os romances genetianos de verdadeiros poemas em prosa. Nos identificamos com sua escrita; projetamos nele nossas próprias marginalidades, reais ou imaginárias; reconhecemo-nos, cada qual a nosso modo, em sua desobediência civil e existencial. Sua homossexualidade é também nossa, bem como sua ética do desejo. Genet faz parte de nossas vidas.
Nossa Senhora das Flores, O Milagre da Rosa, Pompas Fúnebres, Querelle de Brest e Diário de um Ladrão constituem romances que expressam as fantasias eróticas de um prisioneiro, o próprio Genet; suas divagações de marginal solitário, que resolve cumprir o destino que julga ter-lhe traçado a sociedade (Esslin). O código moral de uma sociedade francesa capitalista, colonialista e patriarcalista é praticado às avessas ou enviesadamente pelo escritor: adoração ao crime, ao bandido, à violência viril dos marginais. Tudo isso expresso numa solenidade de caráter religioso. Sua prosa barroca, que mistura o alto lirismo (Belo) com elementos grotescos e escatológicos, pretende constituir uma afronta aos valores morais pequeno burgueses da sociedade francesa e, ao mesmo tempo, um libelo à liberdade.
Em Santo Genet e as Flores da Argélia, Breno concebe a encenação a partir de três pilares do universo genetiano: “pederastia”, furto e traição. “Pederastia” era o termo usado, inclusive pelo próprio Genet, para se referir à vivência homoerótica masculina. A palavra vem, ao longo de sua história, assimilando valores pejorativos no seu uso. Falar, em francês, pédé (contração de pédéraste) é altamente pejorativo. Quando Genet afirma sua “pederastia”, ele assume seu lugar de alteridade e de marginalidade, e o faz de maneira cerimoniosa, litúrgica.
Como o encenador solucionou dramaturgicamente seu intento? Breno partiu de uma constatação muito feliz: o romance que inspirou a peça, Diário de um Ladrão, é confessional e autobiográfico, de forma que a dramaturgia de Santo Genet e as Flores da Argélia pode muito bem se valer dos recursos do biodrama, tal como concebido pela artista argentina Vivi Tellas, recolhendo os documentos vivos de cada um dos dezesseis atores/atrizes do elenco e oferecendo biografias cênicas. Ao mesmo tempo em que renderia uma homenagem à obra de Genet, a encenação teria condições de oferecer uma leitura crítica do tempo e da nossa sociedade contemporânea, onde grassam o desamor, a homofobia, a transfobia, o bullying etc.
O que me incomoda na dramaturgia (e estamos falando de experiências estéticas; logo, ou saímos satisfeitos, ou incomodados, jamais incólumes) é sua execução monocórdica. Para cada um dos três pilares temáticos em que ela se sustenta – “pederastia”, furto e traição –, são performatizados dezesseis depoimentos, o que rende, no saldo geral, uma quantidade excessiva de falas organizadas num mesmo esquema narrativo. Nas duas vezes em que assisti ao espetáculo, ao final da primeira leva de depoimentos, o público começou a aplaudir, pensando ter finalizado a peça, mas ela ainda tinha por nos revelar mais duas levas de depoimentos. Enquanto cada ator/atriz fazia seu relato, os demais assumiam a função de coro, repetindo expressões do texto falado, num tom de insulto ao locutor. A estrutura terminou ficando muito repetitiva, não me estimulando, enquanto espectador, a alçar voo. As formas que dispomos para fazer a passagem da biografia para a cena são múltiplas e infindáveis. É a natureza dos relatos de vida que vai nortear o dramaturgo em seu trabalho estético. Investir nessas formas e nos múltiplos recursos dramatúrgicos certamente evitaria o ritmo monocórdico do trabalho.
Perceba-se que foi a dramaturgia de forma mais ampla, compreendida pelo texto e pela composição das ações cênicas, que não chegou a me alcançar no lugar em que me encontrava – o do espectador. Explico-me. Ao recolher os depoimentos de seus atores, o encenador-dramaturgo ainda não conseguiu, a meu ver, transformar esses depoimentos em “teatro”, para me valer de poucas palavras. O biodrama faz supor a fricção entre o real e a poesia. O discurso em Santo Genet ainda está muito mais no nível documental do que no nível performático e poético da cena. Há poucas tensões entre o real e o poético, de forma que a encenação limita, para mim, a afetividade que pretende estabelecer no jogo entre atores/atrizes e espectadores. O real e o poético ainda estão em lugares separados no discurso cênico. Por exemplo, a cena mais impactante para mim, de todo o espetáculo, é a que se encontra ao final, com Luís Carlos Filho, bastante andrógino, sentado numa privada e movimentando o corpo nu como entidade sagrada, enquanto os outros vários corpos nus dos atores/atrizes se dispunham misturados no chão, aos seus pés. O quadro poético que se cria (os tableaux, muito ao gosto de Fittipaldi) é bonito e pode render muito mais ainda. Esse artifício poderia ser, dentre outros, mais explorado na composição das ações performáticas, colorindo o ritmo cênico e fazendo o trabalho ganhar em maior organicidade.
Da forma como se encontra, o trabalho mantém-se distante da atmosfera genetiana, dela retendo apenas alguns elementos isolados, os quais, longe do contexto, se tornam formas vazias: violência, “pederastia”, liturgia, nudez, indumentárias que nos remetem ao sadomasoquismo. Os atores são jovens e têm muito a render em suas performances. São disponíveis e ávidos por novas experiências. Que se aproveite disso o encenador, a fim de que a presença cênica ganhe em potência.
A meu ver, Santo Genet e as Flores da Argélia ainda está em processo. O projeto de Breno Fittipaldi é ambicioso, mas coerente. Breno já tem larga experiência como professor e como encenador. Sabe conceber e justificar suas ideias de encenação muito bem. Precisaria, na minha compreensão, voltar à sala de ensaios e experimentar mais junto aos meninos e meninas que compõem o Grupo Cênico Calabouço, a fim de chegarem a resultados cênicos ainda mais surpreendentes. Fôlego eles têm!