#19 Artesanias Digitais | Mapa para ilhas desconhecidas – Ensaio sobre micropoéticas relacionais em tempos de tecnovívio
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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Raphael Bernardo
Ator-pesquisador, performer, professor. Mestrando em Artes Cênicas (UFU) e Graduado em Teatro (UFPE)
Garrafa ao mar: sinais de fumaça de um náufrago[1]
Caro leitor, você está em meu futuro. Daqui, desse momento, faço preces para que, quando as minhas palavras chegarem até você, a situação no Brasil já esteja tranquila. Você está abrindo agora uma cápsula do tempo. Acho importante situar de onde nasce esta pesquisa, melhor, quero compartilhar com você a paisagem que me cerca.
Esta pesquisa nasce do desejo de investigar as possibilidades de criação em teatro a partir das relações entre artistas e público. O desejo inicial vem do meu encontro com o pensamento de Nicolas Bourriaud, mais especificamente com a obra “Estética Relacional”, onde o autor investiga criações artísticas em que o encontro é a própria obra a ser vista e apreciada. Essa foi a minha primeira inquietude. Mas preciso voltar para meu tempo presente. Perdão, logo falaremos novamente sobre Bourriaud.
2021. Hoje, estou no Brasil, mais especificamente no Nordeste do país, em Pernambuco. Os primeiros desenhos para essa investigação foram desenvolvidos em um cenário completamente diferente do que se encontra agora. Em seu plano ideal, essa pesquisa seria realizada na cidade de Uberlândia, onde eu deveria morar durante o meu processo de mestrado. A pesquisa seria realizada com artistas mineiros, explorando cenários urbanos da cidade.
Mas estou no biênio 2020/2021. O mundo como um todo foi surpreendido pela pandemia do Coronavírus. Nosso país ostenta a triste marca de mais de 600 mil mortos[2]. Para muitos de nós, está sendo muito difícil existir e, consequentemente, criar artisticamente. Desde março de 2020, percebemos pouco a pouco os efeitos desse vírus. Primeiro a morte do outro lado do mundo, depois do outro lado do país, mas logo a notícia foi de morte em nossa cidade vizinha. E, quando menos se esperava, a vizinha da frente tinha sumido, depois minha tia, depois uma colega dos tempos do colégio… Esse vírus que vem matando milhares de pessoas vai também dilacerando os pouquinhos o coração de quem fica.
A princípio, antes da criação das vacinas, para lutar de forma preventiva pela vida, não tínhamos muitas alternativas: cuidado redobrado com a higienização, uso de máscaras e, sobretudo, distanciamento social. Vários países apostaram em restrições sociais severas e hoje já conseguem colher os frutos, voltando aos poucos ao convívio social seguro.
O distanciamento social impôs a suspensão de várias atividades. Toda atividade social que não fosse caracterizada como ação essencial para a manutenção da vida deveria ser interrompida até que houvesse um maior controle sobre o vírus. Os teatros foram uma das primeiras atividades suspensas, pois não havia condições de manter o público em uma sala fechada de espetáculos. Todo tipo de aglomeração precisava ser suspensa. Essa decisão que, inicialmente, levaria alguns dias, se transformou em semanas, depois meses.
Em compensação, um novo teatro começou a ser vivido. Não tão novo, já que experiências cênicas em diálogo com as neotecnologias – tecnologias ligadas pela rede mundial de computadores – são localizadas antes mesmo da pandemia, mas agora de forma bem mais intensa. Com o desejo de encontrar novas ilhas, de descobrir arquipélagos e, assim, diminuir um pouco a sensação de naufrágio, amparados por recursos neotecnológicos, diversas práticas artísticas começaram a ser gestadas,
O “teatro possível” buscou driblar a impossibilidade de encontros, instaurando o que o professor Jorge Dubatti (2016) denominou de tecnovívio,que passaram a ser mediados por dispositivos tecnológicos. Esses trabalhos começam a ser desenhados de diversas formas e, na maioria das vezes, ressignificando plataformas já existentes, que não haviam sido criadas para acomodar criações artísticas, como plataformas de vídeo-conferências e aplicativos de mensagens instantâneas. Em exílio, começamos a nos apropriar das possibilidades deste território digital.
Essas ações foram um impulso de vida de muitos artistas, que criavam como uma forma de resistência, para se manterem vitais diante do isolamento social. Claro, há também nessas criações impulsos de subsistência, era preciso, de alguma forma, começar a desenhar caminhos de manter sua vida: pagar contas, comida, aluguel…
As reflexões deste trabalho são frutos da experiência cênica digital Mapa das ilhas desconhecidas, estreada em julho de 2020, cumprindo uma temporada mais longa em fevereiro de 2021 graças ao incentivo da lei emergencial de cultura Aldir Blanc. Resultado de um processo pedagógico gestado entre telas – “Encontro de ilhas: táticas de criações relacionais em meios digitais” – ação desenvolvida pelo Laboratório de Criação Relacional[3], espaço de pesquisa cênica que vem se delineando desde maio de 2019.
Habitando esse novo espaço, começamos a pensar sobre as qualidades de encontro possíveis. Com nossos encontros desterritorializados, é possível uma teatralidade que busca construir dispositivos relacionais onde o público é convocado para participar de forma performativa na criação cênica? É possível pensarmos em uma micropoética relacional em estado de tecnovívio?
Traçando uma cartografia.
Ao evocar a discussão sobre uma poética relacional na criação teatral, estamos falando diretamente sobre as dinâmicas de criação que convidam o espectador a agir “tomando parte na elaboração do evento cênico ou social […] As categorias tradicionais da identificação, da admiração ou da comunicação são rejeitadas em favor de uma ação direta dos participantes” (PAVIS, 2017, p. 220). Ao trocar a função do público, de espectadores para colaboradores, essas obras costumam repensar as distâncias e partilhar, de uma forma ainda mais aberta, a ideia de jogo.
São incontáveis as propostas que sistematizam o desejo de participação. Pavis (2017) nos lembra que ela não implica necessariamente a interação física dos corpos e que está ligada às convenções sociais e culturais – as estratégias para a participação do público no Japão são diferentes das estratégias pensadas para o público no Brasil, por exemplo – “El público deja de ser um punto de llegada, para convertirse en el lugar de partida, el material humano básico con el que se trabaja” (CORNAGO, 2016, p. 194).
Juan Enrile (2016) nos lembra da necessidade de não reproduzirmos a falácia de que o teatro com dinâmicas participativas dotaria os espectadores com um papel ativo, enquanto os espectadores do teatro “convencional”, representações que mantêm a distância entre público e cena, estariam entregues a uma suposta passividade. Tal pensamento é fruto de um recorte histórico, o teatro no ocidente propôs, ainda no Renascimento, convenções que difundiam uma autonomia da encenação diante do espectador. Um movimento que institucionalizou o evento teatral com princípios burgueses, consolidando o modelo de palco à italiana, desenvolvendo um espaço hermético: as distâncias entre palco e plateia são determinadas, o controle sobre a iluminação é explorado, o público começa a ser organizado nesse espaço, cabendo a eles estarem sentados e silenciados durante os espetáculos (DE PAULA, 2015).
Mas não podemos esquecer que o público das experiências “convencionais” de teatro precisam engajar suas sensibilidades e pensamentos em seus processos de recepção. Há um desenvolvimento ativo para a construção dos sentidos que são individuais e intransferíveis. O ponto chave estaria no questionamento da divisão do trabalho e nas possibilidades de construção de relações, entre artistas e públicos, no processo de criação artística.
Nem todas as formas cênicas participativas são relacionais. As dinâmicas participativas relacionais, especificamente, buscam a participação do público visando questionar as formas de interação humana, não construindo uma cena para ser representada diante do público, mas produzindo um dispositivo que gere relações entre artistas e público. A arte relacional é uma aliada para gerar o que Eugénio e Fiadeiro (2012) chamam de “acidente-catástrofe”, um movimento que faz com que os corpos se esbarrem em uma situação desproporcional as nossas expectativas, tornando os nossos habituais sistemas de leituras do mundo inviáveis, exigindo de nós a elaboração de respostas concretas diante da obra artística.
Um trabalho que se propõe a dialogar com os princípios da estética relacional não tem necessariamente uma forma pré-estabelecida, uma única metodologia ou poética de composição. Muitos são os trabalhos teatrais que se propõem a deslocar o espectador do lugar de testemunha da ação, trazendo-o como elemento importante e essencial para a construção da cena.
Para Dubatti (2020) toda poética de criação teatral é territorializada, construída em um terreno de subjetivação, com coordenadas geográficas, históricas e culturais particulares. A tarefa de compreender uma micropoética de criação através de generalidades é impossível. Podemos encontrar pontos em comum, questões similares, mas cada criação está envolvida em suas singularidades de processo. Para que possamos entender uma micropoética de criação, precisamos observar de perto seus desejos e escolhas diante de suas questões micropolíticas. Sendo assim, é mais apropriado pensarmos na possibilidade de micropoéticas relacionais na composição da cena.
Dito isto, seria possível pensarmos em micropoéticas relacionais através do tecnovívio? As relações – entre público e artista – mediadas por telas podem ser elevadas ao nível da colaboração na composição da cena digital?
Steve Dixon, como apresentado por Muniz e Falci (2018), nos fala sobre a possibilidade da “performance online e a interatividade a ser performada”. Para o autor, podemos organizar a interatividade do público em performances online em quatro níveis: navegação, participação, conversação e colaboração.
- A navegação acontece em trabalhos onde há ações com escolhas simples, quando todas as atitudes dos interagentes são previstas e definidas anteriormente, como acontece na peça jogo “(Des)memória”, da diretora e atriz Yara de Novais[4].
- Já na participação o público é confrontado com questões específicas no início da interação, definindo como o sistema reagirá em sua experiência. Um exemplo pode ser visto na obra “Amor de cuarentena”, de Guilhermo Cacace[5].
- A conversação abre caminho para o dialógico. O sistema estabelece diálogo com os interagentes, negociando as suas escolhas, mas aqui o artista não abre mão de ser o condutor da prática. A experiência cênica digital “Clã-destin@”, do grupo Clowns de Shakespeare[6], nos serve de exemplo para este nível de interatividade.
- Por fim, na colaboração, os interagentes performam coletivamente para construir a obra. O artista estimula um processo de reação em seu público visando a composição da cena, abrindo, cada vez mais, para uma atitude de coautoria. O “Mapa das ilhas desconhecidas”, do Laboratório de Criação Relacional[7], é um exemplo de busca de colaboração com o público, na sua tentativa de firmar uma micropoética relacional. Sobre esse trabalho, nos debruçarmos mais atentamente no próximo ponto.
Uma ilha desconhecida no horizonte
Tínhamos o desejo de criar um espaço de investigação e criação teatral colaborativo, diante do cenário pandêmico, que desse conta de nos responder sobre uma possível micropoética relacional por meio do tecnovívio, produzindo caminhos que pudessem desenvolver trabalhos possíveis de serem vividos, construindo encontros entre artistas e espectadores em situações de isolamento social. Apoiados no conceito de tecnovívio (DUBATTI, 2016), quando há uma mediação tecnológica sobre a expectação artística que desterritorializa o encontro entre artistas e público em um mesmo espaço, para repensar as possibilidades do ator e da atriz em estabelecer encontros de partilha de poiesis por meios digitais.
Partindo de um espaço de experiência pedagógica e artística, nossos objetivos eram: Introduzir os artistas participantes no universo específico dos conceitos básicos da estética relacional; apresentar um panorama de experiências de criações relacionais em diálogo com as neotecnologias; investigar o uso de plataformas digitais na criação teatral; desenvolver processualmente dispositivos relacionais individuais de criação; e apresentar uma mini mostra online compartilhando criações gestadas pelos artistas participantes no processo do curso.
Para elaborar a metodologia de construção desse processo, investimos na ideia de laboratório, que pode ser pensada de duas formas: “como um espaço de criação e experimentação dentro do processo criativo, e no sentido de workshop, oficina” (FERREIRA, 2016). O laboratório foi realizado totalmente de forma remota, fazendo uso de meios de comunicação digitais, como o aplicativo de mensagens instantâneas, WhatsApp, e o aplicativo de videochamada e reuniões, Google Meet, com o intuito de construir um processo em diálogo, a partir de uma pedagogia digital crítica. Desse modo, parecia possível ampliar as possibilidades de comunicação e acessibilidade, fazendo com que os artistas participantes pudessem pensar e criar por intermédio de diferentes plataformas.
A carga horária total de 20 horas foi distribuída ao longo de duas semanas, com 14 horas de ações síncronas e 6 horas de atividades assíncronas, divididas em momentos de explanações teóricas, orientações individuais e em grupo, somados aos momentos de debates em grupo, criações de experimentos poéticos relacionais individuais e coletivos.
Os participantes recebiam diariamente instruções de jogos e programas performativos que serviam de estímulos para as criações dos dispositivos relacionais. Essas criações, gestadas nos momentos individuais e assíncronos, eram partilhadas nos momentos síncronos do laboratório, onde eram friccionadas pelas outras produções dos alunos-artistas, transformando-se no processo, dando novas formas as suas células de criação, abrindo possibilidades para um trabalho dialógico.
O diálogo principal com o grupo se deu através da plataforma WhatsApp. Este instrumento facilitou a comunicação, visto o seu alto grau de acessibilidade. O seu uso também foi proposto como uma possibilidade de experimentar a construção de procedimentos artísticos em uma plataforma de comunicação cotidiana, reinventando desse modo suas possibilidades de uso.
Todos os artistas participantes do curso foram inseridos em três grupos do aplicativo WhatsApp:
- Grupo 1 (ENVIOS) – Nesse grupo, os artistas recebiam as instruções diárias de trabalho, por ele o condutor do processo enviava os pré-textos de criação a cada dia;
- Grupo 2 (VESTÍGIOS) – Por esse grupo, os artistas podiam compartilhar suas reações aos pré-textos de criação enviados, através de textos, fotografias, vídeos ou quaisquer outros meios digitais;
- Grupo 3 (DEBATES) – Com horários pré-estabelecidos, por esse grupo eram compartilhados debates diariamente acerca de algum tópico de criação. Essa estrutura de comunicação foi inspirada a partir da experiência da oficina “Pequenas performances no cotidiano”, conduzida pela professora Thaise Nardim, da Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Como resultado desse processo, os artistas participantes construíram uma experiência cênico-digital, uma jornada formulada em um percurso que atravessa os aplicativos WhatsApp, Google Meets e Instagram.
Para elaborar o universo de nossa criação, partimos da obra do escritor português José Saramago, O conto da Ilha desconhecida (2010). Não tínhamos o objetivo de alcançar a construção de um trabalho que adaptasse o texto para a cena, nem mesmo ser fiel a uma linha fabular da história. Nossa pretensão era a construção de uma ideia de reação ao texto, como trabalhado por Paulina Caon (2012), onde busca-se desenvolver um estudo sobre o texto, fazendo ligações múltiplas com vários outros estímulos, gerando uma cena que é uma resposta ao mergulho dado. Era desenvolver uma metáfora cênica a partir de pontos que são apresentados no texto e que dialogavam com nosso momento pandêmico: solidão, busca, desejo de encontro e a sensação de ser uma ilha.
Partindo da ideia de criação de um ambiente de convívio por meio digital, “Mapa das ilhas desconhecidas” foi uma experiência cênico-digital que colocou realidades em diálogo – uma realidade social e uma realidade narrativa – para criar um ambiente de jogo de realidade alternada, um terreno liminar, entre a ficção e o real. Este terreno é a zona frutífera para o desenvolvimento de uma “comunidade projetada”, como nos fala Roger Bernat em entrevista à Óscar Cornago (2016), um horizonte em comum de representação – para artistas e público – que permite um ato coletivo de ação, estabelecendo inúmeros caminhos de desenvolvimento para o trabalho. As ideias de comunidades levantadas por essas experiências são explicitamente transitórias, seu público não está ligado por uma raiz identitária, mas pelo desejo utópico de criação levantado pelo jogo.
Através da construção de uma estrutura de narrativa interativa, o público era convocado a participar, decidir e intervir, colaborando em uma criação que tomava como espaço de jogo quatro ambientes: WhatsApp, Instagram, Google Meets e e-mail. Fazendo uso das diferentes modalidades de textos que essas plataformas disponibilizam, uma linha narrativa básica era proposta pelos atores e atrizes.
A equipe, formada por cinco artistas – Raphael Bernardo (direção), Analice Croccia[8] (atuação), João Neto[9] (atuação), Marcela Coelho[10] (atuação) e Sara Yasmin[11] (produção executiva) –, residentes em quatro cidades diferentes, trabalharam durante todo o processo de forma remota, descobrindo os caminhos de criação e produção, por meios do tecnovívio, em um momento de emergência pública. Em nossa experiência, priorizamos a abertura para um trabalho de atuação que dialogasse com uma construção de linguagem para além do vídeo, exercitando as possibilidades de recursos sonoros, textos escritos, imagens estáticas e textos híbridos.
As táticas para compor um encontro de ilhas
Em “Mapa das ilhas desconhecidas”, o encontro dos moradores de um condomínio residencial – Condomínio Arquipélago – é a situação de jogo. Os moradores apresentam os problemas e dificuldades enfrentados em um prédio administrado por um síndico corrupto. O público, durante o jogo/cena, torna-se um morador do edifício e jogando procura encontrar soluções para os problemas que surgem. A partir dessa experiência, passamos a refletir sobre as possibilidades de criação de uma poética relacional em situação de tecnóvivio, investigando um possível estado de comoção, como nos conta a professora Ana Pais (PAIS, 2018), onde artistas e público constroem uma relação de reciprocidade que é a base da criação, uma dramaturgia escrita através do encontro, fazendo com que o trabalho ganhe novos contornos a cada sessão.
Para que a experiência acontecesse, uma hora antes do início das apresentações abríamos as portas do nosso espaço de jogo. O público era adicionado em um grupo de WhatsApp, dávamos as boas-vindas e explicávamos algumas orientações para que a experiência fosse vivida da melhor forma. Com o caminhar do nosso processo, percebemos que, para que o jogo funcionasse da melhor forma, a quantidade de público não poderia ser maior que 30 pessoas por sessão.
No horário marcado, um sinal sonoro era emitido no grupo – uma versão das três batidas de Molière – alertando que estávamos prestes a zarpar em busca de terras desconhecidas. Uma das atrizes grava um áudio em tempo real, compartilha a sua sensação de isolamento, seu sentimento em ser uma ilha. Ainda timidamente, algumas pessoas do público começam a expressar suas identificações com o relato da atriz. Tudo acontece de forma muito rápida, como costuma acontecer nas trocas de mensagens nesses aplicativos, para não perder o barco de vista é preciso atenção, uma dramaturgia é composta rapidamente através de áudios, textos, emojis e figurinhas, recursos básicos da comunicação via WhatsApp.
Um convite é lançado ao público através de um vídeo curto, pedíamos para que cada um compartilhasse a sua linha de horizonte através de uma foto, dando a oportunidade para que pudéssemos conhecer um pouco os territórios de cada um. Uma sequência de fotos invade o grupo, são as imagens dos espaços de isolamento social. Em seguida, o público é direcionado a conhecer mais de perto os territórios dos náufragos-atores, sendo direcionados para salas de vídeo-chamadas via Google Meet.
O encontro íntimo é interrompido por uma mensagem urgente no WhatsApp, todos são convocados a voltar para o grupo geral. Os moradores enviam áudios denunciando a falta de água no condomínio, problema que desestabiliza a vida de todos os condôminos. A denúncia da falta de água é o estopim para que outros problemas do prédio venham a público e que soluções sejam cobradas. Nessa altura da experiência, o público já se apropriou dos recursos do jogo, assumem também o papel de condômino, compondo, junto com os artistas, uma “dramaturgia do convívio”, que é definida por Jorge Dubatti como:
Dramaturgias que, seja pela liberdade que tem o ator para interagir com os espectadores ou pela imposição do convívio sobre o material de cena, produziriam um caso particular. Digamos que o ator deixa de ser uma simples tecnologia do diretor para transformar-se em um gerador de acontecimento convivial, que implica produção de dramaturgia. (ROMAGNOLLI, L. E.; MUNIZ, M. p. 253, 2014).
O debate acalorado só é suspenso quando um “ataque de fake news” invade o espaço de jogo, bombardeando o grupo com um link suspeito. O link direciona o público para a parte final da experiência.
Mapa das ilhas desconhecidas nos faz refletir sobre a potência da arte em instaurar o sentido de jogo no ambiente cotidiano, ressignificando, nesse caso, inclusive, nossos meios de comunicação e de relações neotecnológicas, dando a oportunidade para que repensemos nossos espaços de vida. Diante das dinâmicas de desencanto social que atravessamos, fruto do nosso tempo, infelizmente, não só do período pandêmico, reacendemos o desejo utópico do encontro, fazendo-nos acreditar na possibilidade de redesenhar caminhos para as experiências coletivas, a arte como lugar para experimentarmos o sentimento de comunidade. As micropoéticas relacionais, vividas por meio do tecnovívio, nos ajudaram a atravessar o momento da pandemia, nos interessa agora entender como essas possibilidades de criação podem auxiliar nesse momento de retomada convivial, diante das atrocidades de um governo que enxerga a diferença como algo a ser combatido e aniquilado, a arte nos faz lembrar da importância do encontro, ação de ir “ter com”.
Referências
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009.
CAON, Paulina Maria. O disfarce do ovo – reação como procedimento de criação para a cena contemporânea. São Paulo: Revista Sala Preta, vol. 12, n. 2, dez 2012, p. 78-85
CORNAGO, Óscar. “Uno va al teatro a ser manipulado;. Una conversación con Roger Bernat. Telondefondo. Revista De Teoría Y Crítica Teatral, (24), 214-226, 2016. https://doi.org/10.34096/tdf.n24.3154. Acesso em 27 de agosto de 2021.
DE PAULA, José Eduardo. Jogo e Memória : Essências – Cena Contemporânea e o Jogo do Círculo Neutro como anteparos para os processos de preparação e criação do ator. (Tese de Doutorado). São Paulo: USP/ Escola de Comunicações e Artes, 2015.
DUBATTI, Jorge. O teatro dos mortos: introdução a uma filosofia do teatro. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2016.
ENRILE, Juan Pedro. Teatro relacional: una estética participativa de dimensión política. Caracas: Editorial Fundamentos, 2016
EUGÉNIO, Fernanda; FIADEIRO, João. O encontro é uma ferida. Excerto da conferência-performance Secalharidade de Fernanda Eugenio e João Fiadeiro. Lisboa: Culturgest, jun. 2012. Não paginado. Disponível AQUI. Acesso em 05 de setembro de 2021.
FERREIRA, Melissa. Isto não é um ator. São Paulo: Perspectiva, 2016.
MUNIZ, M. L.; FALCI, C. H. A eficácia da presença na cena contemporânea mediada pela tecnologia: o caso Play Me. Visualidades, Revista do Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, v. 16, n. 2, 2018. Disponível AQUI. Acesso em: 11 dez. 2021.
PAIS, Ana. Comoção: os rítmos afectivos do acontecimento teatral. Tese. (Doutorado em Estudos Artísticos). Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2014.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2017.
ROMAGNOLLI, L. E.; MUNIZ, M. Teatro como acontecimento convival: uma entrevista com Jorge Dubatti. Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v.2, n.23, p 251-261, 2014. Acesso em: 15 fev. 2022.
SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das letras, 1998.
Notas de Rodapé
[1] O texto que compõe a introdução deste trabalho começou a ser escrito em 01 de julho de 2021, em meio a pandemia do Coronavírus, um momento onde ainda vivíamos sob fortes restrições sociais, principal medida de enfrentamento ao vírus até a descoberta da vacina
[2] Número estimado de mortos em julho de 2021. Atualmente, agosto de 2022, estima-se que 684 mil pessoas foram mortas pelo vírus desde o início da pandemia.
[3] Iniciado em maio de 2019, o Laboratório de Criação Relacional é um espaço de pesquisa e criação interessado em investigar os possíveis de diálogos entre a Estética Relacional e o trabalho de atuação. Fazem parte do seu repertório os trabalhos: “O homem que era só metade” (2019), “Se eu não vejo” (2020/2021) e “Mapa das ilhas desconhecidas” (2020/2021).
[4] Bate-papo sobre a peça-jogo “(Des)memória”. Disponível AQUI. Acessado em 28 de agosto de 2022.
[5] Entrevista com Guilhermo Cacace sobre a experiência cênica digital “Amor de Cuarentena”. Disponivel AQUI. Acessado em28 de agosto de 2022.
[6] Vídeo de desmontagem da experiência cênica digital “Clowns de Shakesearee”. Disponível AQUI Acessado em 28 de agosto de 2022.
[7]Documentário sobre o processo de criação do “Mapa das ilhas desconhecidas”. Disponível AQUI. Acessado em 28 de agosto de 2022.
[8] Analice Croccia é atriz, diretora, professora, produtora e pesquisadora de teatro. Formada pela Licenciatura em Teatro na UFPE em 2017, começou a atuar profissionalmente em 2009, quando participou da montagem de “Histórias das Conchas do Mar” dirigida por Rodrigo Cunha, adaptação do texto homônimo de Luciano Pontes, para o Projeto Poetas da Terra (SESC).
[9] João Neto é ator, diretor e professor de Artes/Teatro, formado em licenciatura em Teatro pela UFPE (2016).
[10] Marcela é acrobata de aéreos circenses desde 2016 e atriz em formação. Concluiu o módulo de teatro iniciante (2019) e o curso de História do Teatro Brasileiro: Perspectivas Decoloniais (2020) pelo Sesc Santo Amaro/PE.
[11] Sara é atriz, produtora e professora de teatro, formada em licenciatura em Teatro pela Universidade Federal de Pernambuco (2021).