Crítica – TREMA! Festival | 10 anos de atividades, na embolada entre peçonha e encantamento
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Imagem – Felipe Peres Calheiros e Ilda de Sousa
Por Bruno Siqueira
Pesquisador e Professor de Teatro (UFPE)
Foi sob o nome de Réquiem para um Festival que Pedro Vilela e equipe voltaram a apresentar o Trema! Festival em nosso estado de Pernambuco, um dos maiores e mais importantes acontecimentos deste semestre de 2022. Comemorando com o público uma década de existência do festival, Vilela explica o título desta edição: muitos afirmaram que estávamos mortos.
De fato, nestes dois anos de pandemia da covid-19, com as medidas de segurança adotadas em muitos estados, que compreendiam também o isolamento social, deixamos de assistir não somente ao TREMA!, como também fomos privados de todo e qualquer encontro presencial (corpo a corpo) que se podia esperar de um acontecimento teatral, circense, performativo e da dança.
Foram dois anos marcados por muitas mortes, nas mais diversas esferas. Qual Fênix renascendo das próprias cinzas, as artes da cena procuraram driblar a morte e renascer a partir dos recursos tecnológicos disponibilizados pela web. No entanto, de forma geral, os principais festivais no Brasil preferiram aguardar o momento propício para voltarem a atuar.
Esse momento chegou. Para compensar esses dois anos de ausência no cenário pernambucano, o TREMA! ofereceu duas edições condensadas entre os dias 19 de abril e 1 de maio deste ano. Foram, ao todo, 27 espetáculos, entre nacionais e internacionais. Fora do Brasil, houve trabalhos de Portugal, do México e do Chile. Excelente oportunidade para entrarmos em contato com produções latino-americanas e lusitanas.
Os palcos variavam também. Se a maioria dos trabalhos se apresentaram em Recife, não foram poucos os que ocuparam os palcos de Limoeiro, Surubim e Olinda. O respeito à diversidade se observou não somente na pluralidade dos espaços, mas na curadoria, que ficou à cargo de Pedro Vilela.
Só para se ter uma ideia, o festival abre com dois trabalhos que pautam algumas das questões indígenas: a performance Involuntários da Pátria, assinado por Fernanda Silva (PI) e Sônia Sobral (SP); e o espetáculo de dança Encantado, assinado por Lia Rodrigues (RJ). E fecha com o aclamado Manifesto Transpofágico, performance de autoria de Renata Carvalho (SP), que aborda a cultura transvestigênere.
Entre esses dois temas dissidentes em suas abordagens e modos de produção, uma gama de espetáculos trouxe propostas estéticas que friccionavam a negridade, a branquidade, as catástrofes ambientais, as vidas precárias de imigrantes latino-americanos, o gênero, a sexualidade, a cidade, a política brasileira atual. Com essa curadoria, o TREMA! dá mostras mais uma vez de que se posiciona politicamente. E se posiciona a favor da diversidade, não somente estética, mas de existências, de vidas que reivindicam respeito, direitos e uma democracia cidadã.
São expressões estéticas que não param mais de se disseminar e denunciar todo processo curatorial que procura silenciá-las. E Pernambuco sabe muito bem do que estou falando. O caso duplo de censura desrespeitosa à artista Renata Carvalho, em 2018 e 2019, nunca foi reparado pelo estado, mas foi compensado por iniciativa do TREMA!, que, à época, enfrentou as hordas conservadoras e apresentou o Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, no Teatro Apolo, dentro da programação do festival de 2018.
Arte é política, querendo ou não. Tudo é política. Fazer curadoria para agradar a Deus e ao Diabo é servir a quem está no poder. Sempre foi assim e sempre será. Isso é fazer política, só que a serviço do poder hegemônico. Pedro Vilela, Mariana Rusu e Thiago Liberdade sabem se posicionar corajosamente numa seara da política em que o respeito à liberdade e à diversidade se torna condição inegociável.
Liberdade e diversidade são princípios curatoriais, não o conceito propriamente dessa última edição do TREMA! Festival. Num mundo que vem se desencantando cada vez mais, tendo como ponto alto desse desencantamento a pandemia de covid-19, o festival, a despeito do deboche em seu nome, foi construído sob o conceito de “encantamento”. São palavras que gravitam em nosso vocabulário, com usos os mais diversos, mas, nesse contexto do festival, está ancorada na sabedoria dos ancestrais indígenas e africanos. O livro de Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino, “Encantamento – sobre política da vida”, citado nos encartes da programação, condensa bem e sucintamente esses saberes.
“O contrário da vida não é a morte, o contrário da vida é o desencanto”. O encantamento está relacionado a uma vida em que o “viver é artimanha que se cultiva entre aquilo que se enxerga e aquilo que mora no invisível”. Viver é produzir encantamentos e se recriar e se renovar e se multiplicar. Em nosso mundo, entretanto, se instalou “um modo adoecido, um amplo repertório de formas de desencanto” que nos fazem acreditar que se trata de um modo “normal” de vida. Nossa ética ancestral nos interpela para o modo de reagir urgentemente a esse desencantamento, a esse adoecimento, a essa política de destruição. Para isso, temos apensas um único caminho: responder com a própria vida.
“Na embolada entre vivacidade e mortandade, encantamento e peçonha nos atracamos com o Brasil. Jogamos o corpo na dança e no sopro da flauta a esperança de uma virada poética e política que transmute as energias. Neste ponto, lançamos a provocação e afirmamos que o Brasil precisa dar errado urgentemente. (…) A nossa chance é começar a dar errado, como indivíduos e coletividade, com a maior urgência. Precisamos arvorecer com a delicadeza do jasmineiro e a fortaleza de mil anos das sumaúmas da floresta (…) e cura das doenças quando encantadas pelos caboclos”.
É a esse posicionamento político que me referia há pouco. É nessa vertente política, junto com a equipe do TREMA!, em que me encontro inserido na esfera das artes. Pudemos assistir a espetáculos e artistas que, na embolada entre vivacidade e mortandade, se atracaram com o Brasil. Fernanda Silva, em Involuntários da Pátria, lê o texto da aula pública do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, denunciando, numa perspectiva pós-colonial, as complexas relações entre as populações indígenas brasileiras e o Estado moderno. As bailarinas e bailarinos de Lia Rodrigues constroem no palco formas poéticas que nos remetem aos encantados das florestas. Marconi Bispo evoca os Odus para a criação dramatúrgica de seu re_Luzir.
Roberta Ramos foi buscar nos seus arquivos de infância as memórias de encantamento, tão postas à prova neste mundo de desencantamento. Orun Santana conclama sua ancestralidade para fortalecer seu corpo negro, numa sociedade que trata os corpos negros como precários e descartáveis. Gabriela Carneiro da Cunha se atraca com o Brasil que desencanta o rio Xingu, e transforma a barragem de Belo Monte no mito do inimigo. Gabi Holanda denuncia o desencantamento evocando o encantamento das águas.
Não cito aqui todos os espetáculos, nem seria objetivo desse texto, que se propõe a fazer um balanço crítico e panorâmico do TREMA! Festival deste ano. Mas compreendo que a curadoria acertou em seu posicionamento político e conceitual. Em todos os trabalhos oferecidos ao público, pude perceber que a crítica ao contexto político nacional e mundial estava atrelada a uma perspectiva utópica. Utopia.
Como disse, foram duas edições do festival apresentadas em 2022. Elas receberam a designação de “Lado A” e Lado B”, respectivamente. O programa do Lado A vinha sob o título “o princípio do fim”, correspondendo ao primeiro ano da pandemia. O Lado B, por sua vez, tinha por título “todo fim é um princípio em si”. Ele abre a perspectiva para o novo, para a mudança, para a utopia de uma realidade que nascerá dos escombros desta em que vivemos.
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Vale, aqui, uma menção especial a uma programação paralela que selou a parceria entre o Trema! Festival, o Quarta Parede e a UFPE, por meio do projeto de extensão ‘Dramaturgias de Palcos & Plateias – nexos, olhares e exercícios críticos em dança’, que aconteceu de 01 de abril à segunda quinzena de junho, sob a coordenação da artista docente Roberta Ramos. As atividades incluíram, além de aulas abertas (online), quatro (04) rodas de conversa (online) e a produção de textos críticos a partir de espetáculos de dança e performance da programação do TREMA!.
A parceria com o Quarta Parede incluiu a participação de colaboradores da revista nas rodas de conversa e a publicação dos textos críticos produzidos pelos participantes do projeto no dossiê #18 Atos de Retomada. A parceria com o TREMA! Festival incluiu a reserva e sorteio de ingressos para apreciação presencial de espetáculos de dança e performance da programação.