Crítica – Tudo é Amor – Almério canta Cazuza | En’quadrilhando corpos, gênero e sexualidade nos espaços de poder

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Imagem – Ana Migliari
Por Jares Yurema
Traidora de gênero, artista desobediente e Licencianda em Dança (UFPE)
Almério Feitosa é de Altinho – (PE), tem 41 anos e conta com um percurso bem intenso: dois álbuns já lançados, prêmios acumulados, a exemplo do Cata-Vento da Rádio Cultural Brasil e participação no Rock in Rio em 2017. Seu novo trabalho estreou no Teatro do Parque, Recife, no último 15 de maio. Cheio de afetos e memórias, Tudo é Amor – Almério Canta Cazuza é composto de canções atemporais, cantadas de maneira sincera e pulsante. O show abre com Vai à Luta, um acerto de contas pela vida, marcada por dificuldades e preconceitos. Influenciado pelas bandas de pífano de Caruaru (PE), no espetáculo de Almério, a diversidade se manifesta tanto em uma performance andrógina, quanto na mescla de referências estéticas, como o pífano com o eletrônico.
No palco, dentro de um quadrado, Almério põe o corpo em (des)construção social, cultural e individual, trazendo à tona suas identidades culturais, para fazer o enfrentamento contra a estrutura sexista, este dispositivo de regulação social que sabemos ser responsável por uma manutenção dos sentidos e compreensões de gênero e sexualidade há bastante tempo. Com a movimentação assinada por Helijane Rocha, dançarina e coreógrafa do Recife, o cantor cria uma relação com o quadrado (elemento cênico pensado pelos artistas Wilson Aguiar – mestre de Frevo – e Francis Aguiar, que assinam a cenografia). Almério, na relação com este elemento, denuncia as assimetrias na exploração de poder entre o corpo, gênero, sexualidade e espaço. Evidencia, assim, uma conservação essencialista e imperialista da dicotomia de rótulos de gênero e sexualidade, com a qual esta relação com o cenário, entre outros aspectos da performance, tenta romper.
O quadrado está simbolizando a estrutura CISgênero, que explora e se apropria dos corpos, para assegurar, no sistema capitalista (que já é também um cistema), a reprodução geradora de infidáveis proletários. A crítica que se materializa neste aspecto do show faz entender que o tradicionalismo quanto a estas compreensões patologiza a diversidade de gênero e sexualidade. Esta realidade ainda perdura no século XXI, atualizando as feridas coloniais (se partimos de uma perspectiva interseccional das relações de poder tanto entre raças quanto entre gêneros). Esta manutenção atualiza, ainda, uma dramaturgia da violência epistêmica, que, embora patologize, é ela mesma uma herança patológica, mantida até hoje por colonizadores, que insistem em enquadrar corpos des’viados de gênero e colocá-los no lugar de subalternidade, na construção de suas próprias subjetividades.
No show Tudo é Amor, identificamos um enquadramento pelas ferramentas de poder, em um sistema que regula e no qual “te chamam de ladrão, de bixa, maconheiro; transformam o mundo inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro”. E, dessa forma, um paradoxo é criado. Por um lado, um corpo é enquadrado em um cenário em que vemos “o futuro repetir o passado” e “o museu de grandes novidades”. Por outro, já que O Tempo Não Para, o corpo se apresenta como matéria expressiva em constante processo de reinvenção, construindo significados a serviço de transformar os entendimentos do próprio corpo, livrando-o dos rótulos construídos socialmente por posições dominantes. O movimento coreográfico de Almério, portanto, propõe, em sua estrutura, um efeito de liberação dos corpos, a partir da dinâmica fluida, forte e leve.
Voltemos agora à diversidade estética do show, trazida pela presença do pífano. a sonoridade oferecida por este elemento, em diálogo com a simbologia sugerida pela relação do cantor com o cenário, me conduziu a uma associação, que me permito trazer aqui, com a Quadrilha. Entendendo-a como uma variação de quadrado, percebo esta manifestação como um cubo mágico de várias possibilidades, um espaço de metáforas, misticismos e uma variedade de significados. Um deles é o conservadorismo que atravessa o conceito de identidade de gênero. Porém, assim como o corpo tal como representado no show de Almério, a festa junina continua em reconfiguração, a depender de um recorte temporal, estético e simbólico. O quadrado faz uma ponte entre o misticismo e os sincretismos que se cruzam com a quadrilha junina, lida a partir de uma contemporaneidade.
A quadrilha junina (Quadrille) surge em Paris no século XVII, é uma dança de salão atribuída aos ricos, composta por quatro casais, em um recinto com uma dimensão quadrada e com uma coreografia que faz uma diferenciação das corporificações. Chega ao Brasil/Pindorama na ainda colonização portuguesa, fundindo-se às tradições de povos originários, sendo apropriada pelo funcionamento das estruturas capitalistas que se afirmam universais. Posteriormente, ela se popularizou entre os pobres, celebrando a fertilidade que envolve comidas típicas, fogueira, vestimenta e fé, no ciclo junino que consagra o santo São João, protetor dos casados, imagem sexista da religiosidade cristã.
A origem nobre e cortês da quadrilha se cruza com seus contextos territorial, religioso e popular e, na contemporaneidade, precisa ser vista evidenciada em suas pluralidades, incluindo as que permeiam assuntos sobre sexualidade e gênero. Podemos associar esta reconfiguração com a troca de roupas que Almério faz dentro do quadrado, para, em seguida, serem projetadas imagens de Cazuza já próximo à sua morte. Este artista morreu em 1990, de pneumonia, como complicação da Aids. No mesmo ano de seu diagnóstico de HIV, em 1987, “a Operação Tarântula é arquitetada pela polícia civil”[1] que perseguia grupos estigmatizados e acusados de “ultraje ao poder público e crime de contágio venéreo” (como compreendido pelo Artigo 130 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940)[2], com objetivos higienistas, motivados pelo preconceito contra pessoas acometidas pela AIDS.
Na mesma época, corpos subalternos começam a ganhar visibilidade com textos de humor e com assuntos que atravessam a sociedade da época como escassez e preconceitos sexuais, a exemplo de A Bicha Burralheira – A estoria que sua mãe não contou, estreada após o Regime Militar (findado em 1985), por Henrique Celibe, ator e diretor de teatro. Esta obra deu origem a Cinderela – A estória que sua mãe não contou, de 1990, da Trupe do Barulho. Abrindo possibilidades como cubo mágico, a quadrilha começa a estilizar-se e, no fim da década de 1990, dar oportunidade a corpos desviantes de gênero a ocuparem a cena artística. As quadrilhas juninas trazem um equivalente da a arte Drag Queen, através da figura da caricata (“homens cis e mulheres trans interpretando personagens femininos”)[3], na época vista de forma humorística e depreciativa. Pessoas travestis e desviadas ainda não podiam dançar na ala feminina na época, pois a regra era apenas mulheres cis, restando a dissidentes de gênero apenas papéis como adúlteras.
As caricatas ganham mais espaços e lugares no século XXI, ocupando a ala feminina nas quadrilhas juninas, ao criar uma inversão de papéis entre a cisgeneridade feminina e travestilidades, mas ainda mantendo algumas características das quadrilhas tradicionais, tais como casamento, movimentos tradicionais, personagens e destaques, a depender da região. Um pouco da história das caricatas é contada por Batgirl (1992):
Eu, morava na favela Pantanal, entre UR-3 e os Milagres, com o pai, não era assumida; “Eu não me identificava para dançar de homem”, “não podíamos dançar de “dama”. Minha primeira participação foi na quadrilha Junina Pantanal na Roça com uma personagem caricata cheia de glamour que surgia no casamento; a segunda participação na Chiclete com Banana (1994), Jaboatão do Guararapes, Vila Rica – cohab I; período que sofri muitas travestifobia, esses nomes, leis não existia na época, violência que não era só em casa, mas nas comunidades onde a se apresentava e na quadrilha; a caricata era a graça da quadrilha, éramos vistas de forma depreciativa e mesmo assim arrastei títulos e destaques, batizada com nome de Boiadeira Batgirl, era a única assumida na quadrilha, era gay, preta e pobre, fiquei de fundo nos ciclos juninos até 1995 como uma noiva falsa.
Em seu processo, a quadrilha também vem transformando uma cultura en’quadrilhada, deixando evidente a sua relação com as questões de corpo, gênero e sexualidade. Mas, infelizmente, suas conexões religiosas ainda trazem rastros com práticas como a inquisição, jogando na fogueira e enquadrando corpos não doutrinados, lançando-os na fornalha, no xadrez. É uma festa ritualística, pagã, que acontece nos solstício de verão, celebrando o plantio e colheita, fertilidade da terra que pratica a vida sobre a morte, processo de transição que seria estar sempre se transformando, se entendendo a partir das próprias experiências como caminhos de encruzilhada entre movimentação e rodopio. Passeando por vários lugares e situações que afetaram e afetam um espaço de resistência e existência, contraditoriamente, afirmam e negam a liberdade, pois a liberdade tem sido negada,ao mesmo tempo em que sentidos específicos para a mesma têm sido idealizados, imaginados e impostos pelo poder patriarcal etnocêntrico, numa supremacia cisgênera que atravessa as questões política, cultural e religiosa.
Voltemos agora à relação entre a música popular brasileira e suas implicações nas questões de gênero e sexualidade e como isto é trazido pelo trabalho Almério Canta Cazuza. No repertório do show, a música Cobaias de Deus (1989), de Angela Ro Ro e Cazuza, denuncia os símbolos e aprisionamentos centrados na figura de um homem branco e de cabelos grisalhos, que apresenta uma ideologia binária, como parte da gênese da tradição judaico-cristã. Um senhor cheio de controvérsias, soberano, mas cujo poder não vem só da ancestralidade: é temporal, civil, e atemporal, eclisiástico, com uma moral que acolhe a cisnorma e mata os des’viados de gênero: “[…] Me tire dessa jaula, irmão, não sou macaco / Desse hospital maquiavélico / Meu pai e minha mãe, eu estou com medo / Porque eles vão deixar a sorte me levar…”. Os sentidos desta poesia evidenciam esta estrutura que produz corpos cisgênero e exclui a dimensão feminina, enjaulando corpos que, em sua dramaturgia subjetiva, performam possibilidades de travestilidades e mulheridades. Céu Falconiere (2019), diz: “Antes de nascermos, ainda na barriga de nossa mãe, é realizado um exame chamado ultrassom que vai determinar culturalmente nossas vidas, a forma como iremos nos comportar socialmente, os espaços que serão permitidos estarmos, bem como, os espaços que serão a nós vetados, o desejo afetivo e sexual, e práticas sexuais, tudo isso a partir de uma simples frase: “é menino” ou “é menina”. Vale o contraponto de que divergente é a compreensão da ancestralidade de matriz africana, que personifica a dimensão do “feminino”, manjedoura que assegura a sintonia dos pólos, terra e céu, praticando uma mutação em sua dança espiralada e perene, representada por uma serpente, fazendo uma junção sexual, sem definir os corpos na dualidade de “homem” x “mulher”.
Desde que nascemos, somos fadadas a ter uma percepção corporal através da qual nos relacionamos com o outro, e é pelo olhar e percepção também desse outro, que percebemos nossa própria corporeidade e subjetividade. Passamos por este processo em várias fases ao longo da vida, na infância, na juventude, na vida adulta, na maturidade e na vida idosa. Entretanto, a performance de Almério possibilita deslocamentos sobre essas percepções, com descobertas criativas através de sua interpretação, que evidenciam a importância da arte para a formação da cultura, despertando interesses intelectuais que navegam através do tempo. A relação com as memórias do corpo cruzado e desobediências de gênero cria, no show Tudo é Amor, uma ponte entre o elemento cênico do quadrado e a quadrilha, tirando a poeira e limpando o corpo, como num banho de limpeza. Uma metáfora construída no corpo, que, ao longo de sua história, passa por fases que caracterizam a complexidade de vida e morte.
Entendo que a diversidade não pode ser reduzida e que a dança, a música e a quadrilha junina, assim como outras artes e culturas, são linguagens marcadas de percepções táteis, visuais, auditivas, afetivas e cinestésicas, levando em conta diferenças epistemológicas e dramatúrgicas. O show Tudo é Amor – Almério Canta Cazuza é uma espécie de ritual. Na música, tanto quanto em outros elementos cênicos, estão representados os ciclos de vida e morte, numa percepção sensitiva de encruzilhadas que abrem caminhos cheios de símbolos e signos e em que se cruzam doutrinas distintas. Atribuem-se novos sentidos às percepções carregadas por uma supremacia cisgênera que enjaula as possibilidades performativas de gênero, gatilho para inquietarmo-nos contra os aspectos culturais que nos reduzem os espaços, enquadrilhando-nos, e para trazermos ao quadrado o que “trai” as suas arestas.
REFERÊNCIAS
– Bhabha, Homi K., 1949. O Local da Cultura / Homi k. Bhabha ; tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. – 2. ed. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
– Dias. Claudenilson da Silva, – Identidades trans em candomblés: entre aceitações e rejeições/Claudenilson Silva. 1° edição/Salvador – BA. Editora Devires, 2020.
– Preciado, Paul B. Testo Junkie / Paul B. Preciado ; traduzido por Maria Paula Gurgel Ribeiro – São Paulo : n-1° edição, 2018.
– Mombaça, Jota, 1991 – Não vão nos matar agora / Jota Mombaça. – 1° ed. – Rio De Janeiro: Cobogó, 2021.
– Lira, Paula. A Grande Serpente / Paula Lira ; ilustrações Isabela Stampanoni, Paula Lira (caranguejo). – Recife: FUNDARPE, 2014.
– Melo, Liana de Queiroz “Na minha quadrilha só tem gente que brilha”: corporalidades dissidentes e direitos humanos nas quadrilhas juninas do Recife-PE / Liana de Queiroz Melo. Recife, 2018.
Notas de Rodapé
[1] Acesse mais informações AQUI
[2] Para saber mais sobre o assunto, acesse AQUI.
[3] Para saber mais sobre a presença de pessoas transgêneras nas quadrilhas juninas, ler ensaio de Hugo Menezes Neto publicado no Quarta Parede. Acesse AQUI