Ensaio – Dramaturgias de Palcos & Plateias | Um exercício de compreender e ampliar os sentidos
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Por Roberta Ramos e Márcio Andrade
De abril a maio de 2022, como fruto de parceria entre o Departamento de Artes / CAC / Proexc – Universidade Federal de Pernambuco -, a revista digital Quarta Parede e o TREMA! Festival, realizou-se o projeto de extensão Dramaturgias de Palcos & Plateias – nexos, olhares e exercícios críticos, atrelado à disciplina Dramaturgia e Apreciação Crítica em Dança, recém criada no Curso de Dança da UFPE.
O projeto, proposto e coordenado pela professora, pesquisadora e artista da dança Roberta Ramos, teve como objetivo amplo proporcionar o debate sobre as relações entre o fazer dramatúrgico em dança (incluindo sua dimensão de ofício e seus resultados cênicos) e o exercício crítico, buscando incentivar o interesse de estudantes e participantes por tais temas e atividades a eles relacionadas.
O conjunto das atividades englobadas incluiu rodas de conversas sobre temas diversos relativos à dramaturgia em dança/performance/teatro e a produção crítica sobre essas linguagens; aulas com laboratório de crítica; apreciação de espetáculos e videodanças (dentro e fora da programação do Trema! Festival); e, por fim, a produção de textos críticos pelos estudantes da disciplina vinculada ao projeto.
As rodas de conversa aconteceram nos dias 01, 08, 29 de abril e 13 de maio, e tiveram as seguintes temáticas: A apreciação crítica e a construção dramatúrgica; A crítica em dança – Funções e concepções; Dramaturgias expandidas e olhares descolonizantes da crítica; e Os ofícios da dramaturgia e da crítica no contexto brasileiro. A cada roda, contamos com a participação de estudantes e público externo; com a mediação da coordenadora do projeto; e com as contribuições dos convidades nos temas abordados. Assim, na representação dos colaboradores da revista Quarta Parede, tivemos Liana Gesteira, Bruno Siqueira, Lorena Rocha e Márcio Andrade; e, como convidades externes, Fabiana Britto (UFBA); Joubert Arrais (UFCA/UFBA); Sônia Sobral (Curadora de dança); Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?); Valéria Vicente (UFPB); Marcelo Sena (Cia Etc.); e Lígia Tourinho (UFRJ).
As discussões tiveram como pressuposto a compreensão de que a dramaturgia da dança é um conceito relativamente recente. Advindo do campo do Teatro, cuja historicidade foi um dos primeiros temas abordados na disciplina atrelada a este projeto, ao migrar para a dança, requer adaptações relacionadas a entender as peculiaridades do que significa ‘compor uma ação’ (significado de dramaturgia) em dança (HÉRCOLES, 2005).
Foi relevante para as discussões que se desdobram do pensar dramaturgia em dança na contemporaneidade, a ampliação de conceitos para dar conta de uma passagem para uma valorização cognitiva do corpo e, paralelamente, o processo de construção de autonomia da dança como campo artístico e área de conhecimento. Assim, conceitos como dramaturgia do movimento e dramaturgia do corpo (TOURINHO, 2009) passam a dar conta de como o corpo e sua relação com questões e com o ambiente passam a ser geradores dos principais eixos dramatúrgicos, deslocando, ao menos, na dança o principal interesse da palavra e das narrativas, para as narrativas do próprio corpo e da pesquisa de movimento.
Por outro lado, como um ofício, a dramaturgia possui uma historicidade recente e que também não é universal, cabendo-nos entender as diferenças geopolíticas das condições criativas em dança em diferentes contextos, e entender as implicações dessas diferenças no modo de conceber e realizar processos de criação, seja individual ou coletivamente.
Implicados nesta discussão, estão também os protocolos de criação que dizem respeito a romper com a subordinação da dança a outras linguagens, de modo que, ao invés de dramaturgia determinada por roteiros, textos ou outros elementos anteriores à criação que a definiriam como dramaturgia de conceito, temos visto com bastante frequência construções dramatúrgicas em que o processo e seus agentes são responsáveis por todas as decisões e escolhas a serem empreendidas (KERKOVE, 1997 apud TOURINHO, 2009): temas, elementos, lógicas de movimentos, etc. Importante ainda é considerar, nas discussões, as especificidades de linguagens híbridas, tais como a arte da performance e a videodança, que apresentam suas especificidades quanto aos entendimentos dramatúrgicos.
Já no entrelaçamento entre a dramaturgia e a crítica, um aspecto que atravessou todas as discussões foi a compreensão de que a apreciação dá continuidade à produção de sentido de cada obra e, portanto, há uma relação de contiguidade entre a crítica e o fazer dramatúrgico. O interesse por essa relação de indissociabilidade entre as duas atividades é o que justifica iniciativas de artistas e pesquisadores como Marcelo Sena e Joubert Arrais em relação para a produção de exercício crítico por artistas, perspectiva esta que poderia situar a crítica como “co-implicada” no contexto amplo do fazer em dança.
Para Sena, que criou, em 2013, junto à Cia. Etc. o projeto de crítica chamado Contracorpo: conversando com Dança (2012), instiga pensar “Quais questões poderiam estar implicadas quando um artista decide escrever uma crítica sobre obras de outras e outros artistas, seja temporariamente ou constantemente?”. Neste projeto, sobre o qual ele tratou na Roda 4 do Dramaturgias de Palcos & Plateias, em que discutimos experiências específicas no contexto brasileiro, Sena conta que “duas pessoas escreviam sobre o mesmo trabalho, lançando assim diferentes modos de perceber e de enunciar seus pensamentos, além de gravar um podcast com a equipe criadora do espetáculo”. Para o artista, um dos papéis do exercício e da reflexão em crítica é auxiliar a “percebermos as nossas próprias criações de modo mais diverso e aprofundado”.
Já Joubert Arrais chama a atenção para o fato de que “a crítica especializada vem perdendo sua própria evidência como autoridade profissional. Isso se deve não apenas pelos fluxos intensos e espaços democratizantes de difusão de informação online-offline; mas, também, por uma certa ausência do seu fazer-dizer crítico em se perceber interseccional para, de fato, ser uma ação coimplicada (um escrever “com”, e não meramente “sobre, a obra artística)”. Sua discussão foi bastante instigante no contexto da Roda 3, cujo tema foi Dramaturgias expandidas e olhares descolonizantes da crítica. Há, segundo Joubert, “uma demanda de politização: a crítica em suas materialidades e dramaturgias precisa questionar certas matrizes de dominação que ainda evidenciam meritocracias estéticas e necropolíticas curatoriais. Pois a comunicabilidade da crítica, ao promover tais autocríticas, tende a expandir sua escrita como engajada nos processos de produção de conhecimento de corpos artistas. Daí vem, então, seu principal desafio hoje: a crítica ser uma artesania escrevivente de cumplicidades”.
O contexto de participação nas rodas de conversa possibilitou ainda que a artista e curadora Sônia Sobral produzisse um ensaio a respeito das discussões propostas na mesa de que participou (roda 3), relacionando-as a espetáculos da programação do TREMA! Festival. Para conferir o texto, basta acessar AQUI.
À revista digital Quarta Parede, coube uma parceria ampla com o Dramaturgias de Palcos & Plateias, participando desde sua concepção, passando por todas as rodas de conversa, contribuindo com a produção das artes de divulgação e funcionando como espaço que concentrava as inscrições e informações sobre o evento. Além disso, a revista também acolheu a produção crítica dos estudantes participantes da disciplina Dramaturgia e Apreciação Crítica em Dança. Esta produção é o que apresentamos aqui, traçando pontes de diálogo com o Dossiê #18 Atos de Retomada. O referido dossiê, por sua vez, traz ensaios, podcasts, lives e videocasts que refletem sobre como artistas, coletivos e os públicos de Artes da Cena vêm enfrentando o processo de retomada após o isolamento social. Para acessar os conteúdos do dossiê, acesse AQUI.
Já o TREMA! Festival participou oferecendo parte de sua programação para estudantes e alguns participantes, mediante sorteio, para que as obras vistas fossem possíveis objetos de debate, análise e apreciação, como aconteceu com algumas que se tornaram o assunto de boa parte do conjunto de textos que apresentamos aqui.
Alguns dos espetáculos que fizeram parte da programação desta parceria serão objetos de discussão do conjunto de textos que apresentamos nesse dossiê, tais como Encantado (Lia Rodrigues, RJ, crítica de Jonas Alves); BANDO: DANÇA QUE NINGUÉM QUER VER (Gira Dança, RN, crítica de Anna Clara Monteiro), MEIA NOITE (Orun Santana, PE, crítica de Lucas Emanuel) e FEEDBACK (André Braga e Cláudia Figueiredo, Portugal, crítica de Sicillia Cabral). Além destes, também são temas dos exercícios de apreciação a videodança recém lançada O Voo (Elis Costa, PE, crítica de Marília Torres) e o novo show de Almério Feitosa (PE), Tudo é Amor – Almério Canta Cazuza (crítica de Jares Yurema).
No texto Aquilo que é visto e ainda não se vê, Jonas Alves aborda Encantado – o mais novo trabalho da Lia Rodrigues Companhia de Danças – e os modos como a profusão de corpos em cena produz distintos modos de encantamento por meio de diferentes expressões da natureza. Acesse AQUI
No texto Dança que ninguém quer ver ou uma estratégia de sobrevivência?, Anna Clara Monteiro parte dos movimentos coreográficos propostos pelo espetáculo Bando, da Gira Dança (RN) para traçar reflexões entre individualidade e coletividade. Acesse AQUI
No texto Um convite a um labirinto corporal, Lucas Emanuel mescla movimentos, cheiros e sonoridades para compor um panorama sensorial de sua experiência diante do trabalho de Orun Santana em Meia Noite. Acesse AQUI
No texto Memórias de um corpo histórico e elétrico, Sicillia Cabral traça pontes históricas e poéticas da memória para abordar como o espetáculo Feedback nos permite pensar sobre as relações contemporâneas entre colonizador e colonizado. Acesse AQUI
No texto Um túnel-lente para o luto coletivo, Marília Torres atravessa falas da artista Elis Costa às suas próprias reflexões sobre a videodança O Vôo, traçando paralelos entre as poéticas da imagem e as metáforas em torno do luto coletivo causado pela COVID-19. Acesse AQUI
No texto En’quadrilhando corpos, gênero e sexualidade nos espaços de poder, Jares Yurema atravessa uma diversidade de reflexões em torno da presença de corpas dissidentes no âmbito da quadrilha junina a fim de traçar paralelos diante de sua experiência com o show do artista Almério, Tudo é Amor – Almério Canta Cazuza. Acesse AQUI
Acreditamos que, a partir desse amplo e diverso panorama de proposições, o projeto de extensão Dramaturgias de Palcos & Plateias – nexos, olhares e exercícios críticos contribui para produzir pensamentos em torno dos atravessamentos entre os ofícios da dramaturgia e da crítica. Assim, ambos os campos podem elaborar modos de pensar suas diversidades, expandibilidades e especificidades, abrindo campos de discussão que se espalham para além dos redutos da universidade, dos gabinetes dos críticos ou das práticas nas salas de ensaio.
Desejamos que apreciem os textos e reflexões propostas pelos participantes que nos ofereceram generosamente seu tempo e suas reflexões a fim de colaborar com um campo de discussão ainda bastante amplo para se desenhar.
Algumas referências sobre dramaturgia e crítica em dança utilizadas:
ARRAIS, Joubert de Albuquerque. Processos co-evolutivos entre dança e crítica: de um contexto cearense a uma crítica contemporânea de dança. Salvador, 2008. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-graduação em Dança, UFBA. Disponível AQUI. Acesso em: 02 mar. 2022.
CALDAS, Paulo; GADELHA, Ernesto (orgs.). Dança e dramaturgia[s]. Fortaleza; São Paulo: Nexus, 2016. Disponível AQUI. Acesso em: 02 mar. 2022.
HÉRCOLES, Rosa Maria. Formas de Comunicação do Corpo – novas cartas sobre a dança. São Paulo, 2005. Tese de doutorado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, PUC/SP. Disponível AQUI. Acesso em: 02 mar. 2022.
TOURINHO, Ligia Losada. Dramaturgias do Corpo: protocolos de criação das artes da cena. 2009. Tese de doutorado. Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2009. Disponível AQUI. Acesso em: 02 mar. 2022.
VASCONCELLOS, Jaqueline; GUIMARÃES, Daniela. Produção crítica em dança. Salvador: UFBA, Escola de Dança, 2019. Disponível AQUI. Acesso em: 02 mar. 2022.