Crítica – Show Opinião de Novo | Teatro, música e política para a (re)construção de outros tempos

Imagem – Anny Stone
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE) e crítica cultural
120 KM separam a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) do Museu de Artes Afro-Brasil Rolando Toro (MUAFRO). Entre Paraíba e Recife, alguns nordestes – atente-se ao plural – podem ser visualizados nessa travessia. No caminho, Édson Albuquerque, Jamila Facury e Murilo Franco, com seus instrumentos musicais, tapete circular vermelho e camisas de botão estampadas e coloridas, estavam em direção ao Festival Janeiro Sem Censura (JSC).
Aqui, é preciso abrir parênteses.
O Janeiro Sem Censura é um movimento que se iniciou em 2019, após a retirada arbitrária do espetáculo O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu, monólogo da atriz trans Renata Carvalho, da programação do 25º Janeiro de Grandes Espetáculos (JGE). O tradicional festival da cena recifense, capitaneado pelo produtor Paulo de Castro, cedeu às pressões de grupos políticos católicos e neopentecostais, promovendo o cerceamento da liberdade artística e dando coro a outros episódios de censura que posteriormente viriam a acontecer, como os ocorridos com Abrazo, na Caixa Cultural Recife, e Carangueijo Overdrive, no CCBB São Paulo.
Se, em 2019, a ação independente de artistas da cidade foi uma resposta imediata ao ocorrido no JGE, no ano de 2020 o evento se insere num contexto de mobilização mais amplo, o qual coaduna com outros movimentos artísticos-culturais que estão ocorrendo nacionalmente pelo direito à liberdade de expressão, como o Verão Sem Censura (SP).
Dentro do Janeiro Sem Censura deste ano, reverberando poéticas sobre o quadro apresentado, uma ação-protesto elaborada por Pollyana Monteiro, em Ragnarok, chama atenção. A performance, como discorrido na crítica elaborada por Dário Santos (veja AQUI), relaciona-se, ora como reverência, ora como interdição, com símbolos do neopentecostalismo e com livros da literatura clássica que fazem com que a performer perca seu ato de fala. Nesse movimento, o corpo passa a tomar forma no processo de comunicação, onde trava uma batalha pelo desejo de comunicar (ou seja, produzir linguagem) através dele.
No final da performance, Pollyana apresenta o título de um dos livros daquilo que surge como catalisador do processo que está posto na ação performática: a Bíblia Sagrada. Na página ao lado, na mesma altura, está a marca do 25º Janeiro de Grandes Espetáculos. Interdições, repressões. O inimigo é mesmo sempre o “outro”?
Aqui, voltemos um pouco no tempo.
Em 1964, após o golpe que instaurou a ditadura civil-militar no Brasil, o Show Opinião, espetáculo dirigido por Augusto Boal, composto por João do Vale, Nara Leão e Zé Kéti, subia aos palcos. Em dezembro daquele ano, algo de inovador acontecia no campo teatral, musical e artístico do país.
Com a vontade de cantar todas as músicas que pudessem fazer todo mundo ser mais livre, o espetáculo de teatro-musical buscava temáticas com caráter de denúncia social, ao mesmo tempo que tentava se aproximar de uma identidade “tipicamente brasileira”. Nesse contexto, usando o teatro como instrumento de ação política e transformação social, fortemente influenciados pelas ações produzidas pelo Centro Popular de Cultura (CPC), a peça teatral tinha como objetivo promover a consciência das classes populares por meio da aliança entre as elites culturais e intelectuais e o “povo”.
As canções e narrativas autobiográficas do espetáculo enunciadas pelos cantores-atores e pela cantora-atriz produziam o discurso teatral, que se contaminou com a sensação de liberdade vivida pelas gerações dos anos 1945 a 1964 e pela produção artística efervescente da mesma época. Entre MPB e Cinema Novo, havia ainda um milagre econômico, projetado pelo nacional-desenvolvimentismo, que vendia a modernidade como sinônimo de felicidade inabalável.

João do Vale, Nara Leão e Zé Keti em “Show Opinião” (1964) | Foto – Autores desconhecidos | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem preta e branca. Dois homens estão sentados, o primeiro pode ser visto lateralmente e o segundo está de costas para a câmera. O primeiro está de calça e camisa listrada e o segundo de calça e camisa lisa. Entre eles, no palco, está uma mulher que pode ser vista lateralmente, com a perna esquerda para a frente, a direita para atrás e com o braço direito para frente e para cima, gesticulando. Ela veste calça e camisa social xadrez.
A bossa nova de Nara, representante da classe burguesa, o samba de Zé Kéti, representante dos subúrbios cariocas, e o baião nordestino de João do Vale, representante da cultura nordestina, compunham perfis para aquilo que era compreendido como “tipicamente brasileiro” e reproduziam o discurso de aliança de classes, fortemente influenciado pelo viés marxista, por meio dessas identidades.
As noções de arte engajada/arte pela arte e engajamento/alienação se expressavam dicotomicamente nesse contexto. A crítica à indústria cultural e à cultura de massa também se manifestava. Com a valorização das letras de cunho político, o espetáculo musical tinha como objetivo promover consciência de classe, mais uma vez influenciados pelos estudos marxistas e pelo teatro nacional-popular, como forma de “libertar” a sociedade brasileira de suas desigualdades sociais e se contrapor ao golpe instaurado à época.
Aqui, retornamos para 2020 (e para as várias temporalidades que nesse ano podem caber).
11 de janeiro. O último andar do MUAFRO abrigou os ritmos e histórias de Édson, Jamila e Murilo. Aurora Jamelo, Sophia William, Nilo Pedrosa, Flávio Matheus e Igor Cavalcanti, responsáveis pelo JSC, os receberam. No aparato cultural, a música Peba na pimenta começou a ser cantada iniciando a apresentação, assim como no Show Opinião, já dando o tom cômico do espetáculo. A expressão exagerada do corpo de Murilo para contar a história dúbia presente na canção rapidamente tira gargalhadas da platéia estabelecendo uma conexão. Assim como em 1964, o trio optou por fazer do cômico uma ferramenta para expor sua crítica social. Apesar de manter algumas partes da dramaturgia original, é evidente o processo de atualização de certas temáticas, dados estatísticos, notas de jornais e canções em Show Opinião de Novo.
A peça foi construída em contexto universitário para a apresentação de um seminário no curso de Teatro. Nos primeiros momentos da encenação, o trio anuncia algumas informações sobre o Show Opinião: quem o dirigiu, quais pessoas atuaram, em qual contexto histórico se desenvolveu… Mas esse caráter documental e metalinguístico é rapidamente abandonado. Apesar de compreender que são escolhas dramatúrgicas, acredito que esse caráter pedagógico da peça poderia ser potencializado por meio dessas conexões “explícitas” entre passado e presente. Além de fortalecer o tom didático da peça, contribui com o movimento de “atualização” proposto pela apresentação. E, já que isso foi feito por alguns minutos, talvez fosse importante continuá-lo. Entretanto, essa composição entre as temporalidades aparece de forma diluída, não em torno do Grupo Opinião e de seu show de teatro-musical, mas pelo breve panorama da história recente do país que vai sendo apresentado durante o espetáculo.
A estrutura dramatúrgica do Show Opinião de Novo se desenvolveu também entre canções e narrativas pessoais, como no procedimento original, mas com dramatizações que localizam as presenças de atores-cantores e atriz-cantora em cena. Isso não quer dizer que se pode prever um prejuízo na musicalidade e no ritmo da apresentação: o que nos embala é, justamente, a mistura de ritmos que dá intensidade ao percurso teatral desenvolvido pelo trio. A manipulação dos instrumentos, que ora emitem seu som e ora viram objetos cênicos, junto a três bancos de madeiras, traz à cena vivacidade dentro da estrutura de semi-arena, que nos diverte com as diferentes entonações e ironias que anunciam as críticas à nossa conjuntura política atual.
A absorção da linguagem das redes sociais, com menções a memes e bordões da internet, mesclada a notícias e análises conjunturais feitas por parte da esquerda brasileira, indica mais uma vez o processo de atualização do espetáculo. A narrativa deixa explícita o posicionamento ideológico do grupo perante o contexto histórico que estamos vivenciando, ainda que não se desenvolvam críticas mais complexas do que podemos ver no mainstream. Mesmo sem abandonar as dicotomias que continuam a expressar a ideia de que “são eles contra nós”, no entanto, há um afastamento de discursos propagados pelo Show Opinião de 1964 que merece destaque.
A presença de Édson, Jamila e Murilo em cena nos leva a pensar, por alguns instantes, que cada um assumirá as personas de Nara Leão, Zé Keti e João do Vale. Mas não é isso que acontece. No exercício de comparar essas duas experiências, respeitando suas especificidades espaço-temporais, o ato de não se manterem fixos nos papéis dramatizados, na adaptação, faz emergir um deslocamento simbólico significativo.

Jamila Facury, Murilo Franco e Édson Albuquerque em “Show Opinião de Novo” | Foto – Anny Stone | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Foto colorida. Uma mulher negra e um homem branco vestidos de calça lisa e camisa de botão estampadas estão com um banco de madeira vestido em sua cabeça, com o acento em seu rosto como uma máscara, onde está desenhado a carcaça de um animal, fazendo gestos de marcha. Ao lado deles, há um homem vestido de calça lisa e camisa de botão florida com um violão na mão, tocando e cantando. Ao fundo, telas de pintura e um ventilador. A frente deles, a plateia assistindo ao espetáculo.
Ao não manter as identidades daquilo que se tinha noção enquanto burguesia socialmente engajada, de um suburbano carioca ou de um nordestino, Show Opinião de Novo faz uma crítica a ideia de aliança entre classes impressa no texto original. Motivada pelas análises marxistas e debates em torno da luta de classes, essa visão idealista era projetada em Show Opinião por meio da união entre o trio (Nara, João e Zé) em suas distintas representações sociais. Além de partir de um viés mais elitista, apesar do constante diálogo da “burguesia engajada socialmente” com as classes populares, essa convicção entendia muita mais o “povo brasileiro” como signo do que como sujeito histórico.
Ao negar a noção homogeneizante de “povo brasileiro”, o discurso teatral de Show Opinião de Novo reivindica visões plurais, principalmente sobre o que seria o nordeste (aqui, no singular). Em uma das partes do texto, Édson conta um pouco sobre sua adolescência em Cajazeiras (PB) e fala sobre a diversidade de produtos alimentícios que existem no interior do seu estado. Logo em seguida ele fala: “o problema do nordeste não é a fome. (…) É o coronelismo!”. Parece-me que a frase funciona como uma resposta ao discurso contido no espetáculo original. Ainda que as imagens de um “nordeste real” fossem utilizadas para denunciar o quadro social da região, e do país, as mesmas ainda são usadas para reforçar um imaginário permeado por estereótipos que colocam o(s) nordeste(s) num lugar de subalternidade. Problematizações como essas já foram apontadas, inclusive, por espetáculos recentes como A Invenção do Nordeste, do Grupo Carmin (RN).
Um outro momento de representação dessa ruptura é quando Édson menciona que deveríamos fazer a separação do nordeste “de direito”, já que, ideologicamente, já estamos separados, uma vez que ações xenofóbicas ocorrem – há tempos – dentro do território nacional. Esse posicionamento se conecta fortemente com os resultados das eleições presidenciais no Brasil, em 2018, no segundo turno. Lembra daquelas imagens em que mostravam o mapa apontando que apenas no nordeste o atual presidente não ganhou a maior parte dos votos?
Apesar das discussões não serem novas, levar aos palcos e às praças uma versão adaptada/atualizada do Show Opinião em tempos de revisionismo histórico e de cerceamento de liberdade artística, de expressão e perda de direitos individuais e coletivos, se faz necessário, ao meu ver, em duas instâncias: a primeira pelo desejo de levar à público fragmentos da memória da história republicana do país, e seus contextos político-ideológicos; a segunda, pelo reconhecimento (e publicização) da potência de um texto dramatúrgico como o desenvolvido pelo Grupo Opinião, que marca rupturas e transformações importantes no campo artístico e teatral brasileiro.
Esse texto faz parte da cobertura crítica do Festival Janeiro Sem Censura, ocorrido entre os dias 10 e 12 de janeiro de 2020.
Referências Bibliográficas
GARCIA, Miliandre. Show Opinião: quando a MPB entra em cena (1964-1965). Dossiê: Música Popular: Tradição e Experimentalismo. História (São Paulo) v. 37, 2018, ISSN 1980-4369.
KLAFKE. Mariana Figueiró. Show Opinião: Engajamento e intervenção no palco pós-1964. REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.1, Número 6 – TEMÁTICO “Tensões do contemporâneo nas literaturas de línguas inglesa, espanhola e portuguesa”. ISSN: 2179-4456. Julho de 2013. p. 64-77.