A nudez é toda preenchimento
Olga Lamas
Artista, Produtora e Pesquisadora (UFBA)
A primeira vez que fiquei nua em cena, num espetáculo ao vivo, foi em Loucas do Riacho (2017). Já havia participado de uma ação coletiva de mulheres que foi registrada em fotografia durante a Drift Residency (2011) e também havia feito trabalhos que tinham uma seminudez – seios à mostra, como o espetáculo Guilda (2006).
Mas a experiência deste ano com as Loucas, inaugurou essa presença completamente nua e muito pele a pele com o público. Quer dizer, completamente não, porque havia uma “cabeça de sargaços” em nós, com a qual eu ficava a maior parte do espetáculo – creio que usava também como uma estratégia de camuflagem, dissipação no espaço, defesa, abertura dos outros sentidos para além da preponderância da visão. Geralmente eu tirava a cabeça já no final da performance, quando eram poucas as pessoas do público que restavam.
Em Loucas, nós decidimos que haveria a nudez coletiva (éramos 7 em cena) uns 3 dias antes da estreia. Cada uma de nós tínhamos um figurino feito de acordo com cada “persona” que havia sido evocada durante o processo criativo. Eu “sonhava” com um figurino bem leve, quase uma 2ª pele, uma camisola, algo assim. Mas quando ficou pronto, ele pesava muito e eu me sentia absolutamente podada em meus movimentos e sensações, quase como se enterrada na própria roupa, uma espécie de sufocamento me acometia quando eu usava aquele figurino – lindo ele, esteticamente, mas no corpo ele me torturava.
De todo modo, durante o espetáculo, nossos figurinos estavam ali, à disposição para uso – algumas de nós costumavam usar durante a performance, eu nunca coloquei o meu. A nudez era meu figurino, única forma possível de estar ali presente me relacionando com as atrizes e x públicx. A nudez é toda preenchimento, ao meu ver. A nudez é um desmascaramento que abre tantas e tantas leituras, possibilidades. A nudez revela outros relevos, outras intensidades que a roupa oculta/esconde. O fato de estar nua em Loucas tocou nesses espaços da coragem e da força, para além da cena. A experiência artística transformou a minha própria experiência cotidiana.
Em nenhum momento, eu sentia que a nudez me era constrangedora, o contrário mesmo era a sensação pungente na cena. A nudez me permitiu experienciar atravessamentos possíveis somente nessa “condição”. Um corpo à céu aberto, mesmo dentro de uma casa. Lembro de Beatriz Azevedo em “Antropofagia: Palimpsesto Selvagem” dizendo da “liberdade do índio nu que pensava a céu aberto”. Loucas do riacho é um espetáculo feito por mulheres, permeado pelas questões.
Pensando hoje sobre a nudez, creio que a roupa – para mim – agia como um item de opressão em meio àquele espaço cênico em que eu buscava agir artisticamente com força, coragem, na minha máxima potência. Para mim, era essencial criar uma dissolução entre meu corpo, os outros corpos, o espaço, o tempo… diluir essas barreiras um pouco que fosse. A roupa, nesse sentido de opressão, era um símbolo de catequização, colonização, capitalismo e patriarcado… E nossa busca em cena, a minha busca em cena, era atravessar, furar, transformar, transmutar isso tudo.