Viúva, Porém Honesta – Uma “commedia da fare”
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por Igor de Almeida Silva
Etimologicamente, a palavra farsa significa “o alimento temperado que serve para rechear uma carne” (PAVIS, 1999, p. 164), apontando para a presença de um corpo estranho que torna o alimento mais picante e saboroso. Nesse sentido, não se pode vincular à farsa o bom gosto ou o comedimento. Sua comicidade é grotesca e licenciosa, para não dizer grosseira, ligada ao corpo e ao cotidiano. Nela, reina uma poderosa teatralidade extraída do virtuosismo corporal do ator.
Segundo Eric Bentley, a estrutura fundamental da farsa resume-se na tríade do marido, da esposa e do amante. Sem ela, não há como o gênero ocorrer. Isso porque “Os atentados à devoção familiar estão, certamente, no âmago da farsa” (1981, p. 208). Em Viúva, porém honesta, Nelson Rodrigues mata o marido antes do início da farsa propriamente dita e transforma prematuramente a esposa em viúva. Em suma, ele não apenas mata o marido, como também assassina o próprio gênero que lhe dá suporte. Talvez, por isso o subtítulo de farsa irresponsável. Porque é a irresponsabilidade que lhe leva ao assassínio. Fato que também distingue sua peça de uma farsa tradicional, sendo ela, portanto, um gênero à parte da sua matriz literária. Poder-se-ia dizer que sua farsa irresponsável é um aparte da farsa tradicional. Com Viúva, Nelson nos apresenta a própria impossibilidade da farsa enquanto gênero. E este conflito de ordem formal, no interior da estrutura da obra, torna-se tema central de sua peça.
A trama de Viúva, porém honesta é bastante insólita: um pai (Dr. J. B.) contrata os serviços de três especialistas (um otorrino, um psicanalista e uma cafetina) para curar a súbita honradez e pudor de sua filha, que a impede de sentar. É preciso que a viúva sente-se novamente e, por extensão, volte a ter amantes. Mas para trair deve-se antes ter marido. O conflito não reside, portanto, no personagem, em seu pudor enlutado; porém no próprio gênero, pois o marido, a esposa e o amante lhe são essenciais. Não há como a farsa prosseguir sem essa equação e é justamente esse conflito que Nelson põe em cena. Não o dos personagens, ou o da ação dramática, mas o do próprio gênero. Tanto é que a peça praticamente não progride; pelo contrário, ela regride, sendo em sua quase totalidade um grande flashback, situada sempre no passado, nos fatos que levam a trama a sua situação atual, semelhante a um romance policial que, inclusive, não é tão distante da estruturação de Édipo rei, também fincado em eventos anteriores, sempre em busca da verdade.
Nesse sentido, para que a farsa enquanto gênero cômico possa prosseguir, é necessária a intervenção do Diabo da Fonseca, o belzebu. Atuando como um deus ex machina, ele resgata do Inferno Dorothy Dalton. E sua viúva torna-se novamente esposa para poder voltar a traí-lo. A farsa está salva. Em outras palavras: em Viúva, porém honesta, a farsa se inicia quando a peça ou o espetáculo terminam. Antes de tratar da moral e dos bons costumes, do pecado e da sordidez, Nelson aborda em sua peça a forma teatral de um gênero cômico e também do próprio teatro. Viúva, porém honesta é obra eminentemente metalinguística, para não dizer metateatral. Como paródia, sua metateatralidade manifesta-se na dramatização da impossibilidade do gênero colocada por Nelson. A verdadeira expectativa não é saber se Ivonete voltará a sentar, mas se a farsa poderá se realizar. A construção de uma fábula e seus personagens é elemento menor em Viúva; sua ênfase está no próprio jogo teatral, em sua performance cênica. Ou seja, em como fazer e não o que fazer.
Esse parece ser o leitmotiv que conduz a montagem de Viúva, porém honesta, pelo grupo pernambucano Magiluth. O espetáculo é calcado nos princípios do jogo, que permitem uma atuação ao mesmo tempo lúdica e frenética. A teatralidade do espaço cênico é extraída de seu despojamento e aparente desordem, evidenciando aos olhos do público os bastidores do palco, assim como os demais adereços e elementos de cena que são utilizados no decorrer da representação. A cenografia organiza-se basicamente na disposição de cadeiras que delimitam no palco a área de jogo. Por meio da performance dos atores, o espectador é levado a distintos tempos e espaços. A partir de uma enunciação, de uma passagem sonora, de uma mudança de luz, ou mesmo de um pulinho para frente ou para trás (literalmente), leva-se o público, por exemplo, para a primeira consulta de Ivonete com o Dr. Lambreta, ou para o dia do casamento da viúva com Dorothy Dalton.
É esse mesmo jogo que permite aos atores uma constante troca de papéis, na qual todos representam cada um dos personagens da trama. Aqui, o prazer do espectador não está apenas na fábula non sens que é contada, mas na maneira como ela é mostrada ou narrada, no modo como ela é feita. De acordo com Denis Guénoun, o trabalho do ator contemporâneo “não é mais determinado pelo imaginário dos personagens. Ele roça, chama-os ou os ignora, depende: mas não lhes obedece mais” (2004, p. 131). A questão não é viver o papel, mas mostrar que está representando e, sobretudo, jogar com os personagens. Dessa forma, o jogo dos atores do Magiluth não se baseia na identificação, em uma ilusão dramática, mas em uma dissociação na qual o personagem se transforma e se condensa em um gesto sintético e um objeto específico – chapéu e boá para Madame Cri-Cri, barriga falsa para o Dr. Sanatório, óculos e cachimbo para Dr. Lupicínio, entre outros – que os identifica para o público e com o qual se joga, “arremessando-os” de um ator a outro, como uma peteca ou uma bola que não pode cair no chão. Um exemplo particularmente instigante encontra-se quase ao final do espetáculo, quando há mais personagens em cena do que atores, obrigando alguns membros do grupo a se desdobrar em mais de um personagem ao mesmo tempo (como o faz Giordano Castro), ou a se deslocar de um ponto a outro do palco para não deixar um personagem “cair” (tal qual faz Mário Sérgio Cabral quando se lança de um extremo do palco a outro para pôr o chapéu de Madame Cri-Cri e dizer sua “deixa”).
Essa dinâmica de atuação (bastante próxima do esporte) impõe à cena um ímpeto vertiginoso do qual não se pode parar um único instante. As cenas são construídas, interrompidas, e refeitas quase que simultaneamente. A cena é deliberadamente caótica: enquanto dois ou três atores atuam, os demais correm de um lado para o outro preparando a cena seguinte e, por vezes, interrompendo ou atrapalhando os primeiros. O espetáculo caminha sempre no seu grau máximo de intensidade e ritmo (para não dizer excitação) em que a atenção da plateia é tragada em um duplo estado de tensão e hipnose, do qual não se pode escapar, nem mesmo piscar os olhos. Esse estado de atenção e tensão ao limite provoca, entretanto, certo esgotamento do meio para o final da montagem. Há uma sensação quase física de fadiga como se ao espectador também se requeresse um dispêndio de energia semelhante ao dos atores no palco.
Escondido nas coxias do pequeno Teatro Arraial, o encenador Pedro Vilela opera a luz e o som, quase imperceptível. No entanto, em vários momentos, ele irrompe no palco para reclamar ou corrigir determinada cena ou atitude “irresponsável” de um ator que atrapalha ou prolonga em demasia o espetáculo. Tal como um meneur de jeu do teatro medieval (de onde a farsa enquanto gênero teatral surge), Vilela narra e conduz o espetáculo, tornando-se ele mesmo parte da representação, como um novo personagem que invade a cena. Pirandellianamente, Vilela introduz no texto de Nelson Rodrigues a figura do encenador, desfocando mais uma vez a atenção de espectador para o como em lugar do que é representado. Enfatiza, portanto, a metateatralidade da dramaturgia ao direcionar nosso olhar para a relação entre o diretor e os atores e destes para com a representação e, por extensão, com o público. Mais do que o sentido do texto teatral, é a realidade do palco que Vilela coloca em primeiro plano, introduzindo o procedimento da peça dentro da peça. Ou melhor, ele e seus atores transformam Viúva, porém honesta em uma commedia da fare (“peça por fazer”), gênero metateatral herdeiro da tradição italiana da commedia dell’arte, que tem na modernidade Luigi Pirandello como seu principal representante, especialmente em sua trilogia do teatro dentro do teatro, composta por Seis personagens à procura de um autor, Cada um a seu modo e Esta noite se improvisa. Na “comédia por fazer”, expõe-se o processo de criação de um espetáculo que, entretanto, permanece inconcluso. Isso justifica, por exemplo, as sucessivas interrupções dos atores, alegando dificuldades para representar naquele dia. A representação nunca pode se efetivar a contento. Ela é sempre um ensaio, uma tentativa.
A encenação revela-se justamente em sua desmedida, em sua alegria carnavalizante, que não oferece uma visão unívoca da obra de Nelson. Pelo contrário, ela joga com as diversas possibilidades do texto, a partir da atuação desabusada dos atores. O Magiluth ensaia todos dos recursos da farsa no palco, como se almejasse também desafiar os seus limites, assim como o faz Nelson Rodrigues. Pode-se pensar todo o espetáculo por meio da hipérbole e da literalidade. Se os atores falam batata, eles de fato arremessam batatas para o alto ou comem chips. Se no texto se diz que o nome do novo crítico teatral – Dorothy Dalton – é de um filme de cinema mudo, a apresentação do personagem se dá em uma cena muda – ou pantomima –, dublada por outros atores. Nada é descartado ou desperdiçado. Tudo é suporte para o jogo.
Viúva, porém honesta é um espetáculo brilhante. Provavelmente, o melhor trabalho realizado pelo grupo Magiluth. Figura entre as montagens mais emblemáticas de Nelson Rodrigues em Pernambuco, a exemplo de Vestido de noiva, pelo Teatro de Amadores de Pernambuco e pelo Curso de Formação do Ator da UFPE, respectivamente dirigidas por Flamínio Bollini Cerri, em 1955, e por João Denys Araújo Leite, em 1988, e também de Senhora dos afogados, pela Companhia Teatro de Seraphim, com direção de Antonio Cadengue, em 1993.
REFERÊNCIAS
BENTLEY, Eric. A experiência viva do teatro. Apresentação Paulo Francis. Trad. Álvaro Cabral. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
GUÉNOUN, Denis. O teatro é necessário? Trad. Fátima Saadi. São Paulo: Perspectiva, 2004.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. sob a direção de Maria Lúcia Pereira e Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1999.