Festival Latino Americano de Teatro da Bahia – 13º Edição | Constelar entre ruínas
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Imagem – Lorenna Rocha
Por Lorenna Rocha
Licenciada em História (UFPE), pesquisadora e crítica cultural
Uma constelação imaginária. Era assim que a programação do 13º Festival Internacional de Teatro da Bahia se apresentava, através do texto curatorial escrito por Daniele Avila Small, Francis Wilker e Luis Alonso-Aude. Convidada para integrar o corpo crítico dessa edição, ao lado de Dodi Leal e Valmir Santos, criei, junto às companheiras de trabalho, campos de força para acompanhar a extensa gama de apresentações teatrais, performances, atividades formativas e mesas de debate que compuseram os sete dias de FILTE no ano de 2021.
Realizado virtualmente, nós pudemos participar do IX Colóquio Internacional Cênico da Bahia e do NORTEA – Núcleo de Laboratórios Teatrais do Nordeste. Ainda, acompanhamos espetáculos e ações performáticas que foram divididos em três eixos norteadores (Espetáculos Nacionais, Internacionais e Baianos). Em frente a tantas possibilidades de visionamento, escolhi elaborar uma constelação crítica acerca do recorte nacional programado pelo FILTE.
Durante o festival, resolvi organizar uma metodologia para a minha escrita. A medida em que estava assistindo aos espetáculos, fui montando um mapa, desenhando minhas próprias linhas imaginárias para expressar as palavras-formas-temas que saltavam das obras, enquanto eu traçava conexões entre elas. Na constelação que desenvolvi, percebi que todas as flechas que se entrecruzavam e escapavam pelo papel se ligavam a uma palavra: ruínas.
O pó e os fragmentos de cada universo-espetáculo, unidos pela constelação curatorial, me levaram a um diálogo entre as obras: Museu Ambulante-Atafona, Corte, Ciclos da Vida, ¼ Curta Metragem, Vizinhos, Subsolo, A mulher que desaprendeu a dançar e Se eu falo é porque você está aí. O que construir com aquilo que está em pedaços? Em estado de destruição? Com aquilo que deixa espaço, mas também pode criar volume e excesso com suas partículas, matérias e materiais? Enquanto tentava constelar entre ruínas, outras palavras iam tomando espaço na minha folha em branco, iluminando como fárois minha escrita crítica: corpo, memória, história, museu, território, geografia, política.
Mapa-constelação criado pela crítica Lorenna Rocha durante FILTE 2021
Esses corpos estrelares em forma de palavras fermentaram os pensamentos e apontaram para a multiplicidade das criações pandêmicas que se apresentaram no FILTE. Entre arquivos audiovisuais de teatro, espetáculos híbridos (ao vivo e online), obras realizadas através do Zoom, é inegável que a diversidade do fazer teatral por meio do dispositivo audiovisual se desdobra na materialidade dos trabalhos, criando sentidos e entendimentos acerca dos temas abordados em cada apresentação.
Entre as linhas imaginadas pela curadoria do FILTE, destacou-se o desenho de uma programação que parecia se movimentar para fazer mediação dentro de si mesma, buscando intervir nos territórios artísticos-virtuais escolhidos a serem exibidos durante a edição. Acompanhar os espetáculos nacionais foi poder fazer ver surgir diante dos olhos algumas ferramentas que “facilitavam” nossa aproximação com as obras que nos chegavam no decorrer do festival.
Esse entrelaçamento, sobretudo temático, não só potencializou os espetáculos, como produziu uma resposta para esse presente em destroços, onde memória, história e política ganham pulsões de urgência e se desenrolam com singularidade em boa parte das obras que aqui serão desdobradas, conectadas e apresentadas nesse desenho-escrita.
Orbitando pelas linhas imaginárias
Corte, de Andrea Pires (CE), me despertou a olhar para as ruínas como mote para a construção desse texto crítico. A obra da artista de Fortaleza, que tem como tema as emoções e sentimentos humanos, é composto por uma dimensão vibracional que se materializa pelo movimento dos corpos, da câmera e dos sons. Em um casarão deteriorado e inóspito, vemos três performers dividirem histórias que faz da construção um grande museu fragmentado de memórias, que se espalham pelas palavras, dança e objetos. Fotografias, balões, poeira, galinha, piscina de plástico: tudo se acumula materialmente e se encontra com os eventos e acontecimentos do passado, que se friccionam com a vontade de futuro e o desejo pelo encontro evocados pelas performers. Uma quarta mulher é sempre enunciada, fazendo de sua presença também vibração, que se presentifica pela memória e pelos sons proferidos pelas mulheres que ocupam aquele espaço.
Em meio essa fragmentação, elas se reconectam produzindo e reencenando imagens do passado. Como corpos vetores-condutores de memória, as mulheres se encontram e buscam conexão entre elas, divdindo vontades, sonhos, dores. Se põem ao risco de se colocarem em vulnerabilidade. A câmera acompanha os movimentos de cada uma delas, de forma quase magnética. A medida em que se movem no espaço, as mulheres marcam no território suas histórias e convocam para si o desconcerto, o erro e marcam a geografia do lugar com seus corpos, que por vezes, também podem se confundir com as materialidades da casa.
Do casarão, passamos para as águas que contornam a chegada de Museu Ambulante-Atafona, do Grupo Erosão (RJ). Um museu-bicicleta percorre as ruas de Atafona, uma comunidade pescadora, com pessoas que cantarolam e portam uma série de fotografias antigas da região. Indo atrás dos visitantes e se instalando em algum pedaço de chão do ambiente, o museu faz vibrar memórias com as imagens exibidas ao ar livre. Elas passam a ganhar novos contornos com os depoimentos dos moradores locais. A paisagem atual, marcada por uma série de desastres ambientais ocasionados por exploração capitalista da terra, é rasgada, agora, pelas memórias evocadas nas fotografias do museu e pelas oralidades daquelas que portam o conhecimento do passado daquele lugar e faz tornar vivo, através das palavras, aquilo que estava presente ali em outros tempos.
Apesar de ter como principal matéria o encontro (entre imagem-espaço, memórias-pessoas, imagens-histórias), ao assumir um formato convencional do documentário para a criação do produto audiovisual, a frontalidade das imagens e das entrevistas criaram uma barreira relacional que distancia as espectadoras das pessoas e do espaço que fomos convidadas a conhecer. A camada informativa do trabalho acaba se tornando uma repetição autoexplicativa do trabalho, tirando a força das imagens e dos encontros produzidos pelo museu ambulante.
O cenário de devastação atravessado por Atafona também nos coloca em relação com a falta, sensação que encontramos em Ciclos da Vida, da Cia Lumiato (DF), onde a relação entre uma mulher idosa e uma criança se fundam na impossibilidade, na ausência e no desejo pelo encontro. Essas incompletudes também vão se desdobrar em ¼ Curta Metragem, de Marconi Bispo e Emisandra Helena (PE/RN). A partir de memórias pessoais da atriz e de mulheres internas do Hospital Psiquiátrico Doutor João Machado, o trabalho usa da fragmentação e da repetição para lidar com as fraturas produzidas pela falta de afeto, provocada pela solidão que atravessa o corpo da personagem de Emisandra. Acompanhamos, através das cartelas do material audiovisual, um jogo de palavras que unem e recortam “café” e “preto”, que busca apontar para questões raciais que atravessam a obra.
Apesar de ser feita menção na sinopse de ¼… sobre o hospital psiquiátrico, fica distante no trabalho da dupla o modo como isso opera na construção de sua personagem e da espacialidade onde se dá o jogo de repetição amplificado pela montagem, intervenções do diretor e cortes de cena. Já em uma outra camada, a dinâmica de interrupção da encenação lança perguntas ao regime do realismo e naturalismo teatral dentro do dispositivo do audiovisual.
Em Vizinhos, da Companhia de Teatro Íntimo (RJ), o realismo aparece como uma aposta. É importante pontuar que essa obra fica totalmente fora de orbita das conexões estabelecidas nesta constelação crítica. O tom da discussão temática do espetáculo já fica evidente quando posicionam, lado a lado, um homem branco e um homem negro dentro do enquadramento que nos dá visão do palco. Ambos são vizinhos do mesmo prédio e eles passam a estreitar uma relação quando o jovem negro retorna dos Estados Unidos. O ambiente é dividido de forma simétrica, criando um espelhamento entre os dois homens presentes no palco. Não sendo apenas uma posição inicial, essa também é uma leitura racial, que desde-já é impossível diante da forma como corpos brancos e racializados ocupam o mundo como conhecemos, mundo que o espetáculo parece querer intervir com sua proposição artística.
O personagem negro é construído a partir de estereótipos de “positivação” de sua figura. A autofirmação é o primeiro dado que recebemos ao ver aquele homem negro, que veste uma camisa do Black Lives Matter. Esse lugar da “positivação da figura negra” vai se ampliando com o desenrolar da trama. Além da “consciência racial” manifesta, ele também é intelectual, de classe média e está ávido para ter um encontro com sua “ancestralidade”. Se antes a pessoa negra poderia ser explorada dentro da cena teatral através da negação da humanidade e da vinculação da pretura a signos lidos como “ruins”, virou tendência, pela via da representatividade, criar personagens tão vazios quanto um “pai joão” perigava ser.
A presença negra vai perdendo cada vez mais função no enredo, à medida em que a narrativa se desloca significativamente para o processo de autodescoberta do homem branco enquanto uma pessoa LGBTQIA+. Se o beijo entre os dois personagens poderia ser a representação da pulsão dos afetos entre eles, dentro desse contexto, ele se torna um grande pacto racial, que deixa o espetáculo bem distante de promover uma discussão crítica sobre racialidade no Brasil, como parecia ser a pretenção apontada pela a sinopse desse trabalho.
Retornando às ruínas
Em Subsolo, do Ateliê 23 (AM), retornamos a poeira e ao vazio de um espaço em que uma mulher tenta lidar com seu enclausuramento. Se antes, em outros espetáculos da programação, nos encontravámos com corpos vetores e produtores de memórias, vemos esse corpos se transmutarem para objeto, matéria e ruína. Ao experienciar o tempo do isolamento subterrâneo, vivemos o tédio, a solidão e a avidez da mulher para reinventar a forma de habitar um espaço inóspito. Ela tenta dar outros sentidos para a areia que a circunda: brinca, se banha, se envolve nela. Enquanto isso, nós, espectadoras, vivemos o estado do vazio com a performer.
Um outro corpo-objeto se apresenta a nós, em A mulher que desaprendeu a dançar, também do grupo amazonense Ateliê 23. Apesar de possuir um desenho narrativo bastante conhecido, em que as mulheres traçam e compartilham reflexões acerca das questões e violências de gênero, que findam no autoconhecimento, autofortalecimento e libertação do corpo feminino, como em Preciso Falar, da Cacompanhia (AM), o solo A mulher… adiciona uma outra camada de amargor ao tema, ao unir violência de gênero, violência obstétrica e maternidade. Conviver com a encenação de um corte de uma cesárea, amplificada no fundo do palco elas imagens projetadas de uma câmera que captura de perto a ação, reforça simbolicamente a leitura de um corpo como objeto. Um rasgo que faz do corpo a própria ruína.
Um campo de força
O destino final da programação da FILTE é o espetáculo Se eu falo é porque você está ai. A sensação que fica é que o percurso curatorial nos forneceu ferramentas importantes para recebermos a ação do Teatro de Concreto (DF). Entramos naquele carro dispostas a discutir memória, história, território e teatro. Tudo isso em meio às ruínas: de um país, dos tempos, do mundo como conhecemos. Com o Teatro de Concreto, fomos convocadas a imaginar no vazio, a medida que as performers conectavam a historiografia teatral de Brasília com acontecimentos da história política recente da região e do país.
O cenário de alguma rua ou praça da cidade aparecia através da câmera e se animava com as enunciações, por vezes sonhadoras, por vezes dolorosas, de memórias daquilo que se fala, se rememora, e, portanto, se reencanta e ganha vida novamente pelas palavras. Fomos convidadas, no meio do vazio, da violência e das ruínas de um teatro demolido, de casos de racismo explícitos e do desejo de homenagear aquilo que marcou, conduziu e fez as histórias de uma cidade, a lembrar daquilo que existe enquanto fragmento, mas que ainda permanece vivo. E foi nesse jogo entre vazio e preenchimento, esquecimento e rememoração, que a FILTE aninhavou a sua programação de espetáculos nacionais, e nos evocou o desejo de encarar as faltas e ruínas que também nos atravessam.