#13 Negritudes | Vamos falar de pretura
Imagem – Nana Moraes
Por Lorenna Rocha
Graduanda em Licenciatura em História (UFPE) e Atriz
Mil nações
Moldaram minha minha cara
Minha voz
Uso pra dizer o que se cala
O meu país
É meu lugar de fala
(O Que se Cala – Elza Soares)
Um telão em forma retangular e uma mesa com um copo de água estão diante dos olhos das espectadoras. No proscenium, um conjunto de microfones e pedestais. Nas extremidades do palco, há uma instalação com um celular e estruturas de iluminação do lado direito e do outro está o musicista, Felipe Storino, que assume, com instrumentos e mesa de som, a trilha do espetáculo que se faz em camadas distintas de preto. E de branco também. Afinal, como falar de pretura, expressão evocada pela atriz Grace Passô, sem colocar na roda a branquitude que nos inventou e nos impõe cada pensamento, passo e imagem? Com Cássia Damasceno, Felipe Soares, Grace Passô, Nadja Naira, Renata Sorrah e Rodrigo Bolzan, a apresentação de PRETO, da companhia brasileira de teatro, formou ecos no Teatro de Santa Isabel, durante o 20º Festival Recife de Teatro Nacional através de seus questionamentos, repetições e canções.
É uma palestra. A atriz-personagem falará, mais uma vez, sobre a pretura: a negra sempre é chamada para falar sobre isso, ela diz. Passô se senta em frente à instalação com o telefone próximo ao rosto e sua imagem se projeta no telão que está a alguns metros dela. Como uma espécie de Grande-Irmão, do estilo de George Orwell em 1984, ela começa a dizer que precisa de pessoas para colocar a sua mesa no lugar que deseja. Há silêncio e alguém pergunta na platéia: é sério? E ela, rindo, afirma que sim. Entre mandos e desmandos, mais para esquerda ou para direita, é aquele rosto preto ditando ordem que chama atenção. Mas nós poderíamos estar em roda, não era preciso hierarquia… Ela anuncia a pretura como marco civilizatório. Seria isso uma denuncia ao processo civilizatório branco que construiu a figura preta para legitimar seu projeto de auto-afirmação de uma supremacia? Ou seria a manifestação de uma nova ordem civilizatória que inverta o jogo de poder? Ou ainda, pode-se pensar na pretura como expansão do processo de enegrecimento, que é evocado durante o espetáculo?
Fragmentado, performático e multilinguístico, PRETO faz da “confusão” uma travessia para o diálogo que se estabelece entre palco e platéia. Na descontinuidade, ruptura e estilhaço, o grupo joga para o público a autonomia de construir suas próprias narrativas do espetáculo, o qual se faz por meio de imagens e perguntas que são respondidas entre gargalhadas e grandes silêncios. Uma das indagações feita durante a sessão foi “Sobre o que vocês acham que eu vim falar aqui?”. As respostas do Teatro Santa Isabel, no dia 19, foram: cabelo, racismo, escravidão, resistência. E o jogo retorna para a atriz-personagem “sempre me chamam para falar sobre isso”. PRETO, não necessariamente, está para as questões mencionadas, mas trata do que atravessa a experiência de pretura. Isso está desde a interpretação de Grace Passô da canção “Faz uma loucura por mim”, de Alcione, até a performance ao som do funk carioca com passinhos e as linhas e poses do vogue. Mas também está nos cinco jovens negros mortos com mais de 100 tiros no Rio de Janeiro, após receberem o seu primeiro salário. E em Rafael Braga, jovem negro preso injustamente durante os protestos ocorridos em julho de 2013.
Na dança, na interpretação musical ou na palestra, todas as linguagens funcionam como estruturas que saltam aos olhos que os negros estão lá. Estão em todos os lugares. Afinal, o Brasil é PRETO, não é?
O trabalho em torno das imagens sociais, daquilo que se é visto – ou mostrado – e daquilo que se é, entra no jogo cênico durante o espetáculo. A cena dividida entre Renata Sorrah e Felipe Soares, por exemplo, de uma entrevista, em que ele faz perguntas a ela do tipo “Como é viver sua imagem nesse mundinho?”, põe sobre o palco tensiona, a partir da percepção da imagem dela, escancarando o jogo plástico da mídia, frente a essa persona consagrada que é colocada em xeque. Na tentativa de se isentar de uma preocupação em torno de sua imagem, uma vez que ela finge ignorar qualquer tipo de código de conduta nesse sentido, a atriz-personagem cai em seu próprio discurso na hora de tirar uma selfie, pois se descompassa dizendo que precisa se posicionar em um ângulo que valorize a foto.
Nesse jogo de mostrar ou esconder, quando a mesma pergunta é feita para Grace Passô, num outro momento, junto ao questionamento sobre algo que ela jamais esqueceria que é, a resposta é dada, apenas com choros e risos, os quais são explorados pela potência vocal de Passô. Na minha autonomia de espectadora, não tinha como não se identificar junto: nós não nos esquecemos que somos negras.
É nesse contraste de uma resposta não dita, mas sentida, que a cena irrompe sobre quais imagens são impostas e sobrepostas quando se tem uma negra em questão. Ainda que a ligação de todos os personagens-atores seja a sua profissão, entre os brancos e pretos em cena, o artifício da construção do jogo cênico, denuncia a branquitude se passa como invisível na sociedade, não como marginal, mas assumindo uma espécie de “sem partido” ou de “neutralidade” que um corpo negro não tem o privilégio de experienciar. Se Renata tem a chance de gerenciar aquilo que ela quer que seja visto enquanto quadro de si mesma, o mesmo parece não acontecer para os corpos negros em questão.
De black-face à globeleza, a representação das pessoas de peles negras é refletida para o mundo real às avessas e ao bel-prazer do outro, branco, que precisa de uma imagem distorcida para se impor como espectro certo e universal. Na última cena do espetáculo, Cássia Damasceno expõe tudo aquilo que é esperado pela mulher preta com corpo de “mulata” quando diz que vai cantar para nós, que vai sambar para nós, que vai posar para nós. Mas nega tudo, ao som de um samba que se repete junto aos seus entra e sai de cena, fazendo os espectadores olharem para a mulher preta no tempo dela, nas suas próprias vontades. Entre microfones impostos sobre ela, o desejo lindo de enegrecer ganha projeção, tom e corpo.
A espectadora negra agradece o tom de liberdade da imagem construída. Se isso ainda não é o que sempre acontece, que seja o futuro.
Nós poderíamos estar em roda com Rafael Braga e Marielle Franco, que há mais de 200 dias não tem respostas sobre quem mandou apertar o gatilho que a matou, e construir outras imagens. Seria essa a pretura como modo civilizatório? A contagem de Grace Passô dos dias sem resposta deste assassinato político, entre descrença e força, pode se tornar um quadro para a nossa conta: entre cansaço e vitalidade, a pretura que nos atravessa, um dia, se tornará imagens de libertação. Afinal, a verdade também tem que ser dita por nossas bocas, pois a história contada pelos outros nunca nos comportou. São imagens de resposta a uma sociedade que nos subjuga e nos coloniza há séculos. Mas, sabendo disso, se o Brasil é PRETO e ainda está tomado pela branquitude, o que fazer para que o enegrecimento seja cada vez maior, cada vez mais potente no lugar onde estamos?