Crítica – Meia-noite | Um convite a um labirinto corporal
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Imagem – Livia Neves
Por Lucas Emanuel
Graduando em Dança (UFPE) e artista periférico da dança e teatro
Meia noite é um espetáculo que se inicia antes mesmo das cortinas abrirem. Lá no Teatro Hermilo Borba Filho o frenesi antes de entrar já anunciava a energia que seria transbordada na apresentação de Orun. Este, que é a morada dos deuses, nos recebe com arruda e semente de girassol em seus portões, o cheiro me lembra o chão de terreiro batido, misturado com alfazema e fogueira acesa, me transporta para um local de acolhimento, de afago, de casa.
Quando entro Orun já está trabalhando. O espetáculo se inicia muito antes, com o trabalho do performer desenhar o caminho de areia branca junto com o público e nos levar por seu labirinto corporal. O corpo de Orun é magia e ancestralidade pura, não é preciso conhecer sua história de vida para entender que o que ele dança já vem sendo construído em seu corpo antes mesmo de nascer.
Trata-se de um corpo pulsante, instintivo e visceral, que vibra e celebra com alegria sua dança. O chão é desenhado e projeta seu percurso. Acredito que se fosse feita uma foto aérea de como fica o chão ao final de cada apresentação, daria para montar uma instalação magnífica. Ali há um rastro, um registro da magia produzida durante aqueles sessenta minutos. Falo em magia, porque senti que o cenário que se projetava na escuridão revelava sombras do invisível que estavam presentes naquele local. A todo momento eu era puxado a olhar além e ver que entidades estavam celebrando naquele momento.
A questão não é sobre religião ou sobre corpos e danças estigmatizadas, vai muito além disso. Ver Orun dançar me transportou para um local onde meu corpo e de outras pessoas dançavam junto com entidades incorporadas. O cheiro da arruda que a todo tempo estava em minha orelha inebriava o meu entorno, ao mesmo tempo em que a iluminação brinca a todo tempo com o corpo de Orun e narra essa história.
Sinto que todo o percurso que foi traçado durou cerca de uma respiração, de tão absorto que fiquei. A dança de Orun é apaixonante e apaixonada. Reconheci-me no corpo dele, pois reconheci que algumas de suas danças são minhas. Mas sua singularidade dava um toque especial de personalidade a tudo o que ele se propôs fazer. Uma menção honrosa à surpresa da aparição, ao final, do grupo de jovens percussionistas do Daruê Malungo, um toque a mais à dramaturgia de Meia-noite: a equipe de Orun em sintonia na sonoplastia, na iluminação e na produção; e, por fim, a sua mãe, que cantou lindamente e abrilhantou ainda mais o espetáculo. Axé.