#18 Atos de Retomada | Ecoando micro revoluções para reencontrar o encontro
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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Maria Clara Camarotti
Atriz, diretora, performer, professora e pesquisadora. Mestranda em Artes Cênicas (UFBA) e Graduada em Artes Cênicas (UFPE)
Onde os outros propõem obras, não pretendo outra coisa senão mostrar meu espirito.
Artaud
Olá! Boa noite!
Que bom ter você aqui!
Este é o chão do Teatro Marco Camarotti. Nos últimos dois anos, por muito tempo, ele esteve vazio, no escuro. Hoje, agora, nós recomeçamos outra vez. Palco e plateia, teus, meus, nossos, vossos pés vivos habitando esse velho espaço…
Pedimos celulares desligados ou no silencioso.
Que tenham todas, todes, todos, um bonito encontro com o presente que se revela nesse corpo-história que nos veste e abisma. Início, despedida, onde nada começa ou termina, continua. Assim sobrevivemos.
Cuidemos e deixemo-nos cuidar, na labuta de entregar ao tempo a redescoberta de reencontrar o encontro, esse não-saber. Afetos é o que desejamos. Ar-FÉ-FETOS, recriações de mundos na intimidade desse teatro aberto, a vida.[1]
{Enquanto a atriz-performer Tanit Rodrigues movimenta-se patinando ao som de Amor Cinza de Matheus Aleluia, o ator-performer Fábio Alves escreve mensagem de boas vindas para recepcionar o público.}
Retornamos. “Caminhamos para voltar”, assim me foi dito, em um dia sensível do processo, por Karol Spinelli, uma das alunas/atrizes. Este não é um texto para deleites academicistas, nem para o distanciamento causado pela análise racional e lógica objetiva. Este é um texto para as peles porosas, para os corações que pulsam ao se encontrar com a vida e ser vida. Este é um texto meio relato, meio performático, meio ficcional, meio imagético, inteiramente real.
Convido a respirar as letras, palavras, frases. A imaginar um palco nu, recheado de presenças que estão ausentes. Um palco que aos poucos recebe um novo pisar, um novo respiro. Um palco que, em tempos dilatados, é reocupado, que volta a abrigar, a abraçar. Um palco de reencontros.
Cresci e vivi crendo que o teatro é a arte do encontro. Agora, aos 40 anos de idade, após viver dois anos de pandemia, isolamento, medo, incerteza, isso me traz outro sentido, um novo sentir.
Nós ficamos tão perturbados com o desarranjo regional que vivemos, ficamos tão fora do sério com a falta de perspectiva política, que não conseguimos nos erguer e respirar, ver o que importa mesmo para as pessoas, os coletivos e as comunidades nas suas ecologias (KRENAK, 2019, p. 23-24)
Em agosto de 2021, fui convidada a conduzir a disciplina-eixo do 5º módulo do Curso de Interpretação para Teatro (CIT) do Sesc de Santo Amaro-PE, a fim de realizar a montagem que encerraria o ciclo de três anos de formação profissional de atrizes e atores. Além da unidade de Santo Amaro, o CIT também acontece na unidade do Sesc de Piedade. Trata-se do último curso contínuo oferecido na área de formação teatral, pelo SESC-PE, encerrando um percurso de investimento pedagógico significativo da instituição, que principia com oferecimento de curso de Iniciação Teatral, desenvolve-se para Curso Avançado e finaliza com um dos poucos cursos profissionalizantes em interpretação teatral no estado de Pernambuco.
O CIT é um curso extremamente exigente, em que, durante 5 módulos vividos progressivamente e ininterruptamente, com uma duração projetada de dois anos e meio, as alunes/atrizes vivenciam aulas de segunda a sexta, todas as noites, de 19h às 22h, com demandas de trabalho extras e bem intensas. Para ingressar, requer um alto nível de comprometimento e entrega, elementos fundamentais para qualquer artista teatral, pois como bem aponta Bogart ao falar sobre a natureza do ato de criar e dirigir um espetáculo teatral:
A palavra compromisso (em inglês, commitiment), vem do latim committere, que quer dizer “por em ação, reunir, juntar, confiar e fazer”. Comprometer-se com uma escolha dá a sensação de violência, a sensação de saltar de um trampolim alto (BOGART, 2011, p. 63)
Com uma estrutura pedagógica e institucional bem elaborada e cuidada em sua origem[2], o CIT tem sido um curso fundamental para a formação, consistência e renovação de jovens atrizes e atores do estado. No caso da Unidade de Santo Amaro, o CIT encontra-se neste ano na finalização de sua terceira edição, possuindo duas turmas anteriores formadas.
Já tive a honra e o prazer de fazer parte da equipe de professores desse curso em suas duas últimas edições, junto a uma equipe incrível de artistas e professores profissionais da cidade, como Rodrigo Cunha, Anamaria Sobral, Silvia Góes, Quiercles Santana, Marianne Consentino, Leidson Ferraz, Luiz Felipe Botelho, Ceronha Pontes, Sonia Guimarães, Nana Sodré e muitas outras. Agora me vi tendo o desafio de dirigir, com todos os afetos que envolvem esse compromisso, o último trabalho cênico de uma turma de 18 jovens artistas, que, mesmo diante de uma pandemia mundial, concluem um curso de alta demanda e intensidade.
Nessas palavras livres e repletas de afetos, tento compartilhar, mover, remover, ecoar o caminhar dessa turma, de sua equipe pedagógica e de criação, que esteve em cinco meses entregues a tentar buscar como podemos reencontrar o encontro com o público, conosco, com os corpos, com os olhares, com o coletivo.
De perto, quem estivesse veria que era um poema,
que dança e pede ajuda, que corre perdido e, ainda assim, alegre.
{Trecho da música poema Dança, de Pedro Bomba, pertencente à cena pós recepção do público.}
O que antes era cotidiano, almejado, natural das artes da cena – o encontro – hoje ele se transformou em um mistério. Como buscar e viver o encontro, quando ele se tornou sinônimo de perigo, podendo ser, até mesmo, letal? Respiro fundo: o que antes seria um convite para mergulhar, hoje sinto medo de vivê-lo. Como conduzir uma montagem de finalização de um processo formativo, de um dos principais cursos de teatro do estado de Pernambuco, em que 18 alunes passaram dois dos três anos de curso atual vivendo o teatro por meio de tela? Como retomar o palco, esse espaço físico, e estar juntes com os poros tão sensíveis, carentes de afetos e de presencialidades, marcados por ausências de toque, por uso de máscaras e álcool 70? Como criar sob novos protocolos?
Para iniciar esse encontro, de aprender juntes a estar voltando ao encontro em estado físico, nutri a mim e às jovens atrizes/atores desses gestos-palavras[3] em tempos de resistência:
Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover.(…) pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim. É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo, não como metáfora, mas como fricção, poder contar uns com os outros (KRENAK, 2019, p. 26- 27).
Se você trouxer seu lar, eu vou cuidar do seu jardim
Registro da apresentação da peça Ecos | Imagem – Maker Mídia | #ADnoTextoAlternativo #4ParedeParaTodes
{Frase da peça Por Elise de Grace Passô, que foi projetada tanto no ciclorama quando no chão, cadeiras, passeando por todo espaço presente, enquanto entra a persona da SENHORA (ou SEM HORA), criada pelo ator performer Danilo Ribeiro. Com sua imagem enigmática atravessa o tempo do palco, entregando o tempo de colheita à plateia.}
Foi pulsando com as palavras de Ailton Krenak que me pus novamente a sonhar com histórias. Entendo o sonho não como um simples ato cotidiano, algo que ocorre ao dormir, mas, sim, como o próprio Krenak diz, como um “exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia” (KRENAK, 2019, p. 51-52).
Desde pequena, como filha de um pai e uma mãe artistas teatrais, vivo a magia que o encontro teatral proporciona. Por isso sei que estar entre criadores que se dedicam almejando o dia da estreia, o dia do grande encontro, que durante semanas, meses e até anos se juntaram em uma sala de ensaio e entregam seus corpos, emoções, reflexões; que doam seu suor e sangue, que deixam lágrimas transbordarem, risos afrouxarem, corpos se encostarem em contato, abraços e descobertas. O último processo de retomada às presencialidades me pareceu quase que uma utopia, uma projeção de uma memória distante que se faz de um passado não mais presente.
Borgart diz que “o ato da memória é um ato físico e está no cerne da arte do teatro. Se o teatro fosse um verbo, seria o verbo ‘lembrar’” (BOGART, 2011, p. 30). Ao longo dos meses, fui percebendo que não era sobre lembrar – sim, o corpo lembra – mas vi que era sobre recordar, no sentido etimológico da palavra: “voltar a passar pelo coração”. E foi assim que criamos.
É por isso que eu peço: cuidado com o que planta no mundo.
Cuidado com o que toca; com a capacidade que gente tem de se envolver com as coisas.
Não adianta fingir que não sente. Gente sente tudo, se envolve com tudo!
{Trecho do monólogo da personagem Dona de Casa da peça Por Elise de Grace Passô. Com a poesia e grandiosidade dessa autora, nos alimentamos a sentir, e a partir de suas palavras construímos uma cena em contradição: enquanto nos isolamos, corremos; enquanto corremos, morremos; e tudo que queremos é sentir uns aos outros. Na foto, a atriz-performer Heidi Trindade.}
A princípio, a ideia do quinto módulo do CIT Santo Amaro era de um retorno completamente presencial, assim como o encontro com o público. Porém, alguns alunes não se sentiam com condições de estar na presença (estamos falando ainda de um contexto de pleno avanço da Covid 19 e suas variantes, com parte dos alunes sem a vacina ou com vacinação incompleta), enquanto outres só continuariam se os ensaios fossem presenciais. Tentando respeitar uma realidade completamente nova para todes, e abarcar uma diversidade, tive que me exercitar em uma metodologia que pudesse incluir a todes. Assim, nos dois primeiros meses do trabalho, eu tinha parte do grupo com encontros presenciais, e, com a outra parte, encontros online.
Toda arte nasce de uma situação específica, toda obra é gerada em função de um contexto, em função de determinada situação, toda obra é um desvio, Toda obra, ao mesmo tempo que pretende ser uma última verdade, é ao mesmo tempo uma mentira. (AMANTY, Apud, ALICE, 2016, p. 218)
Sim, meu barco é simples, é pequeno, só me cabe lá
dentro, mas eu me
sinto tão bem
Fico a maior parte do meu tempo nele, eu me
sinto bem lá. Me sinto
sozinho, mas não sei por quê,
me sinto bem
{Continuamos mergulhados na poesia de Grace Passô, agora convidando trecho do monólogo de Marcos, personagem da peça Marcha para Zenturo, em uma cena rodeada de memória de quem partiu, das saudades presentes, dos isolamentos forçados, das descobertas de estar consigo.}
Aqui resolvo pausar. Levo minhas mãos ao meu peito e sinto o coração acelerar. Percebo como escrever neste presente, evocando esses pensamentos, recordando, faz tudo voltar ao coração. Abro o campo da vulnerabilidade e exponho que me senti só em alguns momentos de criação. Olho para 18 pessoas e vejo-as feridas, com quase dois anos de isolamento, que não sabemos ainda dimensionar. Minto, não são 18 pessoas feridas, são 19, pois estou aqui me sentindo em carne viva, lágrimas rolam sobre meu rosto. Respiração ofegante de quem ainda não sabe estar junta. E durante o processo foi a mesma coisa.
Apesar de ter sido uma escolha voltar ao presencial, talvez pela necessidade do encontro físico, a verdade é que estávamos machucadas e desconfiadas. Vejo peles, ossos, suor, sonhos. Não vejo seus sorrisos, estão ocultados por uma máscara, de pano ou cirúrgica Pff2. “Eita, pega o álcool”, “abre as janelas”. Tocar? Nem pensar. Corpos afastados. Encontro um olhar e sinto carinho, me vem o impulso do abraço, mas qual o protocolo a seguir? “Posso te abraçar?” Alguns braços se abrem com prazer, outros com desconfiança, mas todos ali se propõem ao risco do contato.
Outras pessoas, pela tela. “Gente, por favor, mantenham câmeras abertas”. Algumas expressões me afetam: estão entediados? Como usar mesmo este recurso para compartilhar a música? Do som, vem a música gostosa, relaxante, acho que é Metá Metá. “Clara, não dá para me mover aqui, não tenho espaço”, “Ok, então vamos tentar adaptar”. Como posso ativá-los para criar? Penso, imagino, experimento, brinco. “Hoje a aula começa no zap!”, iniciamos fofocas, figuras, memes brincamos. “Entrem na sala virtual agora”, euforia que diminui, novamente fogo baixo, “Clara, não quero ficar com câmera aberta”, “eu sei, mas tenta, precisamos nos ver”, “E se fizermos uma intervenção performática por telefone com o pessoal do presencial?”. Sorriso, empolgação, “Uau como é lindo ver vocês assim nervoses e felizes na projeção da interação com outres”. Passou, novos desânimos. “Gente, criem com o que ajuda vocês a sobreviverem”.
Até hoje espero um abraço
{ Aqui guardamos, dentro dos nossos corações e memórias, guardamos a despedida, o abraço esperado que não chega. Aqui nos emocionamos com o diálogo criado por Giordano Castro na peça do grupo Magiluth, Aquilo que meu Olhar Guardou Para Você. Na foto, os atores-performer Cristiano Primo e Raphito de Oliveira.}
Uma diversidade de pessoas, vidas, realidades e meios se juntavam para criar. Não, a diversidade, a diferença não me assustam, celebro esse caos, como diz Krenak, ao falar da sabedoria dos diversos povos originários:
A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos iguais (…) Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades – as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos. (KRENAK, 2019, p.31-33)
Foi entendendo as realidades diversas que estávamos e percebendo as urgências de fala das singularidades presentes, que senti que essa montagem não poderia ser uniforme, una, de uma única fonte ou formato. Fomos pelo caminho de uma dramaturgia em processo, dando espaço para diversidade. Optei por um espetáculo sem purismo, híbrido, meio performático, textual, corporal, que se uniam à procura da presença.
E assim foi que começamos as vivências de várias microrrevoluções protagonizadas por 18 alunes, uma diretora, uma dramaturgista e uma equipe de 03 professores, e um coordenador pedagógico[4], que entre desafios, desastres e descobertas caminharam para a criação e para o nascimento/morte do espetáculo que chamamos de Ecos.
Para meu querido filho…
{ Quem nunca esperou aquela conversa, aquela carta, aquele email de sua mãe com toda sua sinceridade a contar sobre si, sem medo, sem máscara, e nisso revelar todo seu amor e admiração a nós, que por vezes somos tão diferentes e seguimos caminhos até inimagináveis pela nossa família. Aqui o ator-performer Rafael Ferreira se inspira, se estimula por um trecho da peça A Lira dos 20 Anos de Paulo César Coutinho e se expõem, em um email imaginário, ouvindo tudo o que quer dizer e ouvir de quem ele ama tanto.}
Talvez, a esta altura desse nosso encontro, eu que escrevo, você que lê, que estamos aqui sem ver, apenas a nos imaginar, você se sinta um pouco de fora de como foi meu dia a dia nesse percurso. Aqui te convido a nos imaginar, em encontro virtual, afinal, aqui estamos. Te passo meu zap, te imagino passando o teu:
{Será que esta seria nossa conversa? Nosso real-fictício? Aqui nesta intimidade escrevo no fluxo da minha cabeça/coração, nas letras trocadas e sem pontuação da minha dislexia. Não quero mais corrigir. Será que um dia poderei escrever tudo como sou, sem ter que corrigir? Aqui uso palavras livres e figurinhas criadas na espontaneidade e alegria de um grupo de pessoas que se encontra há três anos juntas.}
Durante cerca de dois meses, os encontros aconteciam dessa forma. Mesmo diante da incerteza, do caos, de tanta coisa que acontecia, cada aula, seja ela presencial ou online, tinha um mote, uma investigação, uma busca – a presença :
Hoje em dia, sabemos que a presença em si – mais ainda neste mundo virtualizado – é uma obra de arte (…) toda obra de arte oscila entre uma produção de sentido e uma produção de presença. Toda obra de arte é uma travessia da realidade, uma exploração das sensações, uma busca pela presença. Sempre mais, o grande assunto da arte contemporânea é a presença (…) Pela presença, criamos fios invisíveis que nos ligam neste desejo compartilhando de estarmos juntos habitando o mundo. (AMANTY, Apud, ALICE, 2016, p. 214 -2015)
E foi tão intensa, tão verdadeira essa busca pela presença que, a partir do mês de outubro de 2021, conseguimos o que desejávamos: cada pessoa que estava no online foi chegando para se juntar às fisicalidades presentes e, com muito cuidado, respeito e afeto, conseguimos construir um ambiente onde todas se sentiram com coragem e vontade de estar presencialmente nas aulas/ensaios e voltar a ocupar o palco nu de um teatro tão lindo da cidade do Recife.
Quanta coisa para contar, pensar, partilhar, sentir. Reconheço, neste instante que me vejo diante de uma tela de computador, que talvez eu esteja falando sobre uma das experiências mais intensas, difíceis e importantes que vivi como diretora e pedagoga. Vejo o quanto de afetos tenho aqui pulsando dentro de mim, afetos de todas as qualidades, das mais felizes às mais tristes, das que quero sempre sentir, das que nunca mais quero viver. Mas tudo, todas fazem parte de mim. E foram proporcionadas por essa trajetória histórica do CIT de Santo Amaro.
Eu vivo me perguntando por quê fazer o que faço. Por quê fazer teatro? Por quê performar? Quando foi a ultima vez que você se colocou verdadeiramente vulnerável?
{ Elu mergulhou em si para entender o porquê de fazer arte? Para se desnudar e se entregar a toda vulnerabilidade de ser e estar em cena, aqui trecho do texto e do momento de desnudamento proposto pelo performer e atore Jade Dardenne.}
Para proporcionar o terreno, as sementes, o plantar criativo para o surgimento desse espetáculo, resolvi revisitar, recordar em mim as artes que me afetam, inspiram e estimulam nesse trajeto como criadora. Senti que antes de tentar algo novo, que foi tão exigido de nós nesse período, (teatro online, vídeo performance, vídeo arte, audioencenações etc) era necessário revisitar o que tinha sido e encontrar o que em tempos de isolamento e distanciamento ainda se mantinha ecoando em mim. Aqui foi o momento que revisitei dramaturgias e criações de artistas que me inspiram a resistir no afeto da arte, como Grace Pâsso, Giordano Bruno, Mia Couto, Pina Bausch, e que, mesmo antes de eu saber, fariam parte da dramaturgia processual de Ecos.
Sentindo a força das obras artísticas que ecoavam dentro de mim, trouxe, como mote para os nossos primeiros passos, a pergunta “O que te afeta e o que você quer afetar no outro neste momento?”. E assim foram surgindo as cenas, textos, movências que estruturaram o espetáculo Ecos. Em uma maneira híbrida, bastante performática, pois compreendi que este era o impulso tanto da turma, quanto do momento em que vivemos na arte e no tempo, entendendo a performatização como tão bem ensina Tânia Alice:
Muitas vezes considerada abstrata ou enigmática, a linguagem da performance responde aos impulsos criativos mais diversificados de artistas que expressam seus anseios, desejos e vivências dentro de uma linguagem adaptável em função das exigências dos seus criadores, espaços e participadores, constituindo-se a partir e contaminando todas as linguagens artísticas (…) É nesse sentido que podemos entender a linguagem da performance: como uma linguagem que não constitui apenas uma representação de determinada situação ou contexto, mas que, realizando e efetuando-se, modifica o presente, influi ativamente nele, propondo transformações nos modelos de poder vigentes, remodelando as subjetividades e as relações previamente estabelecidas. (…) É nessa transformação que podemos ver a potência principal da performance: a performance não representa, mas é, transforma, recria, remodela modelos vigentes, tornando visível e palpável o invisível e o despercebido, e propõe alternativas para a transformação. Acredita. Impulsiona. Remodela. Reinventando, sempre. (ALICE, 2016, p. 22- 23)
Entender a performance como componente estilístico das cenas de Ecos foi fluido e natural, tão forte era essa necessidade desses jovens artistas da cena. Contudo a criação dramatúrgica se apresentou como um grande desafio, afinal eram tantas vozes, tantas necessidades de dizeres, tanto foram e são os silenciamentos nesses últimos anos no Brasil e na vivencia pandêmica de mundo e dia a dia, que escolher, selecionar optar sobre o que ecoar no palco foi difícil e trabalhoso. Aqui tivemos o olhar, ouvido, voz, corpo de Silvia Góes auxiliando nessa construção. Silvinha, que havia sido professora da turma no modulo 3 do curso, à frente da disciplina Análise de Texto, foi uma das artistas que iniciou o processo de aula presencial, quando após um mês de trabalho recebeu a notificação do isolamento, da necessidade de se reinventar em aulas remotas para turma.
Como havia encontrado esses jovens antes da mudança radical da presencialidade para o remoto, a escolhi como dramaturgista para reencontrá-los e estar, comigo, novamente na presença. Juntas percebemos as feridas causadas em cada um pela quarentena, as urgências de grito, de choro e de riso que traziam, e fomos cuidadosamente ouvindo cada ecoar singular. Junto com proposições textuais que levávamos, assim como o abarcar de criação dramatúrgica que cada um trazia, fomos entendendo os diálogos que se criavam entre cada voz presente.
Ecos foi um espetáculo que buscamos afetar a nós e ao público, entendendo que precisávamos vivenciar a magia proporcionada pela arte e poesia para curar um pouco de algumas das nossas feridas. Alice reflete que: “‘a cura performática’ se apresenta não apenas como uma cura individual e relacional, mas, igualmente, social e contextual.” (ALICE, 2016, p. 182). Para curar era necessário sentir, se abrir, estar vulnerável, desejar o encontro, mesmo que na incerteza dele. Fomos aprendendo que precisávamos cuidar, cuidar entre nós, cuidar do público que chegaria, cuidar do tempo, da terra, cuidar dos afetos, pois ali residia a nossa grande transformação, revolução:
A capacidade de afetar e de ser afetado, de ser transtornado, transformado e transbordado pelo outro, de perder-se nele para alimentá-lo e ser alimentado de volta se apresenta para mim, como artista-pesquisadora, como um critério possível para pensar uma ação teatral/visual/performática: não pela estética – que pressupõe uma esterilização do cotidiano e dos registros -, não pela dimensão do alcance social – problemática conforme vimos -, mas pela disponibilidade de se abrir ao outro sem restrições. A profunda capacidade subversiva da performance reside em sua possibilidade de configurar-se como uma revolução dos afetos. (ALICE, 2016, p 134).
Ecoando gritos de medos, dúvidas, dores, amores, desejos, lutos e necessidades de pulso de vida, dia 16 de dezembro 2021 retornamos ao palco com Ecos. A apresentação que estava prevista para ocorrer durante três dias da mesma semana de dezembro, só aconteceu no dia 16 de dezembro como um formato de ensaio aberto, devido à falta de maior apoio e participação da própria instituição Sesc na sua construção e que repercutiu também na própria condição da turma em se manter unida e continua ao processo.
Assim como diversa(o)s artistas têm vivido no Brasil, não estamos apenas sofrendo com um vírus tão perigoso, mas também com o contínuo desmonte da cultura e das artes, com a falta de consideração e respeito ao nosso ofício. Apesar de representantes da instituição buscarem e se dedicarem a contribuir da melhor forma com essa conclusão histórica de 18 artistas que se encontram em três anos de trajeto formativo intenso, muitas também foram as ausências e obstáculos internos – a exemplo de sobrecarga de trabalho dos funcionários, conflito dos agendamentos da utilização dos espaços adequados para abrigar trabalhos cênicos com 18 pessoas em protocolo de pandemia, pouco suporte e orientação financeira e de produção, falta de contratação de profissionais especializados para uma montagem teatral –.
Apesar das dificuldades e complicações encontradas para finalmente nos reencontrarmos com o público, hoje observo as conquistas alcançadas. Foram dias repletos de micro revoluções para voltar a celebrar o encontro. E mesmo que breve, mesmo que repleto de brechas, conseguimos reencontrar o encontro entre a gente e com o público, e com ele relembrar de quem somos neste mundo e neste tempo enquanto artistas. A arte é e sempre será uma das armas mais poderosas de luta e transformação dos tempos.
Fecha os olhos! Tá fazendo o que aqui uma hora dessas? Não sabia que aqui é perigoso?
{ Ecos finaliza como tudo começou, com a celebração da fertilidade, dos instintos, dos impulsos, da beleza e terror de estarmos aqui, agora, juntes, da exaltação do prazer e da vida, e como isso assusta. Por isso esse alerta, evocando as palavras das filhas de Medeia, materializadas pela poesia de Grace Passô, em Mata Teu Pai. Na foto, a atriz-intérprete Bruna Sales.}
De um jeito ou de outro Há sempre um esperançar Na potência do grito Quando os ecos agem.
{Texto da minha hermana e grande artista Silvia Góes, que passeia por todo o teatro em projeção e nos lembra que, como me foi ensinado pelo mestre Marco Camarotti ao recordar as palavras do filme Festa de Babete: Um longo grito do coração dos artistas ecoa no mundo: me dê a oportunidade de dar o melhor de mim.}
Referências
ALICE, Tania. Performance como revolução dos afetos. São Paulo: Annablume, 2016
BOGART, Anne. A preparação do diretor. São Paulo: Martins Fontes, 2011
CAMAROTTI, Marco. Diário de um corpo a corpo pedagógico. Recife: Editora Universitária UFPE, 2000.
CASTRO, Giordano. Aquilo que meu olhar guardou para você. Natal: Fortunella Casa Editrice, 2016.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2019
________________ A Vida não é útil. São Paulo: Cia das Letras, 2020
PASSÔ, Grace. Por Elise. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012.
____________ Marcha para Zenturo. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012
____________ Mata teu pai. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017.
Notas de Rodapé
[1] Texto de recepção ao público, escrito por Sílvia Góes, para a peça teatral Ecos. Junto a mim, Góes assina o trabalho de dramaturgismo do espetáculo.
[2] O CIT é resultado de uma reformulação do antigo Curso Regular de Teatro do SESC-PE, com uma nova proposta de Projeto Pedagógico criada pelo professor Roberto Lúcio Araújo.
[3] Durante o processo, surgimos com a nossa composição de gesto-palavra, termo que utilizo para nomear nossas movências corporais, que expressam profundidades dos nossos afetos-memórias, deixando o gesto do corpo compor nossas palavras, frases, discursos, que entregamos ao público num mar de vozes em cena.
[4] Aqui honro o nome de cada um, que da forma que conseguiu, se entregou para esse caminhar de reencontro: Bruna Sales, Carolina Rolim, Cristiano Primo, Danilo Ribeiro, Fábio Alves, Guara Rios, Heidi Trindade, Jade Dardenne, João Pedro Pinheiro, Julia Moura, Karla Galdino, Karol Spinelli, Larissa Pinheiro, Rafael Dayon, Rafael Ferreira, Raphito de Oliveira, Tanit Rodrigues, Gabriel Lisboa, Wellington Junior, Pedro Rodrigues, Samuel Lira, Samuel Bennaton, Luciana Raposo e Silvia Góes.