Uma escuta das formas | Entrevista – José Fernando Peixoto de Azevedo
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Imagem – André Voúlgaris
Até 23 de junho, a temporada do espetáculo Depois do ensaio, Nora, Persona segue com sessões às quintas, sextas e sábados, às 19h, no Sesc Avenida Paulista. Dando continuidade à pesquisa sobre o terror nas relações cotidianas, em sua dimensão racializada, o encenador José Fernando Peixoto de Azevedo estabelece uma relação entre os textos “Depois do ensaio” e “Persona”, do escritor e cineasta sueco Ingmar Bergman (1918 – 2007), e “Casa de Boneca”, do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828 – 1906). As obras, que discutem temas como o abandono, a inveja, o teatro e o cinema, ganharam novos contornos a partir da dramaturgia de Azevedo.
A questão da interracialidade passou a integrar a trama. Em Depois do ensaio, Nora, Persona, o público assiste a três peças, uma na sequência da outra. A experiência tem a duração total de 3h40 com um intervalo de 20 minutos. Embora a articulação dos textos não seja imediata, Azevedo realiza uma combinação de trajetórias, fazendo com que uma fábula vá se desdobrando na outra, com pequenas adaptações que dão a ver a atualidade do material.
Para saber mais sobre o processo de criação do espetáculo e os pressupostos que guiaram a encenação, o co-editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade, bateu um papo com o encenador José Fernando Peixoto de Azevedo.
Você possui uma trajetória atravessada pelo cinema, dramaturgia e pela pesquisa/docência. Como foi seu encontro com essas linguagens e práticas e como elas foram dialogando e se complementando na tua trajetória?
A pergunta sugere um certo balanço de trajetória, algo que tem se apresentado para mim, de maneira decisiva, às vésperas dos cinquenta anos – o que, para um homem negro, gay, que vem da periferia e que cresceu com o assombro da morte do pai ainda jovem (aos 39 anos por AVC), tem força de sobrevida. Eu narro no texto para o programa da peça a coincidência de coisas que foram tomando os últimos dias de ensaios de Depois do Ensaio, Nora, Persona.
Umas dores de cabeça, duas idas ao Pronto Socorro, até que um formigamento ligou o sinal de alarme e a suspeita de um AVC. No final, o AVC foi evitado, a pressão se ajustando e a descoberta de uma cefaleia em salvas. A coisa não tem cura, a dor atormenta um tanto e tudo o que se pode fazer é tentar evitá-la.
Quando vem, só o oxigênio, se a tempo, ameniza. No acompanhamento, durante o período de internação, o neurologista se apresenta: Dr. Ibsen. Acho que essa história guarda um pouco de como as coisas acontecem, de como os encontros se dão. Teatro, filosofia, cinema são coisas que se misturam pra mim, sem que eu saiba estabelecer uma ordem, senão circunstancial, ao modo como se impõem a cada momento em meu trabalho.
Primeiro o teatro, ainda no Campo Limpo, na adolescência nos anos 1980. Depois, a curiosidade pelos livros de filosofia e o fascínio pelo cinema. Uma faculdade inacabada de cinema e a filosofia se impondo até o doutorado, enquanto o teatro ia ganhando forma, se desdobrando em grupo (o Teatro de Narradores, que durou quase vinte anos) e absorvendo o cinema como elemento na cena. Era um outro Brasil, um outro planeta, e o desmanche neoliberal começava a desenhar as imagens de fim de mundo que agora se confundem com o mundo.
Como foi o seu encontro com o cinema de Bergman e com a dramaturgia de Ibsen que conduziu à faísca de Depois do ensaio, Nora, Persona? O que te transparecia no cotejamento entre os trabalhos de ambos que você percebia como possibilidade de se expressar?
Nem sempre gostei de Bergman. Parecia demasiado metafísico para mim. Meu brechtianismo arraigado adiou esse encontro. Havia, é verdade, um fascínio pelo enigma que parece sempre emergir de seus filmes, particularmente Persona. O reencontro se deu recentemente, primeiro de uma maneira temática – o teatro, o trabalho das atrizes – até que, na lida de sala de ensaio, deu-se uma real descoberta das formas.
Seja na conversa em abismo encetada em Depois do ensaio, até o abismo e a fisionomia das quedas em Persona. Gosto do modo como um comentador da obra de Bergman identifica o cruzamento entre melodrama e desnaturalização das formas em seus filmes, dando margem ao que ele chama de melodrama brechtiano. Aos poucos, vou compreendendo que aquela metafísica identificada na juventude é, na verdade, a descarne de uma anatomia ética e social sem recuos.
Em entrevista ao Portal de Dramaturgia, você comenta um pouco sobre a importância da sala de ensaio no seu processo de criação dramatúrgica. Em Depois do ensaio, Nora, Persona, o processo de concepção dramatúrgica também seguiu esse procedimento ou o fato de se basearem em textos de outros autores o conduziu de formas distintas?
A sala de ensaio é um espaço e um tempo de pensamento, onde e quando o trabalho de imaginação ganha corpo, forma. Não sei fazer de outro modo, dependo da experimentação cotidiana, desse pensar em voz alta, da lida com atrizes e atores para fazer uma ideia acontecer. É ali, na sala de ensaio, que a intuição se confirma como método.
Em Depois do ensaio, Nora, Persona, os aspectos metalinguísticos e o atravessamentos de linguagens artísticas se mostram bastante evidentes. Como foi o processo de investigação para encontrar essas escolhas e como você sente que elas reverberam as temáticas que te interessa abordar?
Até esse momento, a experiência tem me mostrado que temas determinam formas. Isso não quer dizer que exista um determinismo temático operando nas coisas, mas antes, que as formas não estão soltas no mundo, à espera de alguém que as cate e nomeie. O trabalho consiste um tanto em cavar, decifrar, mobilizar, ajustar, abandonar, recusar ou aceitar o modo como as coisas se desdobram, conforme e contra um plano.
Isso que você nomeia metalinguagem ou atravessamento de linguagens resulta, aqui, e talvez sempre, de uma escuta das formas ali onde elas resistem no material. Experimentamos com temporalidades distintas – a da cena em situação de conversa, a do melodrama televisivo, a de um cinema fugindo dos silêncios – e tudo isso se desdobra num maquinismo da cena confrontando os corpos, cercando esses corpos que resistem.
Então, a questão da mulher negra, da atriz negra, do convívio interracial e geracional na cena, as interrogações sobre maternidades negras e sobre uma certa ideia de criação, são temas mas são sobretudo relações acontecendo, em processo, em resistência, forçando a máquina.
Em diversos trabalhos que você vem desenvolvendo com outros artistas e coletivos, as temáticas em torno das negritudes também vem se atravessando de variadas formas. Como você percebe outros modos de abordá-la em sua trajetória em Depois do ensaio, Nora, Persona?
Em um trabalho que realizei em Berlim, recentemente, um ator negro alemão, a certa altura, durante um debate na sala de ensaio, disse que via em mim um reflexo do pai africano dele. Ele, um negro alemão mestiço, era visto pelo pai como uma vitória da própria trajetória, pois o filho era alemão e não tão preto. Mas ele, o filho agora ator, via o pai ainda como um africano, e compreendeu, anos depois, que nunca de fato o respeitou.
A conversa chegou a esse ponto porque, ele dizia, o trabalho que fazíamos impunha que ele olhasse para a própria trajetória, e era incontornável que olhasse agora para o seu filho, uma criança alemã, nascida com a pele branca, alguém que cresceria sem se defrontar com os mesmos problemas do pai e do avô. Mas uma pergunta se impunha então a ele, o ator afro-alemão.
Nos seus termos: “e se meu filho me desrespeitar como eu desrespeitei meu pai, pelo simples fato de eu ainda ser negro?” Essa pergunta me devolveu para mim mesmo, e acho que tenho compreendido que fazer teatro, a essa altura, é olhar a minha própria tragédia nos olhos. Tem coro, e tem máscara.
Em Depois do ensaio, Nora, Persona, as questões sobre as negritudes são todas elas questões sobre o teatro. Estou falando de teatro, e o que você vê em cena é um modo possível de um negro falar sobre teatro, hoje, enquanto esse mundão acaba. E então surge a Sociedade Arminda, esse aquilombamento que resulta do trabalho de uma peça anterior, o Ensaio sobre o terror, é uma espécie de coletivo que se encontra, a cada momento, mobilizado por um interesse comum, a partir de algumas questões, a fim de fazer a imaginação trabalhar.
SERVIÇO
Depois do ensaio, Nora e Persona
Com SOCIEDADE ARMINDA e direção de José Fernando Peixoto de Azevedo
De 24 de maio a 23 de junho de 2024
Quintas, sextas e sábados, às 19h.
Domingos e feriados, às 17h.
Quinta, 30/05, às 17h.30/030/05, às 5, às 17h
Quarta, 19/6, às 19h.
Duração: 230 minutos, com intervalo
Sesc Avenida Paulista – Local: Arte II (13º andar)
Av. Paulista, 119 – Bela Vista, São Paulo – SP, 01311-903
Ingressos: R$50 (inteira), R$25 (Meia) e R$ 15 (Credencial plena)