Homenagem – Henrique Celibi
Imagens – Divulgação
Com o falecimento, na manhã desta quinta-feira, 11 de maio, do ator, diretor e dramaturgo pernambucano Henrique Celibi, após sofrer um acidente em sua residência, o Quarta Parede publica uma homenagem ao artista nascido em Olinda e conhecido por integrar o Grupo de Teatro Vivencial.
Agradecemos a Rodrigo Porto Cavalcanti por cederem este depoimento de Henrique Celibi, integrante da monografia Diversiones: Um Cabaré de Experiências Queer, trabalho de conclusão do curso de Licenciatura em Teatro (UFPE), orientado pelo Prof. Rodrigo Carvalho Marques Dourado.
Infância
Com 12 anos, eu parei de estudar. Eu estudava no Sigismundo Gonçalves. Eu sou de Olinda, no largo de Santa Teresa, que é um bairro histórico famoso pela Ilha do Maruim, onde eu nasci. Tem um largo que é exatamente onde Guilherme (Coelho, diretor do grupo Vivencial) morou e que começou a ensaiar o Vivencial. Na verdade, eu fazia parte do Vivencial, antes mesmo do Diversiones, pela curiosidade.
Quando eu era criança, e minha mãe precisava trabalhar, eu ia sozinho para escola, porque antes, na minha infância, quem me levava era a minha irmã. Eu perdi a minha irmã quando eu tinha uns cinco anos e ela devia ter uns sete mais ou menos. Ela era a pessoa que cuidava de mim junto com umas prostitutas, pois minha mãe precisava trabalhar.
Como ela era uma menina, ela ficava na casa de uma família, a família de Lira, que é seu João de Lira, que era uma família de pescador, que tomava conta da minha irmã, e eu ficava com essas prostitutas por ser homem. Eu me lembro disso, muito criança ainda, dando os primeiros passos, que eu me encantava com aquelas mulheres porque elas usavam perucas e batons. Quando elas chegavam da esbórnia e iam dormir, era a hora que eu estava chegando. Então, elas ficavam dormindo e eu ficava me travestindo com as coisas delas. Então, depois disso, quando eu comecei a ir pra escola, minha mãe me colocou numa espécie de creche – um hotelzinho, como se chama hoje. Quando eu fui pra escola, eu já sabia ler e escrever porque, na creche, me contavam muitas e muitas histórias infantis e aquelas histórias me fascinavam.
Depois de uns anos, eu fiz uma prova, passei e fui pra uma escola pública, o Duarte Coelho. Isso na época de 1977, Ney Matogrosso surgindo e eu, já na minha veia artística, o imitava numa escola de freira. Imagine! Eram só mulheres que imitavam Ney Matogrosso – e eu lá. Então, essa minha formação artística já vem a partir daí porque eu lembro que elas tinham umas aulas só pra mulheres de flores e frutas de cera, pinturas, talhas. No Sigismundo Gonçalves, já tínhamos aulas de educação artística e educação para o lar, que era uma matéria que a gente tinha. Então, essa formação já vem desde a escola: eu já tinha essa curiosidade artística e, quando eu parei com 12 anos de estudar, no início do segundo grau, a contra gosto da minha mãe, mas eu precisava porque eu era gay, era o único filho e precisava porque já era um adolescente e sentia necessidades, o sovaco já fedia, eu já fumava.
Histórias de Família
Tem um fato curioso na minha história, é muito teatral, eu falo isso pra pouquíssimas pessoas, mas o meu pai, quando eu tinha sete ou oito anos de idade, se casou com uma mulher. No mesmo bairro ele tinha três ou quatro mulheres em ruas diferentes, mas os únicos filhos eram minha irmã e eu. Como a minha irmã morreu, então só ficou eu. Eu me lembro que eu fui pro casamento dele com Dona Lurdes, que já tinha uma filha mais velha.
A minha ligação com meu pai era muito legal, porque nesse meio todo, com essas mulheres todas, eu nunca tive problema, mas minha irmã não gostava – porque eu era muito adorado pelas mulheres. Ela achava que eu chegava pra pedir alguma coisa a meu pai, geralmente um dinheiro pra comprar uma bala, eu ficava tímido. Daí, quando ela me via, achava que eu tava levando recado. Então, isso fez com que eu me afastasse da convivência com o meu pai. Até que ele se separou e foi morar em Paulista, mas, antes disso, mesmo casado, ele ainda frequentava minha casa.
Eu lembro que, algumas vezes, eu chegava do colégio e ficava do lado de fora com a vizinha porque a minha mãe estava com o meu pai dentro de casa. Só que tem um fato engraçado nisso: meu pai comeu a mulher do meu tio, irmão dele, e comentou com minha mãe. Meu tio soube e ele comentou com minha mãe “você vai ficar nessa?”. Resultado: ele acabou comendo a minha mãe – não só comeu, como se casou com ela.
O irmão do meu pai se casou com minha mãe e eu convivi com isso. O filho do meu tio foi morar comigo e tinha aquela coisa: o que minha mãe comprava pra mim, comprava pra ele. Então, era uma tortura, porque eu escolhia as roupas mais absurdas, calças boca de sino, xadrez etc. Eu usava para chocar o garoto – pra ele não ter que usar –, mas ela insistia e fazia as roupas, porque ela era costureira.
Encontrando o Vivencial
Eu achava que já deveria trabalhar e fui ser cobrador de ônibus na empresa Vera Cruz, quando eu tinha uns doze ou treze anos. Não deu certo porque era muito longe, eu era de menor, precisava de um fiador porque se acontecesse alguma coisa e por aí vai… Acabou que eu fui demitido, porque acordava muito cedo e ia de madrugada pra Jaboatão dos Guararapes e a empresa era muito sacrificante pra mim. Depois, trabalhei como camareiro de motel, vendedor de carnê do baú, umas coisinhas assim… Até que apareceu o Vivencial. Na época, eles estavam ensaiando o Repúblicas Independentes, Darling. Isso em 1977 ou 78. Eu via essas coisas porque eles frequentavam a mesma praia, o mesmo bairro que eu. Eles se apresentavam em Olinda à noite.
Às vezes, eu acompanhava umas performances deles no fim do dia. Isso me encantava: eu via quando eles chegavam e ia pra lá. Eu já tinha esse contato, eu ficava alinhavando, costurando umas coisas lá por fora quando eu era pequeno, até que eles viajaram com Repúblicas…. Eles já estavam próximos de montar o Diversiones, que era de taipa, só tinha o teto e tinha o palco, era a única coisa de alvenaria e os banheiros. Depois, isso foi tomando uma proporção: a parede do fundo do palco era uma cortina e, por trás, era o camarim que tinha um espelho. Às vezes, durante um espetáculo, as bichas abriam e mostravam as outras nuas lá dentro se trocando.
Eu tive uma sorte porque, mesmo deixando de estudar, a convivência com essas pessoas me forçavam a continuar estudando – por conta das leituras. Era uma coisa que eu tinha que pesquisar: praticando pintura, pintando telões maiores de cinco metros, fazendo adereços. Fui ficando até que abriu o Diversiones. Lá, os bailarinos eram garçons. Eram pessoas normais, que não eram estudantes de teatro.
Formação
No Vivencial, ninguém estudava teatro. Só tinha Cadengue que estudava; Beto, que era arquiteto e fazia os cenários, e outras pessoas que frequentavam, o João Batista Dantas. E eu fui estudando com essas pessoas, fazia cursos esporádicos com Ilo Krugli, comecei a estudar dança também. Cheguei no Rio de janeiro e fiz uns cursos para concluir o segundo grau, que é a formação que eu tenho.
Durante os doze anos no Rio de janeiro, eu trabalhava 24 horas por dia em escola de samba. Isso me deu uma canja muito grande como profissional e como artista, porque aprendi a ser escultor e virei um aderecista muito requisitado pelas escolas. Eu desenhava, era escultor, decorador de carros alegóricos, assessor de carnavalesco. Então, essa minha formação técnica no teatro, eu fui para aprender e acabei vendo milhões de possibilidades.
No vivencial nós não tínhamos nada. Eram roupas nossas, que, no final, acabavam virando grandes fantasias e isso foi o que me encantou no teatro e fez com que eu investisse nele. Na época, ou você fazia teatro ou você fazia qualquer outra coisa. E esse qualquer outra coisa, na época de ditadura, era ser bancário ou funcionário público. E eu não queria ser preso, porque essa liberdade do teatro, da própria educação da minha mãe ela já me dava, dizendo: “olha, você ta vendo aquele ladrão, aquele cara que ta apanhando da polícia e está sendo algemado? Porque roubou, porque fez isso, isso não é legal”.
Então, ela dizia da necessidade de que se tinha de estudar, até pra ser alguém na vida, porque senão eu seria um marginal e ela já sabia que eu era gay. Porque quando era criança, ela trazia uma bola eu pedia pra ela trocar por bonecas e ficava vestindo porque ela era costureira e eu ficava tentando imitar ela. Mãe sempre sabe de tudo. Então, essa minha vocação sempre foi estimulada pela minha mãe, indiretamente. Quando eu parei de estudar e falei pra ela: “vou trabalhar, vou deixar de estudar”, ela disse: “Leia pelo menos, qualquer coisa, não deixe de ler, porque isso vai ser importante”. O teatro de uma certa forma me supriu isso.
De supetão no Vivencial
O trabalho com adereço foi o que me fez ficar no Vivencial, porque eu era de menor, então isso era um problema, até que quando esse garçom faltou que fazia um bailarino, mas era uma coisa que ele não era bailarino, era com humor mesmo, era pra fazer graça e eu fui jogado, jogado mesmo. Só eram dois bailarinos, ai se faltasse um ia ficar estranho, então eu fui jogado e fiquei fazendo, parecia uma muriçoca, estranha mesmo (risos). A partir dali, porque Beto Diniz ele brigava com Guilherme e insistia na minha permanência porque eu era muito útil pra ele como cenógrafo; eu ajudava a ele a pintar as coisas, eu ficava o tempo inteiro com Beto e Guilherme não, era o diretor e tinha medo, porque eu era de menor e a casa podia fechar, se bem que quando a polícia chegava eu dava um jeito, tinha um guarda roupa enorme no camarim que tinha um fundo que era solto embaixo e por trás tinha esse cercado que faltavam umas duas ripas que a gente propositalmente arrancamos pra poder ser uma fuga, até porque era uma área onde as bichas pegavam os cafuçus da rua que entravam por ali – também tinha isso que as pessoas não comentam.
Então, por ser de menor o que fez ficar foi isso, até esse momento que ele me jogou, me maquiou, ai percebeu meu nariz afilado, ai parou e começou a passar lápis preto, alongou mais o meu nariz, ele teve uma crise de riso, botou uma peruca, que parecia mais a peruca de Jesus Cristo de procissão, e as pessoas me chamavam de Bethânia de andor de procissão, porque ele disse: “Cara, tu ta a cara de Maria Bethânia, vai fazer…”. Eu nunca tinha visto Maria Bethânia, só ouvido, mas visto a presença de Maria Bethânia em cena eu não tinha, então ele dizia: “Ela dá umas carreiras…”. Ai como era tudo muito caricato, as pessoas morriam de rir. Até que uns fãs de Maria Bethânia passavam dias inteiros me ensinando a imitar Maria Bethânia, porque na época era difícil shows dela na televisão. Até que eu vi o Álibi, foi o primeiro show que eu assisti ai tive a consciência dela.
Guilherme era muito próximo de mim e as pessoas achavam que éramos irmãos, porque Guilherme era franzino, as pessoas confundiam. Aí, eu fui ficando no Vivencial, e fui ficando e ficando. E eu fui morar lá, quando minha mãe faleceu, exatamente em 79. Quando abriu a casa Diversiones, isso foi tudo muito rápido, abriu depois do carnaval. Eles foram em dezembro e janeiro participar do Mambembão com Repúblicas… E ficaram construindo adereços pro Bonecas Falando para o Mundo, que estrearia logo depois com a casa, na inauguração da casa. Antes do carnaval, eles fizeram uma abertura, uma festa onde as pessoas conheceram. Essa festa eu pude ver de longe, eu entrei como penetra e me botaram pra fora, porque eu era de menor. A festa virou a madrugada, mas isso era bobagem pra mim.
Os anos passam
Até que eles viajaram e eu fui ficando, ajudando. Quando eles voltaram eu já estava ali dentro mesmo. Fiquei. Eles inauguraram em fevereiro, depois do carnaval em 79 e em junho de 79, quatro meses depois, a minha mãe faleceu. E ai Juraci de Almeida, uma atriz que namorava Guilherme Coelho, ela morava em Casa Amarela. Eu tive a notícia da morte de minha mãe, no intervalo entre dois espetáculos, porque era muito rígido o vivencial, você não podia faltar, a não ser por morte, se faltasse era substituído, então como eu substitui esse garçom, eu fui substituindo, substitui Jadson Costa, a pessoa que me levou pro Vivencial, eu fui pelas mãos dele. Então, a pessoa que me levou, eu acabei substituindo, e ele tinha uma empregada que ele fazia, ele fazia muito sucesso, que era Etelvina, que era em cima de uma empregada que a própria Dercy Gonçalves fazia, era uma paródia, então eu acabei ganhando os personagens das outras pessoas que saiam, e eu fui acumulando, eu fui dando certo, as pessoas se divertiam, eu sempre tive uma vibe pro improviso, e a casa noturna, o Diversiones, o show Bonecas Falando para o Mundo começava de 1h da manhã, então as pessoas já estavam bêbadas e tinham muitos bêbados que falavam, eles achavam que podiam falar e a gente também aproveitava eles e levava pra tirar roupa, fazer strip tease, e do jeito que eles debochavam da gente, a gente debochava deles também. Minha mãe morreu e de imediato Juraci me levou pra ficar uns dias com a família dela em Casa Amarela, eu passei um mês mais ou menos, até que as coisas mudassem, e eu comecei a ganhar cachê nesse momento, porque até então eu não ganhava cachê, eu ficava por ali, pela comida.
E ai fui morar com Fábio e Américo, que na época Fábio estava saindo da casa dele pra se casar com Américo Barreto e foram morar em Rio Doce, numa casa dos pais de Fábio, os pais de Fábio eram vizinhos, isso em 80, e eu fui morar com os dois, eles me adotaram praticamente. Foram meus pais durante esse tempo, até que em 81 eu fui pra Fortaleza com umas pessoas do Vivencial abrir uma casa, o Transação Café Concerto, Tito Matos que era o coreógrafo, estudante de Medicina na época, ele alugou uma casa em Fortaleza, durante um ano, e ele levou esses artistas pra ir pra lá, ou seja durante os 3 meses que estávamos montando ele bancou nossa comida e nossa estadia lá até que a gente estreou, os integrantes eram, Walter Carvalho, Beto Hollywood, eu, Luciana Luiene e Marcos Vinícius, primo de Tito.
Nós cinco fizemos essa casa e depois vieram as outras pessoas que eram convidadas, mas o dinheiro era dividido. Então era uma grana que a gente ganhava e a gente começou a fazer sucesso, era lotado de quinta a domingo e lá eu ganhava bolsas de estudo, eu estudava como bailarino, dava aulas, fazia bicos como professor de balé, e quando voltei em 82, nesse período Fabio e Américo foram pra Natal, eles não conseguiram ficar nem um ano, nós conseguimos ficar dois anos em Fortaleza.
Eles foram direto pra Belém, montaram uma casa também lá, mas não deu muito certo e em 82, indo de volta pra Recife, eles passaram em Fortaleza e eu já não estava gostando muito. Eu queria mais, eu achava que aquilo ali tinha estacionado e eu não ia crescer mais do que aquilo. Então Americo e Fábio chegando lá, pararam lá antes de vir pra cá, pra assistir ao espetáculo, assistiram o espetáculo só que eu já não fazia mais parte do grupo, eu já estava saindo, eu tinha brigado por algum motivo que não lembro, e nessa semana que eles estavam lá, eu estava fazendo um show numa boate, eu montei um show, pra ganhar uma grana e voltar pra Recife. Fiz o show, o show foi ótimo, porque as pessoas me conheciam, o mundo gay na verdade, e o show foi lotado. Fabio e Americo e eu voltamos juntos e chegamos aqui iguais, no zero. Eu acabei ficando com Pernalonga, a gente se encontrou. E eu fiquei com Pernalonga, que morava num quarto numa casa na rua Dom Bosco em Olinda, de um amigo, era um quarto de fundo, como se fosse um quarto de empregada. Nisso, nós montamos Os Filhos de Maria Sociedade, fizemos e foi quando a gente começou. Pernalonga tinha ganhado uma causa no Vivencial, nesse intervalo, na justiça.
Montamos Os Filhos…, deu certo, viajamos, ganhamos uma grana, e reabrimos o Vivencial, que ficou mais um ano mais ou menos e Pernalonga fez uma exposição de arte, sobre nudismo na verdade, uma semana de arte erótica, fizemos Os Filhos…, fizemos O Pastoral Cultural das Meninas do Brasil, fizemos o Assim é Peia, e fizemos uns quatro espetáculos lá, foi quando Guilherme tava montando o Tal e Qual, Nada Igual nº1, com vários associados como produtores, como Zé Mario, Boris Trindade, Carlos Góes. Beto fazia o cenário e eu fui fazer a execução desse cenário, eles me chamaram pra fazer a execução que tava acontecendo numa área dos estúdios da TV Universitária. Nisso, Zé Mario aproveitou e me deu um estágio, fiquei um ano fazendo estágio lá de cenário, figurino e maquiagem de alguns programas que foram realizados.
Anos 80 no Vivencial
Nisso, eu participei com o Tal e Qual… na execução do cenário e fui contra-regra do primeiro em 83, em 84, já com Beto Diniz, ele alugou um espaço e aquele espaço foi construído por Beto, ele cavou o buraco e fez o palco. Fomos nós dois que fizemos todo o espaço da casa. Era feito um circozinho, tinham duas pessoas que ficavam num canhão fazendo a luz, penduradas, era uma coisa bem engraçada. Mas ali, em 84, nós conseguimos fazer uns quatro espetáculos, foi quando eu fiz Greta Tufão, ele montou Folias Brejeiras, com texto de Guilherme e direção de Beto Diniz e teve mais um espetáculo dirigido por Carlos Bartolomeu, que eu não me lembro bem, eu acho que era uma releitura do Utilidade Pública, talvez. Depois que o Vivencial acabou em 82, as pessoas foram pro Opera Bufo, ficou um ano, não deu certo.
E daí eu fui pra Misty, e lá eu consegui realizar alguns espetáculos, como ensaios espontâneos. Eu comecei a mudar a estética daquela coisa da dublagem, eu comecei a criar historinhas. Era uma coisa das bichinhas que se reuniam pra fazer um show e tinha as mafiosas, essas coisas, a plateia gostava daquilo. O primeiro que eu fiz foi Elbe Amargo, que era um entrevistadora extremamente mal humorada, desagradável. E ela tinha uma peruca que parecia Elba Ramalho, por isso que o programa se chamava Elbe Amargo. Deu certo, era pra ficar um mês e acabou ficando três meses, ai os donos da casa viram que eu tava dando certo. Agora o problema de boate é que era o mesmo público, eu já conhecia todo mundo, eu tinha que fazer tipos de arriações diferenciadas, pra poder as pessoas rirem das minhas piadas, e eu fazia piada com eles mesmos, e com nós mesmos.
Porque tem essa coisa do ser menor, o ser negro, o ser homossexual, se a gente se porta como tal, como menor, ficamos menores ainda. Então, eu tirava graça disso que era uma forma de me mostrar superior, a apropriação da coisa. Isso dava certo desde que eu fazia na escola, que eu levava bullying, então vinham me sacanear me chamando de veado, ai eu começava a dar pinta, a imitar Ney Matogrosso, e ai eles não tinham o que fazer, eu já era a própria, vai dizer o que? Eu imitava uma Carmem Miranda, então eles ficavam sem graça, na verdade.
O publico da boate era muito fixo e eu tinha que mudar, daí surgiu a ideia da Cinderela, mas na época eu já fui chamado pra fazer Tal e Qual nº2, porque paralelo ao meu trabalho de ator, eu também fazia cenários, figurinos, então eu conseguia sobreviver com o teatro, não só como ator, mas como isso tudo. Foi quando Boris montou Tal e Qual nº e eu fiz como ator e eu tinha uma grande participação com personagens destaques, ele já me chamou pra dirigir na sequência o infantil chamado O Menino da Bolha Mágica. Eu nunca conheci um homem tão apaixonado pelo teatro como Boris Trindade, e ele me deu grandes oportunidades, eu dirigi o Menino da Bolha Mágica e dirigi Uma Brasa Mora.
Depois estreei O Drama das Camélias com Fábio e Americo, viajamos com a peça, conheci o Rio de Janeiro, Brasília. Depois que terminou a temporada eu fui pro Rio de Janeiro e foi quando eu fiquei no Rio por doze anos, trabalhando com Teatro, fazendo cenários, figurinos, adereços.
Beto Diniz fazia algumas coisas, pegava algumas coisas e me dava pra fazer, ele criava muitos cenários de dança, que eram telões pintados, então ele me passava técnicas que eu não tinha, e como eu era uma pessoa extremamente curiosa, um aluno muito dedicado, bastava ele fazer uma vez que eu já sabia fazer, isso em paralelo as coisas do Vivencial também. Trabalhava pra academias de dança, no qual eu ganhava bolsas de estudo. Ele me via pintando, e via que eu levava jeito, então ele precisava de mim, eu era a pessoa mais útil pra ele dentro das pessoas do Vivencial. Eu costurava, eu era o mais técnico que ajudava tanto ele quanto a Guilherme, a fazer perucas de época, essas coisas, eu tinha essas habilidades. Ele me mostrava os caminhos. Beto tinha um biblioteca enorme de livros de artes, muita coisa de Hollywood, eu estudei em livros de óperas, a ler livretos de ópera, a escutar ópera, a gostar de óperas. Beto foi meu maior professor, que me indicou os caminhos; ele cuidava de mim como um filho. De todos eles poderia ser o meu pai. Ele me mostrou as possibilidades de talento que eu tinha.
Sobre ídolos no Teatro Pernambucano
Eu tenho muito respeito pelos diretores do Teatro Pernambucano. Trabalhei com José Pimentel, Antônio Cadengue, Luís Mendonça. A minha convivência toda na verdade foi com grandes mestres, grandes doutores, grandes professores. A minha formação como encenador vem todos a partir desses contatos e convivências com essas pessoas.
Eu digo pros meus atores: é difícil hoje em dia a formação do ator, porque na minha época era importantíssimo o ator escutar um diretor de teatro. Mas assim escutar de mente aberta, sem defensivas. Porque o ator ta ali pra isso, pra aprender, pois o diretor ta ali porque ele sabe. Então, você tem que fazer o dever de casa, o ator está sempre aprendendo. Um aprendiz sempre. A minha formação de encenador parte, a principio, da minha escuta como ator. Assim como a minha necessidade de ser dramaturgo, que foi na época da Misty, veio da necessidade de um ator de improviso, ou seja, ator de caco. De botar cacos e fazer rir.
Eu acho que o diretor, ele é também autor. Por exemplo, Nelson Rodrigues é um dramaturgo que todas as peças dele já foram montadas milhões de vezes, mas eu sempre vejo as montagens de Rodrigues feitas com aquele peso, que eu não sinto quando eu leio Nelson. Eu morro de rir lendo aquilo. Inclusive nós montamos no Vivencial o Viúva, porém honesta. Ou seja, o papel do diretor é pegar os atores e distribuir em cada função. Porque tem essa história de que o ator bom faz qualquer personagem, eu acho que não; pode até fazer, mas existe um tipo pra cada personagem, cada ator tem o seu tipo. É o que acontece mais comumente na televisão e no cinema. O autor quando escreve ele tem as deixas, tem os textos e os subtextos, e esses subtextos o diretor percebe mais do que o próprio autor de certa forma.
Já no fim de 80, tinham uns espaços no Vivencial pra apresentações extras e externas, teve uma época em que estava desocupada. Beto e Guilherme me disponibilizaram. Era uma época que estava uma febre de skate e patins. E ai como no Vivencial tudo era debochado, a começar pelos títulos, ai veio a ideia de escrever o Role Skate, que era uma espécie de programa de calouros, a apresentadora era uma travesti que eu botava pra entrar de skate, a bicha caia que só, mas ela conseguiu aprender e ela andava de skate e ele era em forma de pênis e a partir daí eram números, dublagens, eu criei um roteiro musical e entre as músicas tinham uns textinhos.
Trabalhando como dramaturgo
O Vivencial tinha a pratica de tirar as crônicas de revistas e adaptar, piadas, etc. No Vivencial, só teve a produção desse meu texto, o Role Skate. Do texto do Cabaré Diversiones, alguns quadros foram retirados do Vivencial, por exemplo O Teatro e a Censura, que era um crônica daquela época. Diálogos Viperinos é o roteiro original do Cabaré Diversiones, é um roteiro meu. Foi de uma necessidade minha de falar do Teatro e dessa deficiência do próprio teatro, então eu usei essas duas personagens, a volta da censura, e ela volta pra questionar a passividade do teatro diante das dificuldades que ele mesmo se afundou.
Foi a partir desse roteiro de Diálogos Viperinos, que eu aproveitei e coloquei a maioria das coisas do Vivencial, principalmente os números musicais, mais todos os textos que eu faço do Fauno (personagem do espetáculo) que era do Jornal Dobrabil, do Glauco Mattoso; a corrupção e a subversão, que eu coloquei porque eu achei exatamente porque era muito atual. Eu mesclei coisas minhas com do Vivencial. A abertura é um texto do Guilherme Coelho, que foi feito para o Ópera Bufo, que na verdade foi feito no Vivencial, e utilizamos no ópera Bufo, porque no Vivencial nós passamos um ano ensaiando um espetáculo que nunca estreou, chamado As Novas Mirandas. O roteiro desse espetáculo se transformou no roteiro do Tal e Qual, Nada igual nº1.
Peguei coisas da minha memória, do quadro Bonecas Falando Para o Mundo e do Repúblicas Independentes, Darling. As cenas do camarim, do espetáculo Cabaré, são cenas que foram retratadas por jornalistas que visitaram o camarim do Vivencial. Eu fiquei muito surpreso com a reação da plateia com o Cabaré. Eu fiz o espetáculo e disse pras pessoas: “nada me incomoda, eu quero fazer o espetáculo, porque eu quero homenagear o Vivencial, porque eu devo isso a eles”. Pois eu sou o que sou, graças ao Vivencial, como ser humano e como artista, eu tenho que me orgulhar disso.
Homenagens ao Vivencial
Já que todo mundo começou a fazer suas homenagens ao Vivencial, eu vi que nada falava do Vivencial, daquela história interna, da história do camarim, aquela convivência que o Cabaré retratou. Por exemplo, eu não vi isso no filme Tatuagem. Eu vi que ele criou uma história romântica, bonita, de uma época em que existia um grupo de teatro, usou como pano de fundo. Só tem o perfume, o cheiro do Vivencial. No Vivencial não tinha essa história de sexualidade. Pernalonga era o gay, a bicha mais pintosa, mais veado que o Vivencial já produziu, e no entanto era o veado que mais tinha mulher.
No Vivencial, não tinha essa problemática de homens e mulheres. Androginia era o que mais chamava a atenção. Lá sempre foi bem definido que travesti é uma coisa, transformismo é outra coisa, transexual é outra coisa, homossexual é outra coisa, não são iguais de jeito nenhum. Isso era muito claro para nós no Vivencial.
Como atores nós líamos muito, tínhamos oficinas com diretores extra Vivencial, trabalhos de corpos. Estudávamos muito o Teatro Oficina, Oswald de Andrade, a obra de Jomard, estudávamos muito sobre a antropofagia. Havia bailarinos, que faziam nossa preparação de corpo, tínhamos preparação de voz. O principio veio da intuição, ela estava presente, mas tínhamos a técnica também. Todos os nomes de intelecto que usavam do Vivencial, acabavam dando oficina para a gente lá. Existia um intercâmbio muito grande na época. Conviver com essas pessoas era muito enriquecedor.
Quando eu era criança, eu era muito pintosa, agora menos, mas naquela época. Até mesmo era uma forma de reagir àquela situação de margem que me colocavam, e eu não sou marginal, mas tinha que ser, vivia na margem. Desde sempre, fui transgressor e subversivo, eu tinha liberdade para isso. O que me espanta é o espanto que aquilo causa e provoca hoje. Eu com catorze anos usava tamanco de madeira, forrado com lamê, com calça sentropê, com os pentelhos de fora, isso às dez horas da manhã em plena cidade, com o cabelo pintados de acaju. Isso naquela época eu causava espanto, mas nem tanto, hoje em dia choca muito mais.Como não vai existir “Bolsonaros”, se ainda existe homossexual que acha que é doente? Acreditar que é doente?
A formação do ator
O trabalho de ator é um dever de casa diário, constante. É observar, é escutar. Eu como figurinista, eu odeio fazer um figurino pra uma personagem e o ator dizer que não está bem com essa roupa, que está feio. Mas eu não estou vestindo você, eu estou vestindo uma personagem, que você tem que se comportar como ele.
O elenco do Cabaré eu cheguei pela estética, principalmente. Pois, o que menos me incomodou foi a formação de ator, eu queria que os atores soubessem o que estavam lendo, pois há uma dificuldade muito grande em atores que não sabem o que estão lendo, talvez pela falta da prática das leituras de mesa, como no Vivencial, nós líamos várias peças, mesmo sem as montar. Mas pelo fato de questionar e discutir aquele texto, aquela história.
No Vivencial, um guardador de carros, caolho, sem dentes, virou um ator que as pessoas adoravam e aplaudiam, então eu não poderia ser muito exigente, que apenas que as pessoas soubessem o que estavam lendo.
O processo inicial que eu falei era pra ser montado pela Cia do Riso e dirigido por Carlos Bartolomeu para acontecer no Teatro Boa Vista, com toda pompa do Palhaço Chocolate; mas ele tinha aquele problema por conta do striptease, e eu não ia abrir mão disso. Porque era o Vivencial. E na minha memória umas das cenas mais bonitas era ver uma mulher e uma travesti, como em um espelho, que eu retrato no Cabaré. Eu não posso fazer um espetáculo onde eu tenha que cortar as cenas principais do que eu estou falando.
Mas eu tive dificuldades com os ensaios, os atores eram muito novos, eu acho que eles mesmos não acreditavam no projeto, muitos não queriam ficar nus, etc. Desistimos do projeto e eu resolvi montar por mim mesmo posteriormente, pois achava que valia a pena essa homenagem. Principalmente pelo texto do Teatro e a Censura, que eu achei que não seria bem recebida pela classe teatral, pois eu digo a verdade nua e crua, mas pelo contrário, as pessoas gostaram e elogiaram.
Eu tive problemas, porque a maioria dos atores era de famílias evangélicas, com isso era um problema para as pessoas ficarem nuas. Eu só ensaiei a cena de nudez, no ensaio geral. Eu marquei a cena durante os ensaios, com a travesti e a menina eu ensaiava separado, e só no ensaio geral ensaiei ela completa. Houve algumas substituições, porque o Vivencial me educou a não enxergar o ator como estrela única do espetáculo e depender dele para acontecer, ninguém é insubstituível. Eu não poderia me tornar refém do meu próprio trabalho. Por exemplo, tiveram dois atores que foram substituídos por indisciplina, porque não me escutavam; e nem eram coisas vinculadas ao espetáculo, eram coisas da convivência do dia a dia.
Eu mesmo, não me sinto nada, não me sinto ninguém. Henrique Celibi é um nome, mas é uma fachada. Se fosse uma empresa de renome, seria uma empresa falida. Eu ganhei muito dinheiro na época da Cinderela, mas era um dinheiro que eu gastava, porque nem eu acreditava que estava ganhando aquilo. No Vivencial, tínhamos esse glamour, mas não nos importávamos, nos importávamos com a convivência, e foi isso que quis mostrar aos atores no Cabaré. Como ator, eu nunca ganhei dinheiro. Na verdade, às vezes, pagava pra fazer. Ganhei dinheiro como técnico, como autor, mas como ator não. Ator não consegue sobreviver apenas disso, tem que ter outras funções.
Nos ensaios do Cabaré, tive muito problemas com horários, pois eram muitas pessoas no elenco e eu criava a agenda em cima desses horários, muitas vezes vinha a pé do arruda para o centro da cidade, por não ter a passagem de ônibus, chegava e eles atrasavam, não vinham, etc. E ai pela segunda vez eu anunciei que iria desistir de montar o espetáculo pela segunda vez, porque não tinha mais ânimo pelo descomprometimento dos atores. Foi quando Ivonete falou do incentivo do Funcultura, e eu me inscrevi e fui contemplado. Resultado, fizemos catorze apresentações, consegui pagar a todo mundo um cachê meramente digno.