“Queremos desvendar as caixas-pretas do cotidiano” – Entrevista – Coletivo Mazdita
“Quando não somos produtores de tecnologia, somos consumidores e isto nos deixa vulneráveis a pensar o mundo do outro…”
Na ocasião de sua passagem pelo TREMA! – Festival de Teatro de Grupo de Recife, o Coletivo Mazdita – formado pela pernambucana Flávia Pinheiro e pelo argentino Leandro Oliván – aceitou participar de uma breve entrevista para que o público pernambucano conheça um pouco deste trabalho realizado com tanto afinco em uma parceria entre Argentina e Brasil e todo o tango que aparece desse samba.
Entrevista – Márcio Andrade | Imagens – Divulgação
Qual o principal mote do Coletivo Mazdita e o que vocês vêm descobrindo nas pesquisas do grupo?
O Coletivo Mazdita surge do interesse comum por instalações de arte com objetos em quantidade que se movimentam. Deste encontro, surge o trabalho Aires de Cambio apresentado no programa Interactivos 2012 da Fundacion Telefonica em Argentina. Aires de Cambio é uma instalação interativa na qual ventiladores hackeados se movimentam de acordo com o deslocamento do espectador. Mazdita propõe a arte como experimentação, como um evento, como uma tentativa fracassada ou a construção / destruição de algo.
O Coletivo pesquisa o desenvolvimento de dispositivos eletrônicos que estabelecem uma relação entre o corpo em movimento e a relação do espaço com os objetos. Através de interfaces interativas propõe performances, intervenções urbanas, instalações e vídeos. Atualmente, trabalha na pesquisa Organ City Rizoma, um entorno rizómatico de captura de movimento e nos procedimentos Diafragma; que envolvem o corpo e as tecnologias de produção de ruídos, imagens e sensações.
Acho que ainda não descobrimos muito, mas percebemos que é incrível poder trabalhar em relação com outros.
O TREMA!, neste ano, apresenta como temática o “Ocupar e Resistir”, que reflete sobre as formas de conduzir o viver cotidiano na cidade. Como o Coletivo Mazdita vêm travando atritos e diálogos com os modos de viver em sua(s) cidade(s) de origem?
Os nossos trabalhos repensam a forma com que vemos os objetos e o consumo. Propondo de certa forma, uma necessidade de reinventar o cotidiano, entendendo que não somos consumidores passivos, pensamos na ideia de obsoleto subordinada à máquina do capitalismo, na aprendizagem contínua e pela experiência em relação às grandes máquinas de escolarização. Em outro mundo possível, onde táticas de guerrilha baseadas na improvisação reconfiguram os cenários urbanos latino americanos surge a nossa experiência em Buenos Aires. Outra cidade, outra dinâmica em relação ao espaços públicos, em que, apesar do frio, as pessoas caminham mais, utilizam o transporte público depois da meia noite, a bicicleta não só como lazer de final de semana, e habitam praças e parques… No entanto, justamente neste contexto surge Contato Sonoro (performance que está na programação do TREMA!).
Cotidianamente, os aparatos tecnológicos funcionam quase como extensões do corpo e das práticas humanas. De onde parte o interesse do coletivo em travar diálogos harmoniosos e dissonantes entre um e outro?
Não sei se os diálogos são harmoniosos ou dissonantes. Não é dicotômico. Refletimos sobre a relação entre o corpo e as tecnologias analógicas e digitais porque, em algum ponto, nos angustia viver num futuro outro que não aquele prometido ou imaginado no passado. Uma sociedade democrática na qual o conhecimento seria ilimitado e atravessaria fronteiras prometidas pelos caminhos da digitalização é, na atualidade, a maior estratégia de controle do corpos e das mesmas fronteiras.
Os dispositivos tecnológicos são práticas humanas, decorrentes de necessidades que são concebidas em uma cultura, em um contexto e para certas pessoas. Nós escolhemos usar dispositivos e como. Quando não somos produtores de tecnologia, somos consumidores e isto nos deixa vulneráveis a pensar o mundo do outro. O uso de ferramentas e de tecnologias lúdicas contém uma carga moral e herdar a visão de mundo de seus produtores. Nenhum objeto é desprovido de história e modos de pensar e é por isso que somos críticos da sua utilização e tentar desvendar os seus mecanismos operatórios.
Parece que as máquinas têm um desenvolvimento e uma “evolução” natural que está distante da nossa vontade. Parece que é natural que se tornem obsoletas, que não podem ser modificadas ou não saber onde estão armazenadas as nossas informações e de que maneira, quem tem acesso a ela, por que e como a utilizam. Nossa cotidiano consiste em dispositivos cujo funcionamento não entendemos, contendo parte de nós e, ao mesmo tempo, nós formamos parte deles. Se não questionar os usos, suas práticas e funcionamentos, perdemos a liberdade de escolher como queremos viver.
Como funcionam, nas pesquisas de vocês, as relações entre o multimídia e o teatral? Como estes elementos são (re)pensados nos seus processos criativos?
Nós não trabalhamos com multimídia, mas com transdisciplinar. Não há fronteiras, não se sabe quando termina algo quando começa outra coisa. Nossa pesquisa e nossa forma de pensar vai de encontro com a noção de espacialização, porque nosso foco está em como nos relacionamos com o mundo e quais os mecanismos que operam nesta relação… As disciplinas estão sempre mudando e nós também.
Utilizamos tecnologias porque estas fazem parte do nosso corpo, da nossa maneira de ver o mundo e influenciam o nosso comportamento. Tentamos nos apropriar das ferramentas, de repensar suas práticas e ideologias. A tecnologia é uma experiência encarnada. Temos a intenção de desvendar as caixas-pretas do cotidiano. Se não podemos ser produtores, pelo menos, criando híbridos, transgredimos os usos, e através da experimentação nos apropriamos também dos mecanismos.
No espaço teatral, pensar-se sobre o desenvolvimento de uma problemática em um tempo definido e um espaço definido, dialogando com uma linguagem já definida por este contexto. O espaço do teatro também é institucional e, desta forma, temos que trabalhar com as suas regras. No palco, seguimos um programa, etapas, ações desenvolvidas para uma finalidade específica. Não buscamos uma representação, mas um fazer, uma prática do movimento.
Vocês trabalham com performances, intervenções urbanas – que, muitas vezes, reverberam em respostas imediatas do público. Como a cena concebida na sala de ensaio se transmuta quando vai para a “vida real”?
Hum…. sempre estamos na vida real e por esta razão sempre performando em algum sentido.
Na performance Diafragma, o programa é orientado para um espaço fechado, o que implica em um série de ações que abarcam muito programas. A palavra programa vem do texto Como Criar Para Si Um Corpo Sem Órgãos, de Gilles Deleuze e Félix Guattari (leia aqui um artigo a partir deste texto) e é bastante usada pela pesquisadora Eleonora Fabião.
Para o tipo de performance que venho desenvolvendo agora, utilizo um certo treinamento corporal que incorpora diferentes técnicas como o Release, a técnica Iasparra, o Feldelkrais, o treinamento aeróbico, a yoga e outros que me permitem ver ao mesmo tempo varias possibilidades em simultâneo a tomar decisões a partir disto.
São experiências compartilhadas com outros corpos. No caso das intervenções, elas podem acontecer no espaço urbano como é o caso de Contato Sonoro, mas podem acontecer em um entorno natural… Uma vez, fizemos intervenções na Patagônia em um projeto de Residência chamado MANTA.
Nem sempre as performances exigem o contato com o público. Nesta residência, realizamos a performance Abandeirada, na qual uma bandeira é costurada na minha pele, cuja visualização só é possível através do vídeo. Muitas performances acontecem sem público, sem espectador, sobrevivem ou ganham vida através dos seu registros. Pensar as novas tecnologias é justamente refletir sobre o estado de presença em algum momento indispensável para a tal Arte da Performance.