Zé Celso Eterno
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Zé Celso, um dos maiores dramaturgos e encenadores do teatro brasileiro, faleceu no dia seis de julho de 2023, na capital paulista, aos 86 anos, com ferimentos causados pelo incêndio no apartamento no Paraíso, na Zona Sul de São Paulo.
Duas semanas depois dessa imensurável perda, a equipe do Quarta Parede continua relembrando o legado desse amante e amado do teatro. Para isso, convidamos professores, artistas, jornalistas e pesquisadores que colaborassem com uma breve e singela homenagem. Confira abaixo os depoimentos
‘O antropófago Zé Celso e o Oficina, com sua pegada anárquica e corajosa, encarnou como nenhum outro a marca de seu tempo, artisticamente e politicamente, rompendo estruturas, causando rupturas, criando possibilidades. Acabou tornando-se estandarte, exemplo e símbolo da vanguarda artística e da resistência do espírito diante do atraso. É inegável sua influência no trabalho que desenvolvemos no Totem e em outros trabalhos teatrais, como: adotar a antropofagia oswaldiana como um princípio norteador, a aproximação com as ideias de Antonin Artaud, (que Zé extrapola), não lançar mão do drama, de olhar para o indígena e o afro, a veia ritualística, a questão sensorial, a interação com o público… e muito mais. Sabemos o quanto devemos ao Zé Celso, simplesmente genial’
(Fred Nascimento, Encenador e Fundador do Grupo Totem)
‘Lembro da primeira vez que assisti a um trabalho do Oficina. Foi em 2007, quando o grupo veio a Recife com “Os Sertões”. Na estrutura montada ao lado do Armazém 14, me deparei com uma experiência tão única (a peça era “A Terra”) que saí desnorteado. Eu tinha 16 anos e começava a vislumbrar fazer jornalismo. Três anos depois, já na universidade, fui ao Nascedouro de Peixinhos experienciar “Bacantes”, parte do projeto “Dionisíacas”. Foi outra revolução interna. Acho que era impossível sair incólume de um de seus espetáculos. Zé Celso ativou em mim, e em várias gerações de brasileiros, a possibilidade de enxergar e vivenciar o mundo de forma coletiva, mais livre, sensível, através de um teatro vivo, pulsante, questionador e cheio de libido. Quando o entrevistei em 2021, para a Revista Continente, estávamos ainda na pandemia e ele compartilhou comigo suas percepções sobre a vida, o teatro e o Brasil. Mesmo por vídeo, era inegável o seu magnetismo. Foi um alento em meio ao caos externo e também às minhas próprias questões, isolado e confuso. Termino esse depoimento com a fala dele que encerrou nossa conversa, e que acredito carregar muito da sua visão holística e revolucionária: “O inconsciente é o meu terreno, meu território. Eu venho da terra e o meu inconsciente está ligado a ela, que é um organismo vivo.” Zé Celso era uma estrela brilhante – e sua luz continuará a nos iluminar’
(Márcio Bastos, Mestre em Comunicação (UFPE), Jornalista e Assessor de Comunicação)
‘O teatro de Zé Celso era feito para afetar. Teatro de bruxo: nos lançava vários dardos, várias cores, vários sons, a nos atravessar a pele do corpo e entrar pelas veias, pelos vasos, pelos músculos, criando espasmos, nos mobilizando, nos bagunçando, nos transformando. Uma experiência mística, gozosa e muito profana. A cena era laboriosamente criada com a força motriz de várias ancestralidades. Primeiro, a ancestralidade grega, que nos foi legada no processo de colonização. Dioniso era a potência sempre evocada (Evoé!), irrompendo na cena com sua cabeça de bode, entre bacantes e sacerdotes, delirando em euforia mística. Segundo, pela ancestralidade dos povos originários destas terras de cá, donde a figura do xamã se sobrepõe, com suas feitiçarias, com seus sortilégios, nos convocando para ouvir e sentir os mistérios sagrados da natureza, do mundo dos vivos e do mundo dos mortos. Terceiro, pela ancestralidade negra, da diáspora, com a presença de Exu e das demais entidades, manifestando-se com os batuques do tambor e com danças de orixás. Teatro antropofágico, alimentava-se da influência de nossas diversas matrizes culturais, nunca perdendo a natureza ritiualística e profunda. Zé Celso era isso: rigor apolíneo procurando domar a fúria dionisíaca esmagadora. Tudo isso aliado a uma força política, anti-imperialista, anticapitalista e anticolonizadora. Sua presença jamais será esquecida. Seu legado corre em nossas veias: continuará reverberando a cada encontro pelo teatro, a cada acontecimento teatral, a cada mergulho ancestral que viermos a fazer com e pelo teatro. “Eu sou o teatro”, dizia ele. Não sei se ele era o teatro, mas que seu teatro tem sido um dos melhores e mais autênticos, disso não tenho a menos dúvida. Evoé! Axé! Aho!’
(Bruno Siqueira, Professor, Pesquisador e Integrante da Quarta Parede)
‘Meu primeiro contato com Zé Celso e o Teatro Oficina foi inspirador pra minha carreira de ator. Assisti ao espetáculo Cacilda!, em Recife, no início dos anos 2000 e fiquei impactado com a grandeza daquela encenação. Ali, os corpos do Oficina realizavam um teatro transgressor, poético, ritualístico, profano, catártico e meu coração aprendiz se encheu de encantamento com a força arrebatadora daquela experiência’’
(Arilson Lopes, Ator e Palhaço. Diretor Artístico dos Doutores da Alegria (PE))
‘Em 2010, em Olinda, no Nascedouro de Peixinhos, eu me sentei ao lado dele n’O Banquete. A grandiosa estrutura móvel montada para receber a turnê Dionisíacas em Viagem, do Teatro Oficina, comportava cerca de duas mil pessoas. No espetáculo que vi, Zé era Sócrates. Melhor dizendo: Zé era Zé, e Sócrates cabia nele. Em meio à orgia cuidadosamente desenhada, podia-se ouvir o voo de uma mosca. Zé ensaiava muitas horas, eu soube depois. Seus ensaios podiam ser tão longos quanto os seus espetáculos. Na cena havia um frescor, uma leve embriaguez. O bom teatro, mesmo o mais racional, não escapa ao “famigerado dom do improviso”, de parecer que a coisa nasceu ali por uma espécie de milagre. Esses instantes de teatro espocavam como rolhas em animada festa. Embora eu soubesse que seria quase impossível uma coisa grandiosa como aquela não ter sido ensaiada à exaustão, me deixei enganar. Era conduzido pelo sonho e de repente despertava. Nesses momentos, desperto do sonho, pensava secretamente: e se perderem o controle? Essas pessoas nuas, essa erva sagrada passando de mão em mão. E se a vida ordinária atravessar a cena? Atravessou. Um homem sem camisa e aparentemente embriagado invadiu a cena subitamente. Interrompeu Zé-Sócrates no auge da sua resistência à beleza encantadora de Alcebíades. Zé-Sócrates, com dureza e elegância, explicou que se tratava de teatro e que aquele comportamento não era aceitável. Alguém que estava lá pode confirmar essa lembrança? Terá sido mesmo um homem? Ou foi uma mulher? E a cena, qual foi? Ele ou ela interrompeu Diotima? Pouco importa. Para quem acha importante lembrar, peço desculpas, eu estava tomado por assombro e maravilhamento. Para o efeito que desejo, basta saber que orgia não é bagunça. O caos guarda uma forma de ordem superior. Certamente, esse é um dos segredos de toda criação. Sigamos! Da cena que me esforço para lembrar agora, brota uma profusão de ilícitos gozosos. Me esforço para apanhar, acomodar e organizar em pensamento. Desisto. Naquela noite, eu me deixei levar pela cauda do arco-íris do maravilhamento, por onde as divindades se comunicam com os mortais. Tomei mais de uma taça de vinho. Olhei para os lados, olhei para trás. Olhei discretamente para Zé Celso ao meu lado, com aquele cuidado de quem olha para um abismo. Mais de uma década depois, Márcio Andrade, querido amigo do Quarta Parede, me pede um relato. Hoje é sábado, costuro os fios de uma rede velha, lanço-a sobre o caudaloso rio do passado. Uma frase lateja. Uma ou duas. Duas ou três. A vida enraba tudo, o teatro enraba tudo. Zé é o teatro. Ponto. A antropofagia é um modo de comer tudo. Zé foi um grande expoente do que chamou de Tropicália Antropofágica. Foi Caetés, próximo da linhagem dos Tupinambás. Nos ensinou a devorar o estrangeiro, o diferente, o ameaçador. Não se autoproclamou o porta-voz de nenhuma identidade, embora tivesse muitos lugares de fala. No abismo do Ser, Zé viu o aceno do Nada e escolheu a vida obscena, politicamente incorreta. Desconfio que passou acima de certas preocupações que, se espremidas, serão diluídas em retóricos jogos de palavras. O teatro que eu vi era monumental, um cataclisma avassalador. Quero terminar com uma reflexão pela metade, me permitam. Zé Celso, apesar de recusar um messianismo e reconhecer essa recusa em seu mentor, Oswald de Andrade, tinha o desejo de tornar o amor um afeto público, político como a amizade. Queria bagunçar certos tabus, violar os limites do interdito. Nesse ponto, foi consideravelmente crístico.’
(Durval Cristóvão, Ator, Diretor e Arte-Educador)
‘A última imagem que tenho do Zé Celso em presença foi em 2017, no espetáculo Macumba Antropófaga no Teatro Oficina. Depois de um cortejo pelo bairro do Bixiga (SP), a gente cantando ‘Anhanga-Anhangabaú da Felicidade’, lembro de vê-lo no alto de uma escadaria, vestindo um manto vermelho e cantando a plenos pulmões, com uma intensidade que transbordava de seu corpo. Lembro o quanto aquela imagem me expandiu e irradiou meu corpo. Acho que Zé tinha uma potência de nos tornar gigantes junto com ele e, não à toa, ele contamina a cultura de todo um país. Um teatro que escorria do palco como rio, um mistério-revelação em que nós público, membros dispersos, éramos reagrupados a um corpo maior, nos fazendo lembrar que compomos uma cosmologia e nessa vastidão coletiva encontramos nosso lugar. Zé mostrava a dimensão de vida que o teatro carrega: de celebração, de festa, de uma humanidade compartilhada. Um teatro que vê o outro, que comunga e partilha com ele a potência de se estar vivo. Um teatro que insiste – apesar de tudo. Como diz Wisnik, “Zé Celso é um messias que se bebe. Não há morte que o morra”. Seguiremos aqui, Zé. Contaminados, festivos e insurgentes! Evozé!’