#10 Palavra, Imagem e Movimento | Corpos e Fagulhas em Imagens Musicais
Imagem – Eliene Lago | Arte – Rodrigo Sarmento
‘Ao desenvolver essa antropofagia com a cultura pop como um ponto de partida para subvertê-la, nos interessa dar corpo aos nossos desejos poéticos para pensar outros tipos de cena e indicar possibilidades de uma existência aberta à improvisação’. Como as imagens afetam não somente nossos corpos, mas também de outras pessoas ou de uma população inteira? Continuando nosso dossiê Palavra, Imagem e Movimento, nosso editor-chefe, Márcio Andrade, entrevistou os artistas Jorge Alencar e Neto Machado, cujas obras mesclam teatro, dança com a cultura pop e linguagens como música, videoclipe e redes sociais.
Os bailarinos e atores Jorge Alencar e Neto Machado compõem a Dimenti Produções Culturais, ambiente de criação artística e de produção cultural que articula campos como dança, teatro, cinema, audiovisual, curadoria e comunicação. Composta, ainda, pelos artistas-curadores-produtores Ellen Mello, Fábio Osório Monteiro e Leonardo França, a Dimenti é responsável por espetáculos que propunham um diálogo de dramaturgias consideradas ‘clássicas’ – seja a literatura de Machado de Assis, o teatro de Nelson Rodrigues e Shakespeare ou contos de fadas – com a cultura pop e linguagens como música, videoclipe, blogs, redes sociais.
Além dos espetáculos, também produziram curtas (como Miúda e o Guarda-chuva), videodanças (como Sensações Contrárias), longas-metragens (como Pinta), exposições (como Phina) e livros (como Astroneto), que, à sua maneira, exploram também relações com outras artes.
Neto e Jorge, antes de tudo, gostaria que vocês falassem de como nasceram os seus encontros com as artes cênicas e o interesse pela mescla de linguagens.
Jorge Alencar – Aos 12 anos de idade, realizei minhas primeiras apresentações públicas na cantina de escola onde estudava (a extinta Teresa de Lisieux, em salvador – BA), nas quais fazia números musicais, coreografias e imitações de diversas naturezas. Na adolescência, fiz parte de um grupo experimental de artes cênicas na mesma escola, coordenado pelo diretor e coreógrafo mineiro Osvaldo Rosa, no qual tinha uma rotina de trabalho quase profissional que incluía temporadas em teatros da cidade e participação em premiações.
Nesse grupo, trabalhei ainda com o multiartista alemão Harald Weiss e seu ‘teatro de imagens musicais’. Assim, desde o começo, me formei por meio de um intenso trânsito pelos diferentes campos das artes. O Dimenti teve sua primeira semente justamente nessa escola, quando fizemos uma versão piloto de nossa primeira peça, “O Alienista”, a partir do conto homônimo de Machado de Assis. Em 1998, começaria a nossa vida profissional em um circuito de apresentações em escolas da rede pública e particular de Salvador (BA).
Neto Machado – Sou nascido em Curitiba, formado em Teatro pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP) e me mudei para Salvador há nove anos por conta do meu relacionamento com Jorge. Tem uma amiga que me diz ‘Gosto das pessoas que se mudaram por amor porque tem uma ideia de viver a vida com intensidade’ e, de algum modo, acho que isso está implicado em nosso trabalho também.
Na minha adolescência inteira, fiz dança de rua e teatro paralelamente, mas, na graduação, decidi pelo teatro. Depois da faculdade, fiz uma formação em dança contemporânea na França, em uma cidade chamada Montagner. Voltando para o Brasil, iniciei um mestrado em artes cênicas na UFPA, pesquisando sobre obras, cenas e peças que que estão baseadas ou interessadas em falar sobre obras que aconteceram antes delas.
No geral, minha formação é muito híbrida porque me interessa essa ideia de um corpo atravessado por todas essas questões políticas, estéticas e poéticas que apresento nas minhas obras – geralmente, classificadas como teatro, mas consideradas por mim como dança.
Na carreira da Dimenti, vocês aliam projetos de espetáculos e performances à produção de curtas e outros trabalhos ligados ao audiovisual. Queria que vocês falassem um pouco do que interessa vocês pessoal e esteticamente nesses projetos.
JA – Na primeira década de criação do Dimenti, quando éramos um grupo nuclear, nos interessava pensar relações contemporâneas com obras clássicas da literatura, da dramaturgia e da dança para, ao mesmo tempo, beber em suas fontes e questionar suas dimensões canônicas.
Entre 1998 e 2008, desenvolvi junto ao Dimenti os seguintes trabalhos cênicos: O Alienista (1998) a partir do conto homônimo de Machado de Assis; Chá de Cogumelo (1999) sobre os contos de fada tradicionais; A Novela do Murro, cruzamento da obra Dom Casmurro de Machado de Assis com a telenovela brasileira (2001); Tombé (2002), peça interessada em discursos produzidos sobre/pelas artes; Pool Ball (2002) baseado em Hamlet de W. Shakespeare; Chuá (2004), infanto-juvenil feito a partir de O lago dos Cisnes; O Poste, A Mulher o Bambu (2007) e Batata! (2008) atravessados pelo universo de Nelson Rodrigues.
Nesta última década (2008 a 2018), o Dimenti deixou de ser um grupo para organizar-se como um ambiente de criação e produtora cultural e as questões que movem nossas criações não têm passado necessariamente por obras clássicas. Cada trabalho se engaja em algum assunto/matéria/problema específico e é também configurado em uma plataforma específica, a exemplo de Pinta, longa-metragem que passa em revista os materiais artísticos e universos estéticos gerados nos 15 primeiros anos do Dimenti.
Desde 2012, trabalho ao lado do artista Neto Machado, companheiro de vida e arte, com quem venho criando trabalhos como: Desastro (peça de dança), souvenir (peça de quintal), um corpo que causa (performance-cabaret), Honestidade Artística (oficina), Astroneto – dança no espaço (livro infantil) e Biblioteca de Dança (instalação coreográfica). Atualmente, a equipe gestora do Dimenti é formada por mim, Neto Machado, Ellen Mello, Fábio Osório Monteiro e Leonardo França junto a uma equipe com outras duas produtoras, uma jornalista e uma contadora.
NM – Entrei na Dimenti há quase 10 anos, mas eu não peguei essa primeira fase, onde essas obras, especificamente baseadas em clássicos, como O Alienista ou Shakespeare e etc. Mas algo interessante é que, mesmo que eu não estivesse nessa fase de criação, essa ideia de antropofagia da cultura pop me pega de pronto.
Sou muito interessado por pensar obras contemporâneas que desenvolvem essa antropofagia com a cultura pop como um ponto de partida para subvertê-la e provocar um passeio pelo que também existe de superficial na arte contemporânea, borrando um pouco o tabu de separação entre as obras que pertencem aos museus e ao que chamamos de cultura pop.
Além dos espetáculos, vocês produzem curtas, videodanças, longas-metragens, exposições e livros, que também exploram relações com outras artes. Como as relações de vocês com teatro e dança influenciam nesses outros trabalhos?
JA – Os nossos trabalhos têm sido motivados tanto pela vontade de mergulhar em algum campo artístico, penetrando em suas lógicas – como tem sido com o audiovisual -, como pelo desejo de ativar artisticamente um espaço, como no caso das bibliotecas e dos quintais de casas. Em Pinta, propusemos um pensamento coreográfico para compor um discurso fílmico, na Biblioteca de Dança, estudamos os códigos daquele espaço para fazer deles parâmetros performativos.
NM – Acabamos de produzir o Astroneto, um livro que funciona como exemplo do nosso interesse por pensar um mundo como cena ou performance, como possibilidade de performar mundos que gostaríamos que tomassem corpo – assim como os curtas, as videodanças, as exposições etc.
Nossas tentativas de dar corpo aos nossos desejos poéticos/estéticos/políticos atravessam essas plataformas, que viram um lugar para pensar outros tipos de cena. Em Astroneto, nós desejamos coreografar a criança e o adulto que, ao ler o livro, vai abrir, desdobrar, folhear o papel e se relacionar com essas ilustrações. Ao pensar o livro como uma partitura coreográfica, indicamos possibilidades de uma existência aberta à improvisação da criança.
Além desses projetos de criação, vocês trabalham com essa mescla de linguagens outros projetos ligados à formação e aos encontros com o público e outros artistas, como Biblioteca de Dança e IC – Encontros de Artes. Como os encontros com esses outros artistas vem influenciando nas criações de vocês?
JA – Além das criações das obras, temos dinamizado contextos de troca entre artistas como o IC – Encontro de Artes, realizado em Salvador (BA) desde 2006 enquanto uma plataforma das artes contemporâneas que estimula o contato de artistas nacionais e internacionais, fortalecendo redes de intercâmbio e aprendizado. O Encontro tem abrigado amplos fazeres dos diversos campos da arte – dança, cinema, artes visuais, teatro, escrita -, experimentando novos parâmetros de curadoria e programação.
IC é sigla para “interação e conectividade”, dois princípios que têm favorecido a criação artística, a reflexão teórico-crítica, a difusão de obras e as trocas artístico-pedagógicas. O Encontro realiza: mostras artísticas, co-produção de obras inéditas, publicação de escritas críticas e performativas, debates, residências artísticas, ações de engajamento de públicos para a arte contemporânea, shows/performances musicais, produção de conteúdo para TV e Web, entre outras ações.
NM – Cada tipo de corpo e cada tipo de pessoa tem suas especificidades. O que desejamos, além de criar trabalhos em que consigamos trabalhar entre a gente e com nossas lógicas de existência de mundo, é colaborar com outras lógicas, em que todo mundo aprenda com isso. Quando convidamos outras pessoas para esses trabalhos, estamos lidando com outros modos de vida, existência e criação e fazendo surgir outras lógicas de colaboração e convivência.
Na Biblioteca de Dança, criamos uma ‘biblioteca de pessoas’, em que cada livro/pessoa tem capítulos diferentes disponíveis e cada capítulo conta a história de uma peça que essa pessoa viu na vida e que marcou a sua vida por algum motivo especial. Interessa a nós criar uma biblioteca que seja viva, múltipla e com diversos pontos de vistas.
Esse desejo de ver o mundo a partir de outras perspectivas alimenta também o projeto do festival, por acharmos que Salvador, a cidade na qual residimos, precisa de espaço para receber outras produções e fomentar essa co-existência de diferenças.
Olhando para os trabalhos de vocês, percebo que existe uma ludicidade e um desprendimento para a experimentação. Como vocês veem as potencialidades do humor e do lúdico em nos conduzir a formas mais abertas de pensar corpo e imagem?
JA – O humor tem sido um componente muito presente em nossos trabalhos, mesmo quando criamos algo mais denso ou emotivo, como um modo de criar conexões críticas e inusitadas entre os materiais que relacionamos, para produzir novos sentidos, realidades e percepções. Nem sempre pretendendo um efeito diretamente cômico, mas sempre buscando jeitos menos rígidos de investigar e compor nas artes.
NM – Talvez, hoje, as redes sociais sejam menos digitais que o próprio corpo, porque essa produção de imagens e informações já fazem parte da nossa comunicação com o mundo: eu como a partir de indicações do Google, me localizo a partir do Maps e me conecto com as pessoas a partir do Facebook.
Hoje, se parabenizo alguém pelo Facebook, nem sinto mais a necessidade de encontrar a pessoa pessoalmente, pois acredito que meus sentimentos já chegaram onde deviam. Isso é corpo, no sentido de ser um modo de me colocar no mundo. Acredito que não seja possível separar imagem e corpo porque, talvez, tudo isso seja mesmo corpo, como o que já viemos conversando sobre os trabalhos da Dimenti.
Ao entender esse corpo a partir da cultura pop, talvez nosso interesse esteja justamente em pensar como essas coisas afetam não somente meu corpo, mas também de outras pessoas, de uma massa ou de uma população. Como pensar esses afetos? Quais as consequências e possibilidades que nossas relações com as redes sociais provocam ao concentrar interações de tantas pessoas em um só espaço?