#16 Urgências do Agora | Despertar-nos às florestas que dormem embaixo das ruas

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Série ‘A Última Floresta’ | Imagem – Matheus Belém | Arte – Rodrigo Sarmento
‘O que busco com Uýra é também trazer ao olho aquilo para o qual esta natureza virou de costas, que finge não ver, por isso busco nexos que geram imagens sobre a violência social e destruição ambiental. São metáforas em imagens, criadas para lembrar que o que está vivo ao nosso redor também é bonito, nobre e pode nos ensinar’
Nosso dossiê Urgências do Agora continua com entrevista realizada por Elilson, com Uýra Sodoma, uma “entidade híbrida” criada e performada pelo artista indígena residente em Manaus Emerson Pontes (Santarém, Pará, 1991). Utilizando seu corpo como suporte e trânsito coletivo ao unir elementos orgânicos em suas montações, Emerson expressa através de Uýra – uma “árvore que anda”, como nomeia – a imbricação entre sabedorias ancestrais e conhecimentos científicos da ecologia, gerando imagens que nos convocam a olharmos as florestas presentes em toda a paisagem urbana e a repensarmos arraigadas noções de “natureza”.
Nesse fluxo, tem atuado correlativamente nos últimos 5 anos como biólogo, arte educador e artista visual. Suas performances, fotoperformances, falas, intervenções e instalações também imbricam as causas de preservação ambiental e direitos LGBTQIA+ que o artista também coletiviza em seu corpo. Destacando-se nos campos das artes e da moda – a exemplo da capa que estampou no editorial da Vogue Brasil e de suas participações na VII Edição do Prêmio EDP nas Artes do Instituto Tomie Ohtake e da vindoura exposição da 34ª Bienal de São Paulo.
Além disso, integra exposições programadas no Canadá e na Holanda –, é um dos expoentes da AIC, Arte Indígena Contemporânea, sigla que artistas e intelectuais indígenas têm utilizado em contraponto ao chavão “Arte Contemporânea Indígena”, com o qual o sistema da arte impõe o adjetivo contemporâneo, marcador de mercado, à frente do ser indígena.
Primeiramente, agradeço a possibilidade de conversarmos aqui, na seção de entrevistas da Revista Quarta Parede, e de, assim, podermos tratar de tantas questões urgentes suscitadas e espraiadas pelo teu trabalho. Você já comentou algumas vezes publicamente que dois episódios foram cruciais para o surgimento de seu trabalho artístico com e como Uýra Sodoma: uma agressão homofóbica e o cenário de retrocesso político no país em 2016. Gostaria que partilhasse como essas questões se imbricaram, bem como a integração, desde então, de tuas atuações na pesquisa científica no campo da ecologia e nas artes visuais.
A agressão física que sofri em 2015 foi mais uma deste tempo que habitamos. Um tempo que não compreende a existência de corpas TLGBs. Naquele momento minha pele sentiu por perceber o abandono do Estado, bem como da maioria das gentes que o compõe.
Essa violência me disse que esse tempo poderia sim compreender o quanto nossas vidas importam, que este tempo poderia compreender isto se houvesse reeducação. A partir daí os direitos e existências de nossa população tornaram-se raízes do meu trabalho. Não gosto de dizer que Uýra nasce desta ferida, mas evitá-la e cicatrizá-la em tantas outras corpas passou a guiar meus passos.
Passos estes que tomam rumo quando me percebo artista. Isto ocorre na ocupação de artistas, o OcupaMinc, que vivenciei em junho de 2016 – momento em que acabava de defender uma dissertação de Mestrado, após 6 anos de vida científica no espaço da academia, onde as minhas questões sociais e culturais como corpa dissidente, como indígena, como oriunda da favela não eram consideradas.
Aquele junho foi marcado por vários tensionamentos internos. Percebia que crescia imersa por violências às pessoas e à terra, e isto me agoniava pelo sentimento de inércia de nada poder fazer, por estas violências todas serem tidas como “naturais”. Quando enxergo a potência do corpo-fala é o momento em que deixo-me habitar por Uýra, melhor compreendendo, aperfeiçoando e direcionando a minha atuação, propondo estes debates sobre cotidiano e “natureza”.
Minha arte visual nasce do mato e da periferia, de ser mato (indígena) e do estudo dos hábitos e hábitats das coisas vivas – tudo isso se nutrindo e crescendo dentro de mim, a ponto de expressar-se: Uýra.
Falando em imbricações, entre a pesquisa sobre anfíbios e répteis que desenvolveu por anos nos departamentos de Ecologia do IFAM e do INPA e as maquiagens e camuflagens na composição da entidade que juntos compõem teu arsenal poético, Uýra tem sido um importante canal também para as tuas práticas como educadore. Poderia nos contar um pouco sobre os projetos de educação ambiental e as aulas de arte e biologia que facilitou entre 2016 e 2020 às comunidades ribeirinhas e indígenas nos interiores do Amazonas? E como você tem observado esses potenciais educativos nas exposições que tem participado, a exemplo da VII Edição do Prêmio EDP nas Artes, no Instituto Tomie Ohtake, e da 34ª Bienal de São Paulo, em que o tema da água se faz tão presente nas fotoperformances e instalações apresentadas?
Pesquisei biologia por 6 anos. No trânsito, vivenciei uma ocupação com artistas, me enxergando artista e a potência disso. Uma semana depois estava viajando para sair da cidade e morar à beira do rio, em comunidades ribeirinhas. Foram 6 meses dando aulas de Educação ambiental para crianças e jovens, o que foi decisivo na minha Vida. Junto a estes jovens, meses depois, roteirizei um Gibi sobre Mudanças Climáticas a partir de suas experiências reais e do seu contexto de Vida.
Depois disso, atuando por 2 anos na ONG Fundação Amazônia Sustentável, pude coordenar um projeto de Arte Educação chamado Incenturita, que envolve mais de 200 crianças e jovens ribeirinhos e indígenas, e seus patrimônios culturais, em diversas localidades do Amazonas. Muitos trânsitos, encontros e construções nos levaram às dezenas de oficinas de múltiplas linguagens artísticas, sempre utilizando a floresta como fonte material e imaterial de todas as criações. Quando se habita a beira do rio, são a beira e o rio as fontes e caminhos de criação.
Nesta coordenação, publicamos um livro chamado “Fala Beiradão”, de autoria dos 200 jovens, que traz expressões e termos utilizados na linguagem falada nas suas comunidades. Este livro, inclusive, por duas vezes consecutivas foi finalista do Prêmio Rodrigo Melo Franco, que destaca as iniciativas de promoção e salvaguarda do Patrimônio Cultural do Brasil.
Além deste livro, outras duas publicações estão saindo: um livro chamado “Conta Beiradão”, também assinado pelos jovens, com seus contos do cotidiano e imaginário – todos registrados durante nossas oficinas; e uma coleção de cadernos chamada “Coleção FolheArte”, que reúne a metodologia de Arte Educação utilizada e validada em campo pelo projeto, com práticas educativas contextualizadas de 5 linguagens artísticas, destinadas à rede de educadores ribeirinhos/indígenas da Amazônia.
Nas comunidades, aprendi que para que as pessoas se envolvam na preservação e defesa da Vida, é importante inseri-las com respeito e simplicidade num processo educativo, utilizando linguagem popular. Aprendi, depois de muito cartesianismo, que o coração é importante, pois é o canal para se promover reais mudanças no mundo.
Isto fazia sentido em minhas experiências nas comunidades, e imagino fazer sentido pelo resto do mundo, ao promovermos diálogos que permitam a conexão entre pessoas de e com diferentes territórios. Uma contextualização do que está lá para o lugar que você vive aqui. Nenhum problema está isolado no mundo. Veja a água, as violações à floresta, as violências às pessoas. Tudo é um potencial de integração para visão seguida de ação.
Em fotoperformances como “Conecto” (2019), da série “Mil [quase] Mortos”, além de unir elementos de seres da encantaria amazônica – como a Boiuna – na composição indumentária, você escolhe precisamente os locais da cidade para o registro das fotografias. Neste trabalho em particular se destaca a multidão de passantes ao redor da cena ambientada no rio que cruza a Feira do Mutirão, em Manaus. Pensando que as imagens que você compõe no e com o cenário urbano unem “beleza” e “estranhamento” atraindo os olhares para as questões ambientais, poderia partilhar episódios de relações diretas dos transeuntes nos processos de performance dessas fotografias? De quais modos esses trabalhos te direcionaram a pensar, como você diz, “a rua como guia de (re)imaginação”?
A Série Mil [quase] Mortos é um dos meus trabalhos de maior interação com pessoas em locais públicos. O realizo com o fotógrafo Matheus Belém. Esta série visa criar um panorama imagético da quase-morte e vida dos igarapés-gente em Manaus. Registramos a poluição e decadência do respeito da cidade ao território d’água e d’gentes onde ela se estabelece.
Dois ensaios foram criados (“Caos” e “Boiúna”), ambos no Igarapé do Mindú, que atravessa de norte a sul Manaus – escolhido por isto, por atravessar, conectar e refletir o cotidiano de uma cidade que, como a maioria do país, cresce abraçada aos cursos d’água, mas, em determinado momento, os abandona, tornando-lhes lixeiras a céu aberto. Em ambos os ensaios repeti um rito: nas duas horas em que “me montava” para receber Uýra, à beira do igarapé que faria parte do retrato, apenas observava as pessoas que passavam.
Praticamente nenhuma olhava (e olha) para os igarapés. É um abandono como paisagem, são invisíveis e abjetas as águas que nos compõem. Mas, logo após se iniciarem as fotoperformances, todo aquele “alvoroço” passava a chamar a atenção das pessoas, que se aglomeravam, passavam a olhar o igarapé (também) e a fazer fotos e vídeos. De repente, o invisível se torna visível.
Estes registros das pessoas, em ambos os ensaios, foram parar na internet, especialmente naquelas páginas que são superimportantes por serem populares, todas ignoradas pela elite intelectual. Muitos destes posts foram feitos em tom de piada, outros como crítica à situação dos igarapés. Era todo um debate popular rolando e uma ativação de memória sobre como estes igarapés eram utilizados há 60 anos na cidade – é isto que me interessa.
Rua, lugar de [re] imaginação: as ruas são muito retas, cobriram muitas voltas de rios, e também são feitas de e do concreto, daquilo que está posto, onde a encantaria é lida como folclore, aquilo que não existe para além da pista. Mas a rua na cidade é o seu caminho, e ela pode e precisa ser mais que uma estrutura feita para o trabalho humano que mantêm a cidade, mais que um lugar de desgraça e violência aos corpos impedidos de transitar. As ruas das cidades tropicais têm florestas dormindo debaixo delas, como diz Ailton Krenak.
Me movo para lembrar que Vovó (a floresta) nunca nos abandonou, ela está aqui e, apesar de tudo que fazemos, insiste em nos cuidar embalando-nos em seus braços. É verdade: basta olhar nas frestas que se vê a presença desta floresta. Manaus é o lugar que habito desde os 5 anos, uma metrópole na Amazônia central, industrial e orgânica, e é onde sempre vi a floresta reterritorializando. É ecologia ativada e encantaria acordando – inclusive, é sobre isto uma das séries fotográficas a ser apresentada na 34ª Bienal de São Paulo, em setembro de 2021 – se Vovó permitir.
No vídeo “Manaus, uma cidade na Aldeia” (2020), comissionado pelo Programa Convida do Instituto Moreira Sales, Uýra aparece inicialmente andando de costas a partir de um monumento arqueológico de Manaus. O texto em voz off nos faz entrecruzar sua andança nas ruas da cidade nos dias de hoje com toda uma arqueologia dos povos indígenas que é violentada pelo ideal de progresso urbano. Em um dado momento, Uýra nos diz: “a cidade descobriu o que cobriu”, referindo-se também à floresta que, engolida pela metrópole, (re)existe. A partir desse trabalho, poderia discorrer em torno das noções de “natureza” e “natural” presentes tanto em tua investigação quanto no modo como somos habituados a pensar a floresta cotidianamente? De quais modos essas noções se diferenciam?
Na videoperformance “Manaus, uma cidade na Aldeia” eu me coloco diretamente. Como indígena sem povo identificado neste momento, resultado de uma diáspora do Brasil para o Brasil, eu me sinto como as urnas funerárias, mas principalmente como as vidas soterradas para a construção da cidade colônia Manaus. Indígenas nesta cidade são vistos como as árvores para o avanço da modernidade: um problema, algo a ser abandonado. Por quê? Por sermos Natureza, algo que parece dever ser coberto por esta Cultura.
A separação entre Cultura e Natureza é um problema estrutural e praticamente irreparável nas sociedades não-indígenas ou não-pretas atuais. De um lado, existimos nós, indígenas, que nos compreendemos como partes de Vovó, como natureza; do outro, está a sociedade predominante, de visão e valores arraigados pela superioridade humana sobre tudo que vive, que não se vê natureza, mas dominadora dela. “Eu não sou, sou melhor e sou dono”.
Tudo isso é tolice que só nos traz um péssimo convívio neste mundo. Diversas sociedades humanas se foram e irão, mas sempre quem ficou (e ficará) foi (será) Vovó. Nem precisa ser indígena para saber disso, diversas ciências ocidentais como a Ecologia, Arqueologia, Agronomia e estudos de Evolução também sabem disto.
O que proponho em meu trabalho é o tensionamento deste antropocentrismo, de todo este achismo que se expressa em uma pretensão de quase imortalidade humana. A nossa espécie é muito inteligente e cheia das suas peculiaridades, mas é apenas mais uma neste mundo. Nossa espécie, ao ignorar que somos natureza, e ao enxergá-la como o que está distante, também deu a si o seu sentido de “natural”. Aqui e agora este “natural” é uma normalização de violências diversas à Vida: dos ecossistemas aos bichos-gentes.
É uma natureza de abandonos, de tristeza, medo e desigualdades. O que busco com Uýra é também trazer ao olho aquilo para o qual esta natureza virou de costas, que finge não ver, por isso busco nexos que geram imagens sobre a violência social e destruição ambiental. Para além de dor, meu trabalho fala também de Vida.
Os nexos buscados também são sobre estes paralelos de forma, energia e comportamento entre humanos e as outras criaturas. São metáforas em imagens, criadas para lembrar que o que está vivo ao nosso redor também é bonito, nobre e pode nos ensinar.
Por fim, volto nossa conversa ao termo “esperança”, que ilustrou a capa que você estrelou na edição da Vogue em setembro de 2020. Na matéria, ao discorrer sobre os etnocídios, genocídios e ecocídios em curso como projeto de Estado no Brasil, ainda mais escancarado no último ano com as queimadas da Amazônia, do Pantanal e do Cerrado facilitadas pelo bolsonarismo, você coloca o termo como um gesto de ação coletiva que é sinônimo de “fé”, afirmando que a sua “nasceu velha”. Poderia comentar como esse princípio tem atravessado tua prática ainda mais neste momento extremamente violento, em que Manaus é tornada epicentro da pandemia do COVID-19 pelo descaso histórico do Estado brasileiro?
O Brasil foi construído à base de explosão da Vida indígena e hoje está sendo implodido. Como habitar este território sem Fé? Quando digo que a minha nasceu velha, é porque assim é, reflexo do que nem sei com exatidão, mas sinto e aprendo estudando História e principalmente a Memória de nossas anciãs e anciãos, que atravessaram a desgraça dos últimos séculos, de diversas as formas, para que eu e todos os meus parentes aqui estejamos hoje. Sem fé de lá pra cá, nada seria possível. Por isso a minha é velha, é uma herança chamada ancestralidade.