Nachtergaele tensiona vida e arte em inebriante performance
Por Vinícius Vieira
Professor, Ator e Jornalista
Ele revela-se entre pausas, silêncios profundos e dilatações. Empresta a voz para a sua mãe e verbaliza por ele mesmo. É preciso coragem para compartilhar a própria desventura com honestidade e, ainda mais, maturidade técnica para transformar um turbilhão de sentimentos brutos em poesia cênica. Com essas competências, Matheus presenteou generosamente o público recifense ao abrir o 22° Janeiro de Grandes Espetáculos (JGE) com o seu Processo de Conscerto do Desejo, nos dias 8 e 9 de janeiro, no Teatro de Santa Isabel. A encenação parte de textos não dramáticos, assinados pela mãe de Matheus, a poetisa Maria Cecília Nachtergaele. Os escritos mesclam poesia e ações do cotidiano, como os fragmentos do “Diário do Bebê”, narrativas sobre os primeiros meses de encontro mãe e filho e os cuidados maternos. Essa escolha de utilizar registros oficiais, denominado por Patrice Pavis como “fontes autênticas”, aproxima o espetáculo do Teatro Documental, no qual lança mão de documentos da vida real, inclusive os pessoais, para tecer a cena – algo que também dialoga com o Biodrama.
Matheus é um ator voraz nas diversas linguagens, televisão e cinema, mas assisti-lo no teatro é ter um susto. Sua habilidade corporal e, especialmente vocal, surpreende quem está acostumado a vê-lo nas telas. Em “Processo…”, o intérprete não só recita, mas também canta acompanhado de violão (Luã Belik) e violino (Henrique Rohrmann). Seu corpo é dotado de uma presença que aprisiona os olhares, além das ações físicas desempenhadas com precisão e inteligência estética. A imagem cênica é composta por uma simplicidade sofisticada. As duas cadeiras (sendo uma para um dos músicos e a outra para o ator), o espelho ao fundo, mas centralizado no palco, a iluminação, e a trilha sonora solene, executada ao vivo, estão presentes para desvelar o que se fora. Tudo é posto para anunciar a saudade do que não foi vivido ou daquilo que fora vivenciado e, agora é rasgado sem dó, em público. A ausência também está no vestido preto usado pelo ator, na pigmentação negra próxima aos olhos e, logo no início, quando o artista colore os próprios braços e rosto com tinta amarela, como uma tentativa de pintar a mãe em si, uma forma de desafiar a morte reapresentando-a à vida. Dois Nachtergaeles fundidos em um só pelo mistério da arte.
A atuação de Matheus não pretende mimetizar a mulher que o gerou. O ator é atravessado a todo instante por lapsos, fragmentos do que poderia ter sido Maria Cecília sem a intenção de criar partituras de um outro ser. Em cena, vemos uma construção “incompleta” de um Matheus que procura e se perde na mãe. É como se a todo instante dúvidas sobre quem partiu fossem lançadas e a representação fosse uma busca por respostas jamais obtidas em sua totalidade, como um ensaio pós-estruturalista. A inquietação proveniente da vida é expressada numa escala que perpassa gritos, sussurros e silêncio, todos repletos de uma imensa vontade de se descobrir, se compreender. Entender a efemeridade da vida através da efemeridade cênica. O espetáculo é uma forma de tensionar o ficcional com o real, a pessoa com a personagem. Com ele, a subjetividade da vida é levada à cena como um enigma que precisa ser decifrado a todo custo. A narrativa proferida atinge o que há de extremamente humano em todos nós, tocando-nos, emocionando-nos, impactando-nos.
O trabalho enunciado remete a outros dois, frutos da produção pernambucana: a montagem Olivier e Lili: uma história de amor em 900 frases (2012), no qual o encenador Rodrigo Dourado propõe mesclar narrativas ficcionais do texto Les Drôles, de Elizabeth Mazev, com fragmentos da história de vida dos atores Fátima Pontes e Leidson Ferraz; e o espetáculo Na beira (2014), protagonizado por Plínio Maciel que narra episódios da própria vida na sala do apartamento onde mora, em uma atmosfera bastante acolhedora. Essa última obra também tem a encenação de Rodrigo Dourado, estudioso que mantém uma pesquisa sobre o Teatro Documental desde 2006, no grupo Teatro de Fronteira.
Há momentos do espetáculo em que as palavras já não são capazes de comunicar o suficiente. Um desses instantes é quando o sensível Matheus aproxima-se do músico e se encosta na perna dele, em busca de afago para alma (seria um desejo do artista ou o anseio de sua mãe transformado em metáfora da cena?). Também é possível destacar o instante no qual ele olha a própria imagem no espelho como se desejasse encontrar a mãe no pouco (ou muito, como saber?) que há dela em si. A situação evolui quando Nachtergaele bate na própria imagem em desassossego, tornando a ação ainda mais dramática. Nesse ponto da apresentação é quase impossível enxergar a fronteira que distingue um do outro. Apenas sentir faz sentido. Mas o solo é também um espaço de felicidade, uma homenagem à vida, à Maria Cecília Nachtergaele. Apesar do amor, apesar da dor, do fim inexorável a nos assombrar, o encontro com o outro ainda mostra-se fundamental, embora sejamos sobreviventes de tempos líquidos, para lembrar Bauman.
Talvez seja por isso que cada vez mais o teatro e outras linguagens aproximam-se da vida com a inserção de elementos da realidade no âmbito da ficção. Talvez essa tensão queira nos lembrar o que é emergente, o que há de mais humano em nós. Além disso, a encenação abre uma perspectiva que nos leva a questionar: o que pode ser o teatro hoje?