#03 OcupaTudo | De Ruas, Errâncias e Galpões
Imagem – Acervo Trupe Artemanha | Arte – Rodrigo Sarmento
Em continuidade ao nosso dossiê OcupaTudo, nosso editor-chefe, Márcio Andrade, bate um papo com Luciano Santiago, da Trupe Artemanha, companhia com mais de 20 anos de atuação que possui uma itinerância por estados como São Paulo e Ceará e, agora, monta residência em Recife, no bairro da Várzea.
Em sua intenção de trazer para cena temas que dialogassem com fatos históricos do país, a Trupe mescla elementos circenses, a musicalização, o diálogo com as máscaras expressivas e o palhaço-bufão e experimenta diversos espaços de atuação, como palcos tradicionais, teatro de rua e a gestão de espaços culturais voltados para a pesquisa e formação em teatro.
Antes de tudo, queria que tu apresentasse um pouco da Trupe Artemanha para quem ainda não conhece vocês.
A trupe Artemanha surgiu com fundadores que nunca fizeram teatro profissionalmente ou faziam parte de algum grupo amador em Taboão da Serra, uma cidade vizinha a São Paulo. Nós não tínhamos nenhum tipo de pretensão de trabalhar exclusivamente com teatro. Tínhamos muitas coisas em comum com o cotidiano daquela cidade, comentávamos que poderíamos ser um grupo de samba, um time de futebol, qualquer outra coisa, mas acabamos nos tornando em um grupo de amigos que queriam fazer teatro. Até que tudo foi tomando um pé muito sério, a ponto de nos instalarmos no bairro de Campo Limpo.
A opção de chegar nesse bairro, que fica na periferia (zona sul de São Paulo), foi a opção de nem ir para o centro, nem ir para um lugar que tenha muitos grupos de teatro, então, a nossa ideia era ir para esse bairro, que tem 700 mil habitantes. Com essa grande extensão, possui distritos e grande contraste social. O Morumbi, por exemplo, é um local nobre desta cidade, ao mesmo modo que Paraisópolis, localizada dentro do Morumbi, a maior favela em área territorial de São Paulo. Lá, entramos em contato com o Capão Redondo, lugar onde acompanhamos todo o movimento do hip-hop e rap dos Racionais, o movimento da criação de Saraus, hoje chamado de Sarau Maloqueirista. Neste local, acontecia uma grande efervescência cultural, ao mesmo tempo que uma questão social muito forte.
O Artemanha nasce em 1996 diante de todas essas coisas que estavam acontecendo na época, principalmente no movimento rap, mas nós só conseguimos ir pra Campo limpo em 2004. Cenário pós-guerra, pois o Capão Redondo é um grande local de assassinatos, em 1999 um dos maiores do mundo e os grupos culturais estavam se erguendo para atravessar esse momento. Nós, consequentemente, fomos influenciados de alguma maneira por todo esse contexto, seja em nossos trabalhos ou em nossas vidas pessoais. A gente sempre fez teatro com nossas próprias mãos, nunca contamos com a contratação de produtor ou cenógrafo. Isso reverbera no Programa de Fomento ao Teatro, pois, mesmo recebendo 700 mil reais, o grupo é quem põe a mão na massa para criar a obra. Muito de nossa ida em 2004 para Campo Limpo foi em busca de entrar no circuito de fomento a cultura para tentar conseguir manter o grupo sobrevivendo apenas de teatro.
É um grupo de pesquisa continuada, com linha de trabalho bem definida. Buscamos hoje estudar o teatro mais visceral, que esteja mais próximo do público. Queremos trazer o público para dentro de um espetáculo que ele possa participar, criar… um publico que reflita sobre o que vê. No Artemanha, nossos princípios básicos são afeto e provocação. Formamos um grupo de teatro político, fora do circuito mercadológico. O Hamlet? Fragmentado (leia a crítica AQUI), por exemplo, é o espetáculo mais tranquilo em relação a esse teatro político que propomos. Temos mais de 15 espetáculos nessa trajetória, recebemos alguns editais e, em 2008, damos inicio ao processo de quatro anos seguidos de fomento ao teatro que favoreceu muito para o fortalecimento do trabalho do grupo. Conseguimos fazer muitos contatos. De 2009 a 2013, montamos quatro espetáculos de rua, participando de muitos movimentos políticos-sociais que abasteciam e fortaleciam o nosso trabalho.
Temos ligação direta com o espaço alternativo, pois, em 2011, ocupamos um espaço público em São Paulo, fundamos um centro de pesquisa teatral experimental, criamos uma escola popular de teatro chamado CITTA – Centro de Iniciação Teatral Artemanha, para aproximar aquelas pessoas da comunidade. Estávamos sempre na iminência de sermos despejados e sofrendo pressões do governo e, em cinco meses, criamos a Revirada Cultural da Resistência, pois a prefeitura deu um prazo de uma semana para demolir o nosso barracão. Foram 36 horas de muito debate e muita programação, pois acreditamos que, além das apresentações, precisamos de muito debate, pois para o poder público só o espetáculo não supre a necessidade. Inclusive a Mostra Outubro ou Nada, que conheço pouco, acho que precisamos de mais palestras, mais momentos de debate, pois é a oportunidade da gente conseguir conversar, dialogar e se organizar mais. Acredito que, para o fortalecimento dos grupos, é preciso conseguirmos mais encontros da classe, pois só as apresentações servem mais como um remédio, algo momentâneo, mas instigar debate e estratégias de ação pode ser mais eficiente para todos.
Como o teatro de rua foi se configurando na Trupe como escolha estética e intervenção política?
Até 2008, nunca tínhamos feito teatro de rua. Montávamos espetáculos em palco convencional e alternativo, mas queríamos que nosso projeto fosse mais difundido por entre os bairros, e aí vimos que estar no nosso espaço esperando o público chegar, talvez não fosse o melhor caminho. Como tínhamos conseguido o Programa de Fomento ao Teatro e não dependíamos de bilheteria, passamos a ir para a rua, chegando mais perto daquele público, queríamos sair do conforto. Descobrimos a Pesquisa de Investigação Urbana, nosso primeiro projeto no Fomento, iríamos investigar o mundo dos moradores e figuras exóticas da rua. Fomos atrás desses universos para investigar as nossas ancestralidades, para entender o que é o urbano. Estudamos as histórias da formação urbanística do Brasil e criamos o espetáculo Brasil, quem foi que te pariu?.
Essa experiência nos proporcionou muitos avanços como a múltipla função dentro do processo criativo, a potencialidade da voz do ator, a aproximação do circo e da dança contemporânea. Essa foi minha primeira criação dramatúrgica, muito bem recebida pelo público. Com esse espetáculo, iniciamos um processo que não conseguimos sair mais: a utilização da rua enquanto outro espaço público que ocupávamos. O contato com a Cia. Ói Nóis Aqui Traveis, que se apresentou no bairro do Campo Limpo, também foi uma grande influência para a continuidade dos trabalhos de rua do Artemanha. O teatro de rua é potente por si só e isso tem a ver com o que buscamos, além de permitir que possamos conhecer esse espaço público que hoje ocupamos.
Muito mais do que só uma estética, para mim, abre outro caminho muito potente. Inclusive, não entendo porque o valor de incentivo do Funcultura para teatro de rua seja menor do que as montagens para palcos tradicionais. Tenho amigos de teatro de rua aqui em Recife que estão isolados. Em São Paulo, o clima não favorece e, mesmo assim, já apresentamos sob uma temperatura de 6ºC e aqui, nesse clima que é agradável, não consigo ver muitos grupos de rua, não só em Recife, mas nas outras cidades de Pernambuco. No Ceará, eu vi uma movimentação mais fervorosa.
Depois de São Paulo, vocês decidem fazer viagens pelo Nordeste, o que nos faz pensar como esse espaço itinerante influencia nas pesquisas e resultados de vocês.
Depois que montamos Brasil, quem foi que te pariu?, encontramos o texto Macunaíma e realizamos uma montagem. Foi a primeira vez que circulamos no Nordeste, mas eu tinha vindo antes, pois tenho família na Paraíba. Em contato com um grupo daqui, criamos um projeto em que iríamos construir um espetáculo a partir da literatura de cordel e do filme O homem que virou suco. Recebi um convite da Secretaria de Cultura do Crato para fazer uma residência e, junto com meu irmão, comecei a circular entre Fortaleza, João Pessoa e Recife. Nessas cidades, percebi uma falha no diálogo entre os grupos locais, pude entender como as produções artísticas se relacionavam, pude conhecer as histórias incríveis destas regiões… Ao chegar em Recife, foi muito importante ter passado por todas essas cidades antes, pois todas essas vivências passavam a ser parte da pesquisa, todas as trocas de experiências se tornavam válidas. Para a trajetória do Artemanha, ter vivido essa itinerância foi de extrema importância para chegarmos aqui na Várzea.
Agora, ao ocupar o Galpão CITTA, na Várzea, o que vocês têm (re)descoberto sobre espaços alternativos ao despertar a vida cultural de um bairro mais universitário e residencial?
É um grande risco. Fazer teatro é um risco. Considero que estamos em uma prancha, prestes a cair, mas resistimos. A ideia do Galpão CITTA é que trabalhemos oito horas ou mais por dia. Estávamos batalhando por um espaço e não conseguíamos, pois tínhamos que pagar e não havia recurso. Então, achamos a Várzea, onde está instalada a universidade, o Instituto Brennand, a Escola João Pernambuco… Então, vimos que esse era o local ideal para nos instalarmos. A importância desse galpão é construir um centro de pesquisa mesmo, mesmo que não montemos nenhum espetáculo. Temos que ter paciência e insistência, pois vimos que têm um tempo para que as pessoas conheçam e se aproximem. Estamos com uma campanha para fazer a construção cultural do Galpão, para montar uma biblioteca, espaço para ensaio entre outras coisas.
Alugamos esse espaço por três anos, já montamos o Hamlet e apresentamos lá mesmo. E aí, estamos buscando alternativas para custear esse espaço. Por exemplo, queremos trazer programação do MIT Territórios para o nosso espaço, na tentativa de fazer esse espaço ser administrável, receber outros grupos com ações de residência. Então, estamos percebendo o lugar em que estamos situados, para poder entender como o ambiente funciona e como podemos nos estabelecer aqui. Não locamos o espaço inocentemente, temos um planejamento que, mesmo não se concretizando da forma que pensamos, temos um eixo de trabalho que possibilita o nosso funcionamento, relacionado à transformação do MIT Paraíba para o MIT Territórios, os cursos, as apresentações, entre outras ações. Mas a nossa pretensão não é dar conta de um centro de formação regular, achamos que nos vemos como um espaço que quer criar um centro de pesquisa informal, de resistência e formação cultural.