#14 Confrontos | Traveco-Terrorismo
Por Tertuliana Lustosa[1]
Pesquisadora, professora, DJ e produtora de Funk 150BPM, artista visual e escritora
Fui convidada através de uma mensagem no Instagram para publicar este presente texto na revista digital Quarta Parede, cujos curadores pesquisaram o meu texto publicado originalmente na Revista Concinnitas/UERJ, o “Manifesto traveco-terrorista”. A minha proposta diante do convite foi de organizar uma espécie de mini dossiê com alguns desdobramentos da minha escrita para além da literatura acadêmica, incluindo meus trabalhos com ficção e literatura, arte contemporânea e no mundo da música, que são outras áreas minhas de atuação.
Para começar, considerei importante trazer um trecho da introdução do Manifesto, que, de algum modo, sintetiza meus pensamentos sobre apropriação e exotificação do outro com um olhar prático e da experiência.
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No bairro carioca da Lapa, localizada na estreita Rua Moraes e Vale, uma casa chama atenção pelas suas paredes cobertas por frases e versos de resistência e pela bandeira do orgulho Trans em uma das janelas. Lá, a organização coletiva de pessoas trans e colaboradores da causa permitiu a existência da CasaNem, um espaço ocupado e gerido pela força daqueles que vivem cotidianamente vulnerabilidades sociais. Desde fevereiro de 2016, a CasaNem abriga pessoas em marginalidade de gênero e socioeconômica, promovendo, no local, peças, ações voltadas para pessoas trans, além do curso de educação e pré-vestibular PreparaNem.
No meio de uma das reuniões para pensar a agenda de festas, oficinas e debates que aconteceriam na casa, dois jornalistas nos interrompem para fazer uma proposta. A ideia que nos traziam era de um documentário que visava, com “todas as melhores intenções”, entrevistar nossas mães (sobretudo, aquelas que não nos aceitavam). Lembrei-me de como as histórias de violência cotidianas das pessoas trans transformam-se, tantas vezes, em dados frios, em imagens espetaculares e em projetos que não nos beneficiam efetivamente. Nas palavras dessas duas pessoas havia erros de pronome, negligências ao histórico de abandono e instabilidade emocional entre pessoas trans e seus parentes biológicos. A meu ver, não éramos, para eles, um coletivo de afetividades e cooperativismo, mas sim ratos de laboratório.
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É urgente para alguns corpos relatar as suas realidades, considerando intensidades sensitivas, vozes e escutas, tensões e paralisias. A possibilidade de escrita sobre minhas vivências e epistemes aglutinam-se às ancestralidades das que já lutaram muito antes de mim, pessoas como Indianara Siqueira, Cláudia Rodríguez e Alessandra Ramos. Sei que foi duro que todas elas existissem e construíssem os seus corpos pra para que eu hoje tivesse alguns direitos e algumas possibilidades de vivência. Muitas travestis foram expulsas de diversos espaços, começando por suas casas, foram estupradas, tiveram seus corpos impedidos, distorcidos, invadidos, destroçados e mortos.
No intuito de criar possibilidades de contato com pessoas que vivem ou não as poesias da vida trans – odiadas e silenciadas há tanto tempo – e também de repensar as leituras que se comunicam com as precariedades, tive a ideia de retraçar a história da minha própria vida com todos os livros do mundo e de reinventar os livros sujando-os com a poeira dos meus pés. Nesse processo de refração escrita, propus-me, como ponto de partida, a reescrever o “Manifesto Contrassexual” de Paul Preciado, dentro de um processo de texto-transição.
Como dispositivo tático, hormonizei bastante e operei cirurgicamente algumas das dimensões epistemicidas, em que seria preciso dizer mais ou desdizer algumas coisas para transformá-las em possibilidade de fuga da subalternidade. Aqui, o tom de manifesto acabou fadado ao riso proposital, e não se tratava de tecer pensamentos nos esquemas da paródia pelo caricato ou da antropofagia, pois o saber concatenado ao corpo precisa retirar-se das amarras coloniais do nacionalismo, da vanguarda e do fetichismo. Era sacrifício também, só que não do mote “purista” da cultura do outro. Penso tratar-se, mais certamente, do ato do terrorismo – aquele que ainda incomoda o reinado capitalista. Terrorismo contra os apagamentos promovidos pelos impérios de discursos afiados e que fazem todo o sentido, mas que, na prática, não reconciliam as opressões de muitas de nós.
Partindo dessa demanda por releituras decoloniais dos discursos e epistemicídios euroestadunidenses e cisheteronormativos, o meu desabafo – traveco-terrorista – não age ausente das intersubjetividades e diversidades nos fluxos históricos de cada corpo. Como as escavações e as autópsias auto-corporais não são capazes de incidir sobre outros corpos de forma universal e generalizada, elas se pactuam, nesse texto, com os meus derramamentos de corpo travesti. Aliás, germinando da traveca que sou para enveredar minhas relações de alteridade com outros corpos (que não podem mais ser separados segundo os critérios “dentro” ou “fora”, senão incluídos numa conectividade interseccional).
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O Manifesto foi escrito no momento do início da minha transição e carrega uma voz muito marcada pelos momentos de transfobia que estava vivendo e que ainda não sabia como lidar. Eu fiz uma performance para o programa da TV Fashion do Dudu Bertolini, intitulada “Manifesto Traveco-terrorista”, que depois eu incluí em uma produção audiovisual intitulada “Cordel Pornô”, disponível AQUI.
Com o passar dos anos da publicação do texto (2016), tive a oportunidade de acompanhar algumas de suas circulações, e uma delas foi o Seminário Traveco, do curso de comunicação social da UERJ, ocasião em que fui convidada pelas organizadoras, assisti e comentei a apresentação. Na fala de Juliana Nascimento, que apresentava o seminário, algumas observações sobre um dos parágrafos que eu tinha escrito me fizeram refletir sobre como talvez aquele tenha sido a parte do texto que mais deixou a desejar, primeiro por eu ter utilizado o termo escrava, e não escravizada, que na época que escrevi ainda não tinha discutido sobre, e segundo por eu não ter aprofundado mais um pouco nos temas da Xica Manicongo e do pajubá. Então quando fui convidada para publicar o Manifesto de forma impressa, reescrevi essa parte do texto:
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Muitas das figuras brasileiras que transgrediram práticas de gênero instituídas foram pouco lembradas pela história, como foi o caso de Xica Manicongo, na história do Brasil colonial. Xica foi escravizada no final do século XVI, em na cidade de Salvador e foi condenada à morte por não aceitar se vestir como homem. Jaqueline Gomes de Jesus retoma sua memória em seu artigo…
Havia na capital do país, São Salvador da Bahia de Todos os Santos, também conhecida, posteriormente, como Cidade da Bahia ou simplesmente Salvador, então colônia de Portugal, nos idos de 1591, uma africana do Congo escravizada e vendida a um sapateiro, a qual chamamos de Xica Manicongo. O registro da existência de Xica Manicongo se deve à extensa pesquisa de Luiz Mott sobre a perseguição aos chamados “sodomitas” no Brasil, a partir da documentação inquisitorial encontrada no arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal. Mais uma Francisca entre tantas que lutam diuturnamente para sobreviver, em meio ao ódio e o preconceito que nos cerca, ontem e hoje. Manicongo era, originalmente, um título para governantes do Reino do Congo (Mwene Kongo, literalmente, Senhor do Congo), que foi transformado na corruptela que conhecemos pelos portugueses, para designar pessoas oriundas da região (Ou seria Xica uma rainha?). Coberta com um pano que prendia com o nó para frente, à moda dos quimbanda3 de sua Terra Natal, e apesar de sua condição desumanizada, imposta pelos homens brancos, os candangos, ela andava sobranceira por toda Cidade Baixa, às vezes subindo para a Cidade Alta e voltando, a serviço do seu senhor, ou só passeando, inclusive para encontrar os seus homens. Diz-se que Xica era conhecida por ser muito namoradeira. Mesmo no inferno da escravidão havia frestas, sempre escavadas pela gente negra. (JESUS, 2019, p. 251)
Os fluxos de identidade que construíram historicamente o ser “travesti” são atravessados por construções negras, indígenas e de religiosidades afro-brasileiras, entrelaçando questões étnico-raciais, de gênero e de classe. O Pajubá, linguagem baseada em diversas matrizes africanas, é utilizado como forma de resistência por bixas, sapatonas e travestis, seja para que o alibã não entenda que dele estamos falando, seja quando contamos um bafo ou quando falamos mal da tia.
As ancestralidades negras, indígenas e travestis dialogam e criam pontes através de práticas contra-hegemônicas de comunicação. Essa capoeira falada deflagra tessituras que estão além das identidades fixas de gênero e sexualidade, o que acontece, por exemplo, quando o ser “bixa” não corresponde a ser homossexual, contemplando performatividades não binárias e de muitas pessoas travestis. No Pajubá, as palavras se reinventam a cada momento, e se transformam através da oralidade, de modo que um bordão se transforma em significado entre um grupo e uma palavra se transforma em outra para confundir, como por exemplo uo que já se tornou mais comum, vira ueudrem, uossime…
Mais especificamente com relação às pautas trans, a possibilidade de circulação da militância transfeminista entre os diversos meios de atuação na vida é preciosa. Tendo em vista a ineficácia do sistema de representatividade nos espaços de privilégio políticos e econômicos da sociedade brasileira para com as questões trans, a necessidade de dissolução dos bloqueios parte de uma postura lateral de infiltração.
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Além de Xica Manicongo ser essa figura tão emblemática na história do Brasil, para mim foi também muito marcante a sua memória pois fez parte de um dos coletivos de arte que eu idealizei: o Coletivo Xica Manicongo. O coletivo levava um pouco da literatura de cordel para os espaços de arte e cultura da cidade do Rio de Janeiro; era uma forma de gerar renda para nós participantes do coletivo e rendeu belos poemas e xilogravuras.
Essas são algumas das capas dos nossos cordéis, a primeira feita por mim e por Matheusa Passareli; a segunda feita por Mayara Velozo. Ambos os cordéis trazem poemas autorais e inéditos escritos por pessoas LGBTs com vivências interseccionais, com temas como nordestinidade, travestilidade, vivência em comunidades e favelas, e militâncias negras.
Também organizei posteriormente um cordel autoral intitulado “Não se nasce mulher, torna-se traveca”, frase publicada originalmente no Manifesto. Um dos poemas do cordel, intitulado “Viva”:
VIVA
Sobrevivi a dias de fome
Dias sem poder dormir
Dias de tiro na Terceira Guerra Mundial
Sem casa
Sem família
Sem alguém para me comunicar
Sobrevivi a estupros de mão armada
Sobrevivi a cantadas e deboches que sugavam todas as minhas energias de repente
Sobrevivi a tentativas de feminicídio
Sobrevivi a transfeminicídios
Sobrevivi a médicos que não me atenderam quando estava morrendo
Sobrevivi a tiros de quem se dizia meu aliado
Sobrevivi a Bolsonaro
Sobrevivi a dias e noites de pista sem ganhar um real
Já me prostituí por drogas
E sobrevivi a overdoses depois do programa
Sobrevivi a homens que não me assumem por eu ser quem sou
Sobrevivi a homens que me assumem por interesse e me batem e me matam
Sobrevivi a mulheres que lutam por feminismo dizerem que eu sou homem
Pior, dizerem que eu sou “o novo patriarcado”
Sobrevivi a terapias hormonais que me causaram trombose, doenças no fígado, baixa imunidade
Sobrevivi a mutilações
Sobrevivi a erros cirúrgicos que deformaram para sempre meu rosto
Sobrevivi a litros de silicone industrial que necrosaram todo o meu corpo
Sobrevivi a doenças sexualmente transmissíveis
Sobrevivi a apedrejamentos
Sobrevivi a assassinatos de 15 homens
Sobrevivi ao machismo
Sobrevivi ao racismo, xenofobia, transfobia, gordofobia
Me silenciaram
Não me ensinaram a ler
Sobrevivi à escola brasileira de torturas psicológicas e físicas
Sobrevivi à casa dos meus pais de torturas psicológicas e físicas
Sobrevivi a minha expectativa de vida medieval
Sobrevivi a falta de um emprego formal
Sobrevivi a homens que me comeram depois me assassinaram
Já fui roubada, já roubei, bati, matei
Sobrevivi aos presídios masculinos sendo uma figura feminina
Sobrevivi
Pode ter certeza que se não desapareci ainda
É porque tenho uma missão a ser cumprida
Eu me chamo TRAVESTI
Minha resposta a tudo isso é permanecer
essa cultura
viva
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O termo “terrorismo” que utilizei provém de um discurso da Diana Torres, que fala em seu livro Pornoterrorismo: “O Pornoterrorismo é algo que pulsa, que jorra, um impulso composto de desejo e de imaginação. Assim, este livro é um relato biográfico e uma profunda reflexão em relação ao sexo, às práticas sexuais, à moral e à política. É um apelo a romper os tabus ainda em vigor em nossa sociedade.” (TORRES, 2011). No entanto, considero algumas práticas, corpas, modos de trabalho e comportamento como pornoterroristas na medida em que rompem com diversos tabus de uma sociedade machista, elitista, racista e LGBTfóbica.
O funk para mim é um desses espaços, em que vozes diversas (homens e mulheres, cis e trans, heterossexuais e LGBTs) falam sobre pau, xereca, bunda, cu, bandido, crime, dinheiro, carro, moto… Tudo isso é falado de um jeito que incomoda a burguesia, que sempre aponta o funk como machista, esquecendo que o funk é um ritmo e seu ritmo liberta o corpo, provoca a dança, a imaginação e movimenta locais periféricos e até mesmo locais de elite que vêm adotando o estilo em boates e festas particulares. Quantas vezes tive o som cortado, tive minha playlist questionada por donos de locais onde fui contratada por quem já conhecia o meu trabalho, quantas afetos deixei de ter por ser vista como puta e vulgar…
Que bom que perdi esses afetos, viu, porque sou puta e vulgar mesmo, com todo o orgulho! Uma música que fiz com a Mc Bumbum de Ouro – Vem me mamar (pode ouvir AQUI) – gosto dela porque ela é tudo que eu queria falar para vários machos escrotos que me veem como objeto: “Hoje eu vou gozar, mas não vou sentar, vou te falar uma coisa, você vai só me chupar, vem me mamar, vem me mamar, vem-vem, vem me mamar!”
Minha experiência como DJ de funk se deu sempre dentro de um universo LGBT. Comecei tocando na CasaNem, local onde era voluntária, para arrecadar fundos para manter os custos da casa: aluguel, alimentação, etc. Tive a honra de gravar alguns Mcs LGBTs bafônicos como Mc Caten, Mc Pambelli, Mc Michelle dos Caralhos, Wqueer e Kaique Theodoro.
Em janeiro de 2019, rolou a primeira parada LGBT na Gaiola, organizado pelo DJ Renan da Penha, que está hoje preso numa sociedade que o julgou não por ser DJ mas por ser DJ negro e de favela[2]. O evento contou com presenças LGBTs como Pepita e Iasmin Turbininha.
Nesse panorama LGBT e de mulheres do funk, não poderia deixar de falar da Taísa Machado e das suas oficinas de Afrofunk, que são uma verdadeira revolução feminista corpo a corpo. Taísa também é escritora e suas palavras valem muito, pois, além de qualquer talento para a escrita, carregam vivências coletivas, que eu inclusive tive o orgulho de presenciar algumas vezes. Ela observa:
As mulheres que estão na linha de frente do movimento desde os primórdios hoje não são mais vozes isoladas. Existe uma mudança de comportamento e vários MCs estão compreendendo que um funk sem misoginia é mais gostoso de dançar, o prazer feminino não fica mais solitário num lugar de reivindicação. Tati Quebra Barraco, Deize Tigrona e Valeska ensinaram direitinho. Os MCs espertos viram que “Surubinha de Leve” representava um tempo que as minas não aceitam mais, a favela entendeu o recado e está acontecendo, quem curte sabe. Os meninos estão ainda que lentamente mudando os processos de composição e as minas estão firmemente levantando a bandeira LGBT pra dentro da cena. Iasmin Turbininha já não é mais a única abertamente lésbica. São dançarinas, DJs, produtoras, geral saindo do armário, dando visibilidade pras pretas sapatão que curtem funk, sim. Sem falar na dona da porra toda: nossa pepita de ouro, Ludmilla, que desde 2018 escreve e emplaca sucessos na voz de outras funkeiras como “Cai de boca [no meu bucetão]”. Mesmo “vendendo” majoritariamente para o público hétero, também mostrou para o Brasil que o coração da mulher preta bate onde ela quiser! (MACHADO, 2019)
Além do funk, fui agraciada de encontros também pornoterroristas através de performances com corpos não cisgeneros. Uma delas foi com o Coletivo Seus Putos (RJ) e outra foi com a performance Cuceta, com Sara-Elton Panamby, que encerra o Manifesto…
A corponormatividade cirúrgica me fez refletir durante muito tempo sobre como o meu corpo se modifica durante o meu processo de transição. Um antiandrógino e um estrogênio, substâncias que fazem parte da terapia hormonal utilizada por muitas pessoas trans, não foram suficientes para as demandas do meu corpo, nem mesmo cirurgias o seriam por completo. Talvez porque a experiência de gênero a que eu me submeti sempre esteve mais relacionada a processos escavatórios e de escutas de sonhos do que propriamente a métodos da medicina de intervenção cirúrgica-hormonal.
Aprendi que os multiversos trans possuem atravessamentos de religiosidades afro-brasileiras e de ancestralidades xamãs. Em culturas ameríndias, os papéis de gênero transitavam correntemente antes da ideia de “pecado” ser inserida pelo colonialismo e as práticas/devires corporais estavam diretamente relacionadas à espiritualidade. Os Two-spirits praticavam papéis sociais de forma não-binária em muitas das tribos norte-americanas. A pessoa por trás dos que muitos chamam de traveco faz parte de um arcabouço histórico marcado por processos civilizatórios que, para tantas culturas, estão diretamente ligadas ao apagamento das suas culturas e espiritualidades.
Catalisar as minhas frequências mortas e os meus sonhos foi algo que me encorajou a criar e intervir sobre o meu corpo com cargas energéticas além do cientificismo e do antropocentrismo. Em mente, era muito certa a recusa às ideias: de que existe um gênero apropriado para o órgão sexual; de que o sexo se baseia no prazer falocêntrico; de que a inserção social virá acompanhada da imposição de estereótipos mulher-cis/homem-cis, corpo biológico/corpo desviante; de que existe uma correspondência única entre órgão sexual, orientação sexual e identidade de gênero.
Foi dentro de um estado de autopsia espiritual que eu imaginei a cuceta para o meu corpo, como artesanato do cu que concretizaria muito sobre o meu pensamento traveco-terrorista. O procedimento de intervenção corporal consistiu basicamente numa tatuagem/body-modification sobre a região anal e perianal, não se propondo a criar uma imagem de órgão sexual realista nem humanocentrado. Não interessava a estética, porque dentro da sua singularidade, a cuceta partia de demandas interiores que não se relacionavam diretamente aos métodos de transexualização ocidentais, como a CRS (Cirurgia de Redesignação Sexual).
Não se revertia nada do que sobre o meu corpo fora designado, nem se almejava reinserir-me em alguma polaridade homem/mulher. A modificação corpórea, conectada ao banho de alecrim com levante, possibilitou-me escutas, curas, visões e viradas importantes para o meu corpo. O gesto da ferida e da desorganização anatômica era uma tomada de ação diante das transfobias, misoginias torturas e mortes que alimentam o avanço científico da medicina ocidental.
Cuceta: deriva, vasculha, interrupção, ataque, invasão, ocupação, desocupação, prostituição, política de explosão do universal e do colonialismo. Masculinidade não corresponde a pênis ereto e o desrespeito das categorias de expressividade de gênero se dá também pelos ecos desativados: o pênis como órgão sexual feminino, o clitóris como órgão sexual masculino, a cuceta (fig. 3) em desordem. O corpo como arma. A palavra como gatilho.
Referências
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 2003.
JESUS, Jaqueline Gomes de. XICA MANICONGO: A TRANSGENERIDADE TOMA A PALAVR. Rio de Janeiro: Revista Docência e Cibercultura, 2019.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das letras, 2015
MACHADO, Taísa. O futuro é o funk. 2019. Disponível AQUI
PEREIRA, P. Entrevista Marie-Hélène/Sam Bourcier. Revista CULT. São Paulo: Editora Bregantini, ano 18, setembro 2015.
PERRA, Hija. Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Salvador: Revista Periódicus, 2ª edição, novembro 2014 – abril 2015.
PRECIADO, Paul. Manifesto contrassexual. 1. Ed. São Paulo: n-1 edições, 2015.
SILVA, Sara/Elton Panamby Rosa da. Perenidades, porosidades e penetrações: [trans]versalidades pela carne. Rio de Janeiro: UERJ, 2016
TORRES, Diana. Pornoterrorismo. Barcelona: Txalaparta, 2011.
Notas de Rodapé
[1] Tertuliana Lustosa é pesquisadora, DJ e produtora de Funk 150BPM, professora de literatura, artista visual, cordelista e escritora. Ministra a oficina Escritos Trans no COART/UERJ, tendo iniciado como professora em 2015 no PreparaNemRJ, pré-vestibular para pessoas LGBT com foco na população T. Publicou o ensaio “Manifesto traveco-terrorista” na Revista Concinnitas e o ensaio “A lenda da trava leiteira” na Revista Periodicus, o conto “O narrador de Xangô” no livro “Tertúlia” e organizou o livro “Y” (2018) pela Edirota OutraLiteratura. Participou das exposições coletivas: “os corpos são as obras”, 2017, na Despina, e “A retomada da imagem será a presença”, 2018, na Galeria Oriente. Sua arte e pesquisa articulam palavra escrita e oralidade, arte contemporânea e arte popular. É graduada no curso de História da Arte na UERJ. Nascida cidade de Corrente Piauí, crescida em Salvador BA e Teresina PI. É redatora do site www.outraliteratura.com.br