#21 Ruínas ou Reinvenção? | O Corpo-Casa da Loucura: entre memórias, pesquisa e ficção

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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Débora dos Santos Almeida Souza
Artista da cena, Comunicadora e Tecnóloga em Artes do Espetáculo pelo Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CECULT/UFRB)
Escrevo como quem tenta desvendar os caminhos que me levaram à criação de um Corpo-Casa da Loucura, com a consciência de que o tempo cronológico não acompanha o ritmo dos processos de criação atravessados por fluxos contínuos, lampejos de ideias em trânsito e rastros de memória. O trabalho leva esse nome por conta do desejo de despertar olhares poéticos sobre saúde mental e reflexões sobre os estigmas em torno da loucura, que persistem até os dias atuais. Ao longo de dois anos, esse desejo me moveu a investigar imagens possíveis para dar corpo a um trabalho que trilhasse entre as artes cênicas e o território expográfico.
Mesmo com dificuldade de traçar um fio linear, tomo como ponto de partida da pesquisa março de 2023. Eu era estudante de Artes do Espetáculo no Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CECULT/UFRB), localizado na cidade de Santo Amaro da Purificação (BA). Nessa época, tive o primeiro contato com o livro Holocausto Brasileiro (2013), escrito pela jornalista Daniela Arbex. A obra apresenta um levantamento histórico com fotografias, relatos, depoimentos e trechos de matéria de jornal sobre uma série de violações de direitos humanos ocorridos no Hospital Psiquiátrico de Barbacena (MG). Conhecida como Hospital Colônia, entre os anos 1930 e 1980 a instituição foi o destino de milhares de pessoas que perderam o direito de ir e vir, a dignidade e, na maioria dos casos, a vida. Além de indivíduos que sofriam com adoecimento psíquico, a população em situação de rua, Pessoas com Deficiência (PCD’s), homossexuais, militantes políticos e mulheres e quem mais desafiasse as normas vigentes eram internados contra a própria vontade na instituição.
Crianças e adultos misturados, mulheres nuas à mercê da violência sexual. Nos alojamentos, há trapos humanos deitados em camas de trapos. Moscas pousavam em cima dos mortos-vivos. O mau cheiro provocava náuseas. Em outro pavilhão, a surpresa: capim no lugar de camas. Feno, aliás, usado para encher colchões, abrigar baratas, atrair roedores. Viu muitos doentes esquecidos nos leitos, deixados ali para morrer. A miséria humana escancarada diante de sua máquina. Jamais havia flagrado nada parecido. (ARBEX, 2013, p. 152)
Os pacientes internados no Hospital Colônia foram relegados ao esquecimento por suas famílias e apagados pela história. O processo doloroso de conhecer esse capítulo resgatado pelo trabalho de Daniela Arbex me moveu para uma pesquisa artística entre a loucura, as lacunas e as bagagens possíveis deixadas pelo caminho. A partir de então, iniciei leituras sobre a luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica no Brasil. Pude adquirir maior entendimento sobre os reflexos de uma política manicomial nos dias de hoje. Esses reflexos estão presentes nos casos de violação de direitos em comunidades terapêuticas, no sucateamento de políticas públicas voltadas para a saúde mental e nos preconceitos que alimentam a exclusão de determinados sujeitos da vida cotidiana.
A psiquiatra alagoana Nise da Silveira também foi uma referência ímpar no processo de concepção da pesquisa. Principalmente a sua atuação com artistas internados no Centro Psiquiátrico Nacional, localizado no Rio de Janeiro (RJ). O trabalho de Nise iniciado nos anos 1940 gerou o Museu de Imagens do Inconsciente (RJ), cujo acervo reúne mais de 400 mil obras disponíveis hoje para a visitação do público. Me senti cada vez mais instigada a pensar em um projeto imersivo para a loucura, de modo que outras pessoas também se sentissem convidadas a mergulhar no trabalho e colaborar ativamente em sua criação. Desde o início da concepção da proposta cênico-expográfica, a performatividade e o método do registro processual cartográfico foram de extrema importância.
A cartografia enquanto método de investigação cênica possibilita o mapeamento de rotas, emoções, imagens e grafias que emergem de um estado de presença aberto ao sensível. Ela pode ser considerada “um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação de paisagem” (ROLNIK, 2011, p. 23). Suely Rolnik propõe a experimentação de uma corporeidade em um ritmo distinto do cotidiano. Ou seja, desabituar o corpo dos movimentos rotineiros, colocando-o em estados de desequilíbrio para gestar outras relações com o espaço-tempo e todo o universo contido nele. Assim, nos tornamos mais conscientes das afetações presentes tanto no território corpóreo quanto no ambiente que o envolve. Esses processos de criação traçam as linhas de força que atravessam a montagem do trabalho, que foi concebido entre Feira de Santana (BA), minha cidade natal, e Santo Amaro (BA), onde eu residi durante dois anos.
Em Work in Progress na Cena Contemporânea (1997), Renato Cohen tratou sobre os processos de criação nas artes cênicas atravessados por fluxos diversos e sobreposição de linguagens. Nessa perspectiva, a multiplicidade de referências aparentemente desconexas podem despertar sentidos em um processo de criação. Em diversos momentos meu olhar se voltou para os cadernos de artistas e diários de bordo, com escritos e esboços que foram incorporados ao resultado cênico-expográfico da pesquisa, apresentado em dezembro de 2024.
Ter um corpo, ser um corpo. A consciência de que tudo perpassa pelo corpo. É ele que me traz questões tão urgentes no aqui e agora. Faz suas grafias no tempo e no espaço. Desenha e reconfigura suas próprias lacunas. O corpo não vacila. Ora desequilibra, ora encontra seus pontos eixos de equilíbrio, mas tudo nele é visceral e pulsante. É a partir dele, por ele e para ele, que eu ensaio um retorno para casa. Casa essa que não significa uma habitação, ou uma referência de memória. É uma busca incessante, ao mesmo tempo que é marcada por pausas bruscas. […] (NOTAS DE CAMPO 2 – TALVEZ O TEMPO TAMBÉM TENHA UM CORPO, SETEMBRO, 2024).
As relações entre loucura, corpo, bagagens e narrativas pulsam e fazem sentido em um percurso criativo marcado pela performatividade, onde o registro das etapas de construção foi marcado pelos diálogos e trânsitos. Em Vigiar e Punir (1987), Michel Foucault compreende o corpo em sua dimensão política. Durante a leitura, pude entender que o direito à autonomia dos corpos foi tolhido de diversas formas a partir de mecanismos sofisticados. Me aproximei dos conceitos de economia do corpo e microfísica do poder, que compreendem um jogo complexo que envolve os sujeitos em uma série de normas, regras e valores morais visando um ideal de normalidade. Para Foucault, o corpo é o destino dos mecanismos de controle. Mecanismos esses que não estão presentes apenas nas instituições médicas ou carcerárias, mas também de forma diluída nas esferas educacionais, religiosas, familiares e nos espaços de poder. São reforçados por símbolos, imagens e discursos que estão presentes no cotidiano dos indivíduos a ponto de serem incorporados inconscientemente pelos mesmos. As pulsões, as paixões e os ímpetos também estão sob vigilância, uma vez que são impulsos que direcionam os sujeitos para suas ações.
Para compreender melhor como o conceito de loucura evoluiu ao longo dos anos, parti para a leitura de outra obra de Michel Foucault. Em História da Loucura na Idade Clássica (1972) é apresentado o processo de criação das primeiras casas de internação na Europa Ocidental e os sujeitos que se tornaram o público-alvo dessa política institucional. Os Hospitais Gerais espalhados em países da Europa Ocidental no Século XV eram destinados à população em situação de rua ou de extrema pobreza, além de visar a correção de comportamentos que fossem de encontro à moralidade da época. Na Idade Média, a loucura era atrelada aos pecados e vícios. No Período Clássico, enlouquecer estava relacionado a um estado sombrio da alma humana que a colocava em desordem. Hoje ela pode ser compreendida como um produto social, resultante de um processo que envolve uma série de normas, regimentos e conceitos morais que visam adequar os sujeitos a um ideal de normalidade.
A perspectiva da “fabricação da loucura” proposta por Thomas Szasz que também de dentro do campo caracteriza a doença mental como mito e ideologia, tratando também de uma produção social da loucura, posta agora como objeto de perseguição e exercício de violência social, correlato moderno do que foi a feitiçaria para o mundo medieval. (FILHO, LEMOS, 2012, p. 53 apud SZASZ, T, 1984)
A leitura dos dois trabalhos de Foucault fez com que eu anotasse algumas questões voltadas para o corpo. Como eu poderia multiplicar um corpo em cena para dar conta das forças atuantes nele? Como jogar cenicamente com as ferramentas de dominação, uma vez que corpos podem oprimir e serem oprimidos em dinâmicas pré-concebidas e marcadas por fronteiras múltiplas? O que significa um corpo multiplicado e repartido em vários pedaços? E onde a loucura pode ser multiplicada a partir de um ideal de normatividade, para além daquilo que foi convencionado a se chamar de loucura ao longo da história? A ânsia de estabelecer pontes que trouxessem essas questões em forma de cena me mobilizou a mergulhar em um processo criativo que une a pesquisa, a memória e os processos de autoficção a partir do corpo.
Hoje a orientação foi com a professora Camila Vendramini. O plano inicial era realizar um ensaio com ela na sala multiuso, que será o espaço onde ocorrerá a apresentação. Conseguimos a sala 3. Não era o espaço ideal, mas trabalhamos dentro das possibilidades. Afastamos as cadeiras que estavam no meio da sala e iniciamos o processo no chão da sala. Camila fez comigo uma série de aquecimentos que começava pelos pés e terminava na cabeça, ao mesmo tempo que eu ia explicando de onde veio a ideia para o Corpo-Casa da Loucura. Em seguida ficamos em pé, com os pés paralelos aos joelhos, alternando os pontos de apoio enquanto contávamos três tempos. Ampliamos esse movimento para toda a sala no mesmo ritmo, até o momento em que nossos corpos se movimentam de forma mais livre pelo espaço. Foi meu primeiro contato com esse exercício, que se chama Dança dos Ventos. Depois, algo inesperado aconteceu. Camila sugeriu que eu exprimisse alguns ruídos durante minha movimentação pela sala. Foi uma sensação incrível percorrer o espaço ao passo que eu me sentia tomada pelos sons que saíram do meu corpo. Nenhum som saiu de forma gratuita, assim como não houve um gesto que não fizesse sentido naquele estado de presença que reinava ali. Quando Camila propôs que eu trouxesse palavras relacionadas ao meu trabalho, elas não saíram de imediato. Era como se elas precisassem sentir a temperatura do ambiente antes de entrarem em cena. Quando elas finalmente entraram, assumiram sonoridades, ritmos e intencionalidades próprias. O trabalho com Camila e toda a sua bagagem em artes cênicas foi muito enriquecedor para meu processo de criação, pois me ajudou a apontar caminhos possíveis para um trabalho que pode ser testado a partir de impulsos simples do corpo. Corpo esse que carrega memórias. (NOTAS DE CAMPO 3 – ORIENTAÇÃO COM CAMILA VENDRAMINI, OUTUBRO, 2024).
Nesse dia, as únicas palavras que vieram à tona foram “limite” e “corpo”. Pude então experimentar as fronteiras possíveis entre palavras com sentidos tão entrelaçados no contexto da pesquisa, materializadas pelos fluxos e pausas atuantes em um espaço-tempo específicos. O corpo possui memórias e seus próprios ritos de criação. Por isso, senti a necessidade de estar aberta às possibilidades e de me colocar de forma presente no processo criativo. Os movimentos que podem surgir durante a escuta sensível da memória corporal, bem como suas lacunas e espaços vazios, me interessam. Como dizia Waly Salomão, “a memória é uma ilha de edição”. Seu terreno parece ser frágil e movediço, pois sua construção sempre ganha novos detalhes e sentidos. Benevides (2020, apud MERLEAU-PONTY) explica que a memória pré-reflexiva consiste em conhecimentos e saberes que estão inscritos no corpo.
Por meio da corporeidade, experimentamos um leque de ritmos, sensações e saberes que o cérebro sozinho não dá conta de assimilar. A corporeidade pode estar localizada como “algo no entremeio do psíquico e do fisiológico” (BENEVIDES, 2020, p.222, apud MERLEAU-PONTY, 1999). O movimento é capaz de resgatar lembranças, imagens e sonoridades com força total, bastando por vezes apenas uma brecha para trazê-las à tona. Esses trânsitos de memória revelam mutações, permanências e muitos espaços vazios deixados por bagagens que ficaram pelo caminho. Essas lacunas me interessam. Todas essas questões atravessam e formam as margens do Corpo-Casa da Loucura. Além do trabalho feito com Camila Vendramini, os processos criativos em artes do corpo e dança contemporânea realizados com Kadu Fragoso, Maciej Rozalski e Carol Diniz foram essenciais para que a pesquisa cênica tomasse forma através da transformação de pulsões internas em movimento.
A ideia inicial para a montagem cênica consistia em trabalhar com réplicas de malas de viagens antigas, como uma forma de simbolizar as bagagens de sujeitos que foram apagados historicamente. Porém, algo aconteceu no caminho. Um dia, eu estava chegando de viagem. Foi quando me deparei com quatro gavetas brancas próximas ao trajeto da minha casa. Resolvi guardá-las para experimentações futuras, sem fazer ideia do quão caras elas se tornaram para a minha pesquisa. As malas foram feitas para o trânsito, enquanto as gavetas são objetos criados para o domicílio das importâncias. Com tamanhos e tempos de uso variados, elas foram se multiplicando na construção do trabalho e substituindo a figura das bagagens pouco a pouco. Como falar de Corpo-Casa sem acessar compartimentos de intimidade? A obsessão por gavetas começou em Feira de Santana, mas foi potencializada pelos encontros realizados entre as calçadas e as ruas de Santo Amaro da Purificação (BA). Me veio uma analogia entre esses materiais abandonados à margem das ruas e os sujeitos que sofreram com o apagamento histórico nos manicômios brasileiros, sendo o Hospital Psiquiátrico de Barbacena (MG) considerado o mais conhecido entre eles. Afinal, os indivíduos isolados da vida cotidiana estavam à margem de um ideal de normalidade. Assim, o trânsito entre o corpo, as gavetas e as imagens possíveis passaram a pulsar e fazer cada vez mais sentido. Especialmente as quinquilharias e lacunas que podem ocupar seus interiores.
Em Poética do Espaço (1979), Gaston Bachelard dedica um capítulo para as gavetas, cofres e armários. Ao invés de considerá-los enquanto acumuladores de materialidade e subjetividade humana, o autor desloca o protagonismo para os objetos. Destaco aqui as gavetas domésticas, pois se tornaram meus materiais de estudo. Para Bachelard (1979), elas possuem sensibilidade e inteligência muito particulares, justamente pela forma que seus espaços internos estão configurados. Há um universo contido nelas, além de um trânsito que não pode ser ignorado. Sejam elas praticamente vazias ou abarrotadas de materiais quase esquecidos, há um tráfego intenso de objetos pessoais ao longo do tempo. Semelhante às gavetas, o corpo humano guarda um fluxo de memória inteiras e lembranças que se assemelham às fotografias. Ora se perdem, ora acham seu caminho de volta.
Diante da presença de espírito dos objetos, uma alma humana é capaz de desvendar os múltiplos sentidos que eles podem assumir, desde que o artista se coloque de corpo inteiro no processo criativo. Me questionei sobre a quantidade de gavetas que carregamos ao longo da vida e a gama de coisas que elas guardam. Por isso, além das gavetas de madeira, resolvi confeccionar gavetas de papel. A ideia era replicar esses objetos de uma forma tão leve que eles pudessem ficar suspensos, como se flutuassem no ar. Localizei pequenas caixas de papelão que foram jogadas no lixo, transformei-as em gavetas e pude gravar nelas as palavras presentes na pesquisa. Novamente eu encontrei a materialização do Corpo-Casa da Loucura a partir do descarte.
Eu também desejava convocar outras pessoas ao registro de suas próprias grafias. Para isso, pendurei a maioria das gavetas em uma altura que o público pudesse alcançar. Cada uma delas tinha uma caneta piloto preparada para a escrita. Todas as gavetas foram exibidas de forma aberta durante a montagem, buscando partilhar incômodos com o grau de intimidade de quem apresenta os cômodos da própria casa para um visitante. Além do registro escrito, eu ansiava a participação cênica em comunhão com o espectador que, via de regra, está habituado à presença de cena enquanto plateia. Como a presença do meu corpo em conjunto com a arquitetura do espaço, da iluminação e outras linguagens pode criar um ambiente propício para a intervenção do público? A performatividade entrou em cena.
Era necessário utilizar mecanismos para convocar outros sujeitos a atuar. Tanto a montagem da iluminação quanto a disposição das gavetas no espaço foram configuradas visando a construção de um ambiente imersivo que, ao mesmo tempo, não intimidasse as pessoas presentes. Para diluir as fronteiras entre ator e plateia, a quarta parede presente na linguagem teatral sofreu uma rachadura. Além de espalhar as cadeiras em pontos específicos da sala de apresentações disponível no campus da UFRB de Santo Amaro, conhecida como Sala Multiuso, a encenação foi realizada de modo a ocupar todo o espaço. Quando me dirijo ao espectador com uma pergunta sobre os sentidos possíveis que ele atribui aos próprios anseios e inquietações, o inesperado acontece. O ato de não saber o que esperar já deu lugar a respostas inimagináveis, como o poder dos afetos, o desejo de se expressar enquanto artista e até mesmo um silêncio partilhado. É um exercício desafiador e muito rico em possibilidades dramatúrgicas, pois coloca o meu corpo em diálogo aberto com a potência de outras vozes e olhares.
Quanto às gavetas de papel, ainda que cada uma delas carregasse uma caneta piloto, elas receberam alguns escritos do público presente. Mesmo que eu afirmasse que havia licença para tal. Quando se trata de uma instalação artística, é um hábito as pessoas se comportarem com certa cerimônia. Como um visitante que, ao entrar pela primeira vez em uma casa, retira os sapatos antes de entrar. Busco, então, contribuir para que tais limites sejam quebrados para que outras linhas possam surgir no espaço. Além da espacialidade interferir diretamente na fruição de um trabalho artístico, a relação temporal delimita o ritmo em que as pessoas podem imergir nele. O tempo da expografia e o tempo cênico possuem velocidades distintas. Por isso, a lapidação da relação espaço-tempo em um trabalho híbrido como O Corpo-Casa da Loucura se torna vital para o seu crescimento.
As questões que nasceram durante a pesquisa não encontraram respostas que as encerram em si mesmas. Muito pelo contrário, elas mobilizaram lacunas e novas perguntas. Especialmente no que diz respeito às subjetividades humanas e as relações que elas estabelecem a partir de corpos distintos, suas bagagens e seus respectivos limites. Na concretude histórica dos fatos, há a história da luta antimanicomial no Brasil e a necessidade de questionar o ideal de normalidade presente até os dias de hoje. Como trazer questões tão densas à cena e convidar o público a assumir sua autonomia enquanto criador? É para o corpo que eu retorno, por compreender a sua potência artística e ao mesmo tempo questionadora da sua própria época. Aqui e agora, o desejo é de acender fagulhas em coro com outros olhares sobre os estigmas relacionados à questão da loucura, compreendida atualmente enquanto adoecimento psíquico. A ideia é manter as gavetas abertas para fomentar o debate sobre preconceitos enraizados na sociedade a partir do sensível, compreendendo a saúde mental em uma perspectiva multifatorial, atravessada pelas relações socioeconômicas, de raça e gênero.
Um trabalho no campo das artes nunca é realizado sozinho. Especialmente em territórios marcados pela precariedade. Desde o início do processo criativo, pude ter a contribuição de artistas muito relevantes para o desenvolvimento do Corpo-Casa da Loucura. Colegas de curso e docentes me trouxeram apontamentos e questões valiosas durante a pesquisa. A orientação sensível de Ricardo Cardoso e Camila Vendramini, assim como a idealização do figurino de Ari Santana, a operação da luz feita por Danilo Pena, a doação de gaveteiros de Marcello Girotti e o registro audiovisual de Caio Karuan foram importantes para a montagem do Corpo-Casa da Loucura. Uma montagem de espetáculo sempre retorna com outros olhares e perspectivas, pois uma obra de arte feita para a presença nunca se repete. Sigo em busca de imagens possíveis para a loucura, além de pesquisar meios de convocar o espectador a quebrar a quarta parede invisível que nos divide, ainda que estejamos a poucos centímetros de distância.
Referências
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013;
BACHELARD, Gaston. As gavetas, os cofres e os armários. In: BACHELARD, Gaston – Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultura, 1979;
BENEVIDES, Rodrigo. Fenomenologia da memória corporal. Synesis, v. 11, n. 2, fev. 2020. ISSN 1984-6754;
COHEN, Renato. Work in Progress na cena contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997;
FILHO, Kleber Prado e LEMOS, Flavia Cristina Silveira. Uma breve cartografia da luta antimanicomial no Brasil. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 2, n. 1, jan-jun 2012;
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972;
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 1987;
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, Sulina, Editora da UFRGS, 2011.



















