“…Eu tenho a visão” – Sobre Olhos de Café Quente…
att, Ozzi Cãndido.
A gente sabe tanto sobre nós mesmos que criamos o excelente hábito de esquecer.
Hoje o dia foi um inferno. desses infernos que se altera e lança-se sobre nosso corpo, em chamas, a gente quer logo dormir, pra desistir do dia e da vida. Como se a gente próprio já não fosse um inferno ilícito donde nos escondemos as escuras. Desses dias que a gente não bebe, nem fuma, nem dirige e mal consegue engolir o alimento dirá mastigá-lo. Vai se arrastando feito um vermezinho que mal deixara de ser larva e precisará enfrentar o mundo. Mas não somos um vermezinho, não sabemos para onde caminhamos, mesmo que saibamos organizar caminhos. e escolhemos, cedo, nossas bengalas donde nos apoiamos a fim de tornar menos impetuoso nosso debruçar na vasta caixa das especulações sobre quem somos no mundo cujo olhos já estão ávidos a enxergar o que se olha. particularmente acredito, sobretudo, que é preciso saber cultivar mortes, olhar infernos e tirar com espanto, porém sem pavor, a pele antiga que larga nosso corpo. trago em mim, empunhado, uma espécia de intuição que me alerta sobre o perigo que todos temos na necessidade natural, como uma flor explodindo em desabrochar e beleza que anuncia os prenúncios da finitude, que é perigoso sair do primeiro paraíso, que é o útero envolto de plenitude caminhando para o externo, desabrochando como flor para construir definições ainda sem construir o corpo da mentira e da ilusão que nos salva, plenos e celestiais como corpos satisfeitos em si, alegres.[quando vos falo de mentira, e do direito a mentira, não estou erguendo a bandeira da falsidade como conselho pleno de forma de organização humana, estou falando isoladamente do ato criativo de inventar a arte como via suspensa para nos enredar ao mundo. por que tudo isso que vivemos é mentira, e eu sinto, minha vida, uma vontade de urrar sobre as marquises da palavra mentira. urrar elegantemente por que eu mesmo sou persona dado as supostas ingenuidades. sinto asco desses nossos equívocos erguidos em que estamos rindo como se tudo estivesse dando certo, e não está. enquanto uns manipular o direito do outro, que, por profundo fundamento da liberdade não cogita a visão de ser usurpadora, o mundo continuará caindo como deságua a água numa cachoeira qualquer. caindo. quando penso nas representações cujo os homens tentam-nos por uma mordaça: eu não sei se choro, se vomito, se ergo sobre mim o punhal reluzente e acabo com a existência, se triunfo e continuo a construir mentiras até certo ponto, por que há aqueles que na construção da mentira desemboca na verdade e na verdade reside (a mentira é a rotina, por exemplo, não a rotina dos dias em dias acontecendo, mas o significado imaginário que constrói o sentido dessa rotina, a vida não biológica mas imaterial). a primeira liberdade que eu reivindico é o direito de assumir, sem que haja sistemas maiores sempre a me boicotar injustamente, o direito que tenho de criar minha própria narrativa sobre o mundo. eu clamo a consciência, não há Deus maior para mim. eu choro por mim mesmo na busca por mim no caminho da deseducação. antes o mundo me era um véu rompido, era um quarto concluído, uma presença imortal. depois que me enxerguei, em sustos, em mim mesmo o mundo é código, é cheiro, é instinto, é finito e frágil. Como Maria não existe para Caio, nem Jorginho existe para Bernado, nem Gabi existe para Lee, eu não existo também. eis a rede que se ergue invisível e que nos come como se suculentos frutos maduros nós fôssemos]; eu cultivo amor aos instantes febris em que, iluminado descubro e reinvento a vida; me é impossível ser como está-se posto, ser sem o direito miúdo de reinventar tudo. sou uma espécie de defasador-benéfico; eu só quero ser e deixar ser, eis a necessidade prolixa de refutar a todo instante o texto que vos desejo comunicar, lançando sobre ele a responsabilidade da via que vai em mão e contra-mão. eu não sei existir senão sendo quem sou. e nisso me exalto.
Talvez minha persona não suporte tanto sol e calor. Ora ela grita dentro de mim, como criança inconsolável mediante a perda do objeto de amor o brinquedo, ora ela, molhada de suor como uma geada fina que cai sobre o deserto enquanto, nesse mesmo instante, fazem cem graus e na perspectiva do relógio, é meio dia. Esse deserto que é o sertão de minhas infâncias inacabadas e inestancável por que eu resido na casa imaginária da coragem de me expor sempre em delegação própria de incorporar o instante precursor em que me lanço sobre o outro através de mim mesmo. Olhos de café quente me fora um espanto donde celebrei a vida esquecido por meio de anestésicos ambivalentes: eu era o amor e o ódio, a compreensão e o instinto, eu era a vítima e o agressor, eu era a sociedade e era ao mesmo tempo Maria Carolina de Jesus, eu tinha que ser como se tivesse tomado sobre minha responsabilidade a de ser o eco que continuarão ouvindo. eu era a pedra no sapato embora soubesse, tranquilo, que eu mesmo não tinha quer ser nada. que era a água a desaguar e eis o maior pico meta-existencial que mais me aproximo para tentar dizer que sei que estou posto entre a luz e claridade e a escuridão voraz. fora um instante de silêncio donde eu podia atingir o paraíso, o útero, e de lá chorar como quem espera estancar no corpo o que não é matéria.
Ora minha alma, ainda, convulsiona e deita, trêmula e leve, como um tom que deixa-se cair obedecendo o dedilhado do músico e a face possuída do intérprete, escoando, para tons mais baixos a fim de comunicar a punhal de lâmina fria a dor quente da verdade. Eu não suporto tanta verdade, a verdade é essa. Todas às vezes que me deparo com a verdade das coisas sendo elas em si próprias, acontecendo, me amplio e sinto a pele rasgar-se e os ossos estalar dentro do meu corpo. Minha persona é semelhante a uma onda gigante que se exalta sobre mim e arrasta-me na carne de meus sacrifícios por ser gente. e eu sou miúdo, mediante ondas gigantes, o que me salva é que, quando ela se ergue, eu me transformo em brisa. Peço-vos, senhores, que não se aborreçam quanto ao que digo, e, se disso que falo, vós não forem aliens e não se erguerem contra mim em violência descabida, então, compreenderemos, com sucesso e glória, que estamos todos caídos na mesma desgraça. Que o mundo é um barco donde temos que dividir a cama e a privada com o outro. Compreenderemos, meus senhores, eu tu e Bitita que o que está para além dos gemidos ainda é desejo, como se voltássemos, o tempo todo, ao estado de reiniciamento para esquecer, pelo meio do caminho da história que construímos na persona, o excelente hábito do esquecimento daquilo que nos acidentou a vida com tamanho impacto que nos faz recorrer ao inconsciente como método de não especular o inspecionável e deitamos fadiga sobre a relva e o amanhecer irrompe com sequelas de ontem. Assim como Bitita querendo mamar e sendo submetida a tarefa desumana das definições, como dissera sua mãe: ‘você irá pra escola, aprender a ler e escrever’ e Bitita jamais voltara a mamar por que as definições a fizeram sentir nojo do peito. Acredito que a vida que constituímos em adereços é um peito imaginário que inventamos para mamar nossas frustrações e desmamadas de termos sido postos para fora, por meio do parir do paraíso cujo corpo flutuava e parasitava, através de cordão umbilical outro corpo, que mais tarde seremos parasitas, todos nós, do corpo do amor. É um ombro que erguemos para sustentar nosso corpo franzino de espanto da dor da existência. Deus é o maior peito que alguns de nós criamos para, por meio de clemência, pudêssemos (os que se convencem) alcançar a ilusão da eternidade e afugentar a certeza da existência. mas eu me nego a acreditar na alma cujo o corpo não atesta. É por isso que Deus não é corpo físico, é corpo imaginário, por que é o peito que ainda imaginamos saudosos da desmamada. estamos agarrados a Deus imaginariamente como a um peito que suprirá todas as nossas demandas. até possuir é graça divina. Fernando Pessoa, possuído de si mesmo diz: haja deus ou não, dele somos servos [ênfase minha, peço licença]. eu penso que é por que Deus é esse peito cujo leite a tudo sacia.
Nas ruas da cidade faziam quarenta graus, dentro de mim media cinquenta. Eu entendia a sinfonia da vida no mais absorto silêncio e na mais profunda solidão. Embora ao meu redor o mundo e a vida funcionasse num domingo como qualquer outro domingo. As aves voavam de lá para cá fazendo-me parecer um tolo, certas como eu de para onde iam: eu que precisava nomear a tudo, classificar tudo, arrumar tudo, amar a tudo em definições sentia uma inveja miúda, sufocando-me a aglutinação entre a garganta e a traqueia, de ser uma ave e ser cuidado por Deus. Os carros buzinavam ainda quando um motorista ou um pedestre parecia sair de sua rota e precipitar-se um sobre o outro. As marés de Recife continuavam escoando, desaguando para o futuro que era o oceano. Nada estava fora do lugar, vos digo. Apenas minha silhueta guarda-mor de mim,corpo sagrado e profano, tentando conter-me as vozes que, cá dentro de mim, eu, corpóreo, acrópole de filósofos e Deuses, em mim contido nas minhas tantas vozes. Eu era Deus de mim, naquele instante, por isso que a vida caiu como a cortina que cai do teto e deixou à mostra tudo que se quisesse enxergar. Se eu percebo é por que quero perceber, enxergar é um dom que forjamos na gente. Descobri-me Deus de mim quando descobri-me capaz de construir uma persona e comecei a fantasiar de realidade como seria minha persona: “eu serei como uma poesia firme e branda, e com dentes de punhais”; “Ou como uma canção primaveril e aquecedora donde cantarei o bem e acalento a todos os homens desabrigados do pico de uma alta montanha”, dizia. Depois descobri também que a poesia é um demasiado acidente das interpretações, que, de repente, a gente sabe tudo sobre tudo, a gente sabe, a gente sabe ainda que saber ou não saber seja a verdade menos importante. Como se, no rosto do outro que, havendo eu escolhido uma rua tomando-a até chegar no fim do objetivo, encontro-me com um transeunte e, ao deparar-me com seu rosto, descubro-me morto. Morto de humanidade, de sentido e esperança. Como se, desde o tempo em que construímos linguagem para comunicar, fazendo saber o outro sobre nós mesmos e nós mesmos sobre ele, deixando suspensa a interpretação como a matriz, o mapa e a barca que transita e nos transportará com segurança. Estávamos, a certo modo, errados: há aqueles que constituem regras para nós, que já habitamos a delicadeza e a visão, cumprir. Isso me torna metade humano e outra metade indignação senão eu viro animal selvagem a comer os filhos dos homens. É certo dizer que somos tão alienígenas uns aos outros que, não fosse a linguagem, seríamos ainda definidos pela semântica, como universos em orbitas dançando em eixos livres. Nosso legado maior é interpretar o outro, o tempo inteiro também dentro da gente, senão saímos dos trilhos e descarrilhamos. Não se pode deixar a voz da interpretação emudecer e por isso tememos a morte. Tememos com horror deixar de interpretar. Morrer estando vivo e respirando: Morrer nos parece que dirão por nós, que escolherão por nós, que estamos ausentes, que desertamos. Tememos emudecer a voz por que o corpo pede clemencia e se entrega, deslizando de plenitude como a água do rio que deságua para ser mar: que seria os carros, meu Deus, que seria as fontes, as meninas, as ladeiras, o telefone, o recado, sem a voz, produto invisível do ser, interpretando-nos o mundo. [para evitar burburinhos falidos deixo dito e documentado que a voz cujo instante falo não é a mesma do aparelho fonológico, falo da voz que se faz ouvir ainda quando emudecida do vocal comumente recebido como toda gente aparatadamente biológico. A voz que eu vos digo nem é voz, por que no mais profundo silêncio e quieto de mim escuto minhas vozes e com elas ergo o maior banquete de diálogos, é por causa dessas vozes que o outro que está em outro corpo e possui tantas vozes se faz tão familiar aos meus rituais imateriais. Eu acredito, assustado, que Deus (havendo pois um Deus) deixa-nos, alguns de nós, falhos e faltosos de uma grota ainda maior que a falta que todos os outros semelhantes também possuem, e quanto a alguns de nós ainda sopra graça em nossos olhos a fim de nos deixar perceber o que está contigo no rosto feito entre nós mesmos e o véu que nos protege do reflexo posto entre nós e o eu que pintamos como persona. Deus é minha persona ].
Nosso corpo é o primeiro encontro com a traição de nós mesmos. Nosso corpo envelhece e nos abandona à alma expostas, dorme o sono da decomposição e somos obrigados a voltar para lugar nenhum que jamais fomos, por genuína delicadeza, anunciados. Como se caminhássemos cegos para um buraco que quem ver, por pleno exercício e hábito da maldade, vendo, não nos avisa que estamos prestes a cair. A gente sabe que abandonamos uns aos outros. Mesmo nós, que resistimos, resistimos por que não aceitamos, na dignidade de ser, que sejamos canibais a nos devorar uns aos outros. Que o plano bonito de sustentabilidade humana falhou, e aos que restam de nós, resistimos e tentamos com o estigma do cansaço sobre os ombros, os que restam de nós feitos messias perambulando pela cidade foram feitos poetas. A gente sabe de tantas coisas sobre nós mesmos que criamos o excelente hábito de esquecer. Somos tão excelentes que, feitos bêbados confiantes em seus passos acrobáticos, nos alienamos que é um caminho negro e burocrático. E sim, um dia, certamente, a gente descubra que somos tão alienígenas uns aos outros quanto os seres que são extraterrestre. mas eu e tu, por exemplo, temos salvação: podemos ser um caso de amor desses que fica-se debaixo de uma árvore a fazer nada olhando o pasto e engravidado de tantas anestesias que nos faz experimentar ser um canal aberto, fluificado de orgasmos a deslizar por entre o aveludado conforto das fantasias do permitir-se pertencer ao outro mesmo sabendo-se e suportando a verdade de que pertencer é um bonito retrato que não passa de um retrato mas que só poderá ser sentido por aqueles que tem olhos retráteis donde se pode, sobre a lupa sagrada de evoluir em si, aquilo que amarei no outro. mas se a gente, eu e tu, não alcançar sermos juntos um caso profundo de amor das linguagens e símbolos e fantasias não podemos existir um no outro e expandir em amplitudes essa existência. até quanto nossas maiores excelências e criatividades. perdendo nossa capacidade de interpretação, morremos. É por isso que, meus olhos estão sempre atento ao momento em que nossas máscaras caem em via publica e mostra, a céu exposto, nossas desgraças. Louvo ao grito que, de tão gasto, tornou-se grave e firme. Que senta à cadeira e conta fábulas de esperança aos filhos dos homens como um pedido de socorro futuro. Salvem-se por que nós não nos podemos salvar. Gosto das faces desleixadas, que borram a maquiagem pelo efeito do choro. Dos passos lentos de firmeza dos que sabem sentir dor sem desistir. Encontro nesse retrato, como retrato são todas as coisas, a força e o sentido para refutar, a vida por que eu mesmo sei, que sou um cavalo velho, uma roupa de carne, um avatar gasto suportando a glória da poesia tomando-me em morte e me tragando lentamente em sulcos. Eu não tenho problemas com a loucura, nem pecados deita ela sobre minha pele, por que eu visto a persona como a roupa que ninguém poderá contra ela interpor-se, erguer-se. A persona para mim é uma roupa que desnudo e visto sem pavor algum em ser manipulador de mim próprio em ato profundo de masturbação. Ainda criança lembro-me de quando fiquei sabendo que tudo iria ruir, por que tudo tende a ruínas, que o mundo ia se acabar, que há dias celestes e dias infernais. Tornei-me uma criança elegante, uma criança com uma dor sofisticada de, ainda nu das roupas da conveniência, ficar descortinando ou empurrando a cortina e porta das especulações que, desembocaria, mais tarde nas alamedas dos sentidos que não se definem e dos significados que depois de decifrados, com mutação linguística, vai se transformando em profundos e graves obsessos na gente: a poesia.
Uma única palavra, eu queria encontrar para gritar justiça. mas minha garganta arranha, e, de repente, perdi-me da palavra sagrada de minha salvação. Pobre diabo andando pelas ruas expostas da cidade vestido ridiculamente de anjo. não cabendo nesse corpo perfeito de anjo.
Sinto que dessa vez, senhores, nesse segundo encontro precisarão saber meu nome para possíveis referência de mim mesmo como ser que escolhera existir por meio da livre e sagrada e espontânea e suprema criatividade. Em criatividades eu escuto os homens, em criatividade eu perdoo a mim mesmo embora eu saiba que meus perdões a mim mesmo não justifiquem meus atos obscenos que pudera eu possa vir cometer. em criatividades eu, ainda, percebo a vida e a morte. Por que sinto que o leviatã que cá guardei empunhado em mim, enrustido, rasga-me as paredes de carne de meu corpo a fim de sair a se vingar da cidade. eu ando pulsando cada instante para o sucesso de me transformar em mim mesmo, apesar de está consciente quanto a existência dos equívocos em mim. é tão fabuloso ser armário de tanta perspectiva nessa vida que estou sentado entre o bem e o mal me definhando de delícias. Estou pensando em libertá-lo, assim, sem nenhuma corrente, sem nenhuma licença. Sou Ozzi Cãndido, Poeta das marginalidades por que o único meio e centro que me interessa é a minha vida, solitária para que eu possa engenhar a elegante maneira de se poder inventar juntos: o amigo, o amor, o filho, a mãe, ter e ser pai e poder pertencer com fronteiras que pulsam para a liberdade. Moro à quinta avenida, não possuo número à beira de minha porta por que não tenho casa, habitar um corpo me é muito sôfrego e gastante, se tiveres que entrar em mim, será pelo canal livre da alma que se encontra nos meus olhos vermelhos de perspectivas. Meu corpo é minha alma, quando eu me for, senhores, levarei espírito e vísceras comigo desaparecendo em corpo e residência meu eu e persona. Vós só ouvirão falar de mim, rumores. dos que não depositaram sobre minha cova simples e no chão uma rosa como semente que ainda ontem cedo desabrochou em solo cuja reputação comentada por todos aos cochichos era de infértil. Isso logo me leva a pensar nas putas, imagem distorcida da infância que hoje eu aprendi respeitar. meu olho está muito apegado a miséria, é a miséria que dilata minha humildade, que me faz sentir noites frias em tempo quente de verão, é à miséria que quando me debruço rouba-me todas as noites que tive e tenho de insônia imprimindo em meu rosto negras e firmes olheiras. há em mim, meus senhores, uma inquietação, uma vontade, uma indignação de acabar com a miséria que de tanto pensar e me frustrar, de tanto elaborar planos para matar a miséria não me resta tempo para nada. eu salivo quando penso em acabar com a miséria. é por isso que eu vos apelo que se agarrem a mim como flocos de neve que compõe uma terrível avalanche, precisamos meus senhores, sermos cruéis e indignados e terríveis com o mal.
Ontem estive com Gregório, para, como sempre fora, dançarmos a valsa do sagrado feito da amizade cuja nenhuma má vontade, madrasta ou maldade pode erguer-se contra. Relatei a Gregório, como se estivesse diante do juízo final, que das maiores maldições/mal-diçoes está a de ser poeta. Mais que a de ser filho sem pai, mais que a de ser filho sem mãe, mais que a de sentir sede ou fome, ou dormir na rua. a gente passa a sentir fome que comida não sacia e sede que água não abastece. o poeta deveria assumir a presidência da república. só o poeta poderia salvar a humanidade se os homens lhe desse ouvidos. Gregório riu, como quem convidava-me a: ‘amigo, vem comigo tomar um vinho, escrever um texto, limpar o telhado, vasculhar álbuns antigos de fotografias’ para que, assim, pudéssemos validar o excelente hábito do esquecimento e beber da taça da sanidade. éramos plenas andorinhas no gratuito exercício do verão.
às vezes a gente escolhe a loucura para erguer projetos que a força da consciência comum não move. Esquecer é terapêutico. é uma das grandes excelência humana. mas esquecer o mal é que será louvável, a gente faz o contrário. a gente desemboca como cachoeira, em queda d’agua esquecendo-se do bem, de si mesmo no bem e no corpo do bem deixando vir a tona a ponta do iceberg do mal que a tudo congela e descolore. o ‘demônio’ em voz coletiva grita inconsciência. É por isso que, o método excelente, como hábito de esquecer, receito-o no bom senso de que esquecer é manter-se firme, e não autodestrutivo. eu esqueço daquilo que não quero lembrar, e não deixo que a desorganização me defina por tomar essa decisão.
Quando descobrimos a traição seja por que nos disseram que viam e não vieram, seja por que nos prometeram e não cumpriram as promessas que por serem prometidas já é uma traição. nossa rejeição é no corpo, sentimos uma espécie de nojo e nos voltamos contra nós mesmos em imagem corpórea. Nossa persona responsabiliza o corpo por não cumprir com a promessa de desejos satisfeitos. O corpo está sempre traindo a persona, e a persona é a maior verdade em narrativa que contamos sobre nós mesmos, ainda que jamais tenhamos ouvido sobre a semântica persona. É no corpo que começamos, é no corpo que terminamos. Somos um corpo com uma imensa grota pra dentro.
Maria Carolina de Jesus, negra, mulher, pobre, brasileira. descobriu sua persona ainda muito cedo, assim como quando Carlos Drummond narra sobre si que, após ter sido levado ao médico pela mãe devido seus furtos imaginários e febris o médico diagnóstica: “- Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia“. No texto Drummond relata seu olho distorcido ao enxergar um sentido que valida o verdadeiro eu a desembocar para uma grota profunda, pra dentro, onde esse homem se afeta com tudo e todos. O olho do poeta é distorcido. Não adianta ensinar-lhe pela via convencional. receitar-lhe remédios para dormir. O poeta dorme mal por que está sempre a serviço da poesia, o seu corpo. levanta a qualquer momento para escrever. Por que é a poesia a mãe de todos, a mãe que aleita. A poesia é o único Deus que veio me visitar em noites escuras e sem sentido. Fora a poesia, que desde cedo, forrara o tecido de maternidade para que eu pudesse experimentar ser filho. O poeta quer asas, quer ser poeta com direitos humanitário como toda a gente tem direito. O poeta quer casa e comida, quer ser possível a fim de validar seu eu verdadeiro. O poeta sofre preconceitos como qualquer diferente. Também anseia amar e ser amado. ser Poete é a salvação de um corpo. Salve! O Poeta.
Certamente eu concordo com Marie Eschenbach quando ela diz “pouco vale a crítica que acredita julgar uma obra de arte conhecendo às circunstâncias em que ela nasceu” por que o que crítica deve assumir o lugar da obra e do artista que criou e intérprete que a interpreta como tomando pra si duas vezes a dose de maldição, a poesia e o corpo do poeta; o criador e a criação. Quando falamos de Maria Carolina de Jesus estamos dando gargalhadas da mesma. Mulher, negra, pobre, favelada. Não acreditamos em pessoas assim por que fomos treinados – e não foi por Deus – para não compreender. A gente tendência a acreditar no poeta/artista quando esse já tem criado todo o corpo e a entidade em torno de sua obra. A gente não contempla o olho que está guardado entre tantos olhos. Ao voltar-se, como por ajustes do olho, um olho também meramente simbólico e invisível que ninguém o ver mas que ele ver a tudo e a todos, o olho que estava por trás da luz, ou era a luz vermelho-sangue pra lembrar os sacrifícios que erguemos. A gente é apenas olho. Olho farol de um corpo, no pico, perto da boca que chupa, perto do ouvido que captura, perto do nariz que ainda que faltássemos os olhos, seria-nos uma espécie de olho-vice-rei.
A gente sabe tanto que criamos o excelente hábito de esquecer por que a gente cria a forma mais absurda de sermos covardes e falhos: a [des]humanidade. Só alcançamos a transpessoalidade da palavra humano, persona por que somos inteligentes no processo de autopreservação, e por isso esquecemos. a gente ver o outro sendo espancado e corre ao contrário, a gente ver o outro sendo assassinado, e matamos juntos. por que a gente se omite, se retira, se esconde, ergue o antebraço sobre os olhos e segue a cegas, como quem fura os olhos para não ver. engano. quem fura os olhos deve também furar os ouvidos, o nariz e beber um gole de ácido para anular os outros sentidos. nossos olhos são um conjunto inteiro de corpo. por que na ausência de retinas os ouvidos enxergam ainda mais que os olhos propriamente dito. Esquecemos de domar nosso animal irracional. nosso projeto ruiu. a gente se bestificou. A gente confecciona torre altíssima, a gente elege algumas pessoas e a gente veda a porta. não há mais nada para conquistar ou ser conquistado. a gente morreu quando sistematizou a liberdade, a gente falhou quando escolhemos a persona do rei, a gente falhou de maneira imperdoável quando decretamos duas guerras além dos conflitos internos, a gente transmutou o natural em coisas por que sentimos desejos de coisas. a gente descentralizou os olhos de toda a gente e centralizou no poder de manipular toda essa gente. a gente esqueceu de conservar o sonho utópico, febril, de salvarmos o mundo. com um seguro sistema de manipulação seria mais fácil aboiar toda a gente ao invés de ouvi-los. Fomos desmamados muito cedo, por Deus. somos crianças birrentas revoltadas e sanguinárias. ainda somos fetos recém nascidos frustados pela falta do leite das tetas divina. A gente falhou miseravelmente e irreparável quando imprimimos um papel qualquer e a ele atribuímos valor. [a gente não sabia no que ia dar? sabia sim, mas preferimos criar o excelente hábito de esquecer para justificar o forno que, deixado aceso, queimou toda a cidade. começou num barraco, e destruiu o mundo. a gente coisificou a gente e humanizou o símbolo sagrado do dinheiro. a gente é persona do dinheiro. a gente, não presta].
Depois de três dias, tomando mingau ralo e polpa de fruta. depois de três noites sem dormir, gemendo, trêmulo e sôfrego. depois de três tardes de febre terçã, e depois de três manhãs dopado, eis que surge, morno e formidável, o céu. Vi eu, meus senhores, com esses olhos imbecis que tenho, como todo olho, o céu irrompendo de dentro do inferno, maravilhado, transpessoalisado. uma borboleta, parecendo desvairada, posou-me o peito. e ali fez morada. Eu, que naquele exato momento, também desvairado, porém lento e sem forças, chorei a dor da existência e me regenerei, restituindo-me a mim mesmo como patrimônio, corpo de uma persona que atrás de si próprio atingirá a salvação por que não havia, nada, em lugar nenhum, que eu sentisse inveja. então deitei relva sobre minha própria alma: meu Deus, eu estava salvo. Meu Deus! eu, marginal e periférico descobrira, em verdade e matéria, a única via para a felicidade, não desejar nada, não invejar nada, não querer nada. Ser como se é. por que, na verdade, a gente não deseja nada, por que qualquer coisa vai dar em nada. a gente cria para existir, somos salvos pela criatividade. Deus é a criatividade. Carolina de Jesus sabia, tu o sabes, também. Eu, meu Deus, sei também. Lispector sabia, Gregório sabe, Quintana sabia. a gente esquece para viver. a gente guarda bem fundo para não saber o caminho da volta. a gente esconde e esquece e pinta um mapa para encontrar o tesouro. a gente morre procurando.
apenas quando vejo uma flor, e a promessa inútil de uma flor, consigo, resignado de bondade, perdoar a mim mesmo e legitimar-me. Não é pela flor ser, entre tantos, um símbolo, claro. mas é por que a mesma representa o efêmero e fútil feito humano. observem, meus senhores, ali, naquela alameda florida e de borboletas gentis: os homens que correm atrás das borboletas estão vivos na gratuita ignorância da vida ser ela mesma, o que, não sei quanto aos senhores, mas quanto a mim, são os únicos sujeitos ainda vivos. perder-se de encanto, na verdade do que só contemplando se sabe, quieto e indefinido, por outros, o sentido, é a única maneira de lavar, com arruda e manjericão as feridas incuráveis que destrancadas fluem. A borboleta me representa o céu por que me faz, meditar em mim próprio, naquilo que consigo ampliar. O calor do inferno me torna fraco por que é o calor que me distorce a visão.
Se pareço ingênuo diante de um sistema que move o mundo, se estou cuspindo no prato que comi e se, corto, num só golpe a mão que me fora estendida quando eu estava na sarjeta, faço isso por Bitita, somos como ela. crescendo num jardim selvagem. se não falhamos com a humanidade inteira, falhamos, certamente com Maria Carolina de Jesus, Bitita. Falhamos sistematicamente com tantas ‘Carolinas’ e ‘Elisas’ no mundo:
eu, mendigo de rua,
tal qual fora Carolina
eu que possuo olhos que
enxerga Deus
e que debaixo da sombra
da árvore frutífera
posso ver o inferno e o céu erguido
sobre os ombros dos homens
eu que, por causa de meus olhos
forjado por Deus
posso contemplar o mal e o bem
com postura e firmeza analítica
que posso, apesar de imperador,
cultivar o ato desvalorizado de ser jardineiro
comendo restos de comida do lixo
eu, assim como Carolina
que trazia, tábua por tábua,
sobre a cabeça para construir
seu barraco
sem ajuda nem de Deus
nem do diabo
nem de homens
carrego sobre minha
cabeça
as tábuas sôfregas
a fim de construir
meu barraco
na existência.
No entanto, Soraya Silva, mulher, negra, brasileira toma sobre o punho o cavalo negro da persona, tal qual eu, persona de minhas margens, grita no palco e constrange a gente. Refuta a gente. Desnuda a gente. Faz-nos sair trêmulos e com dores na coluna vindo do inorgânico e precipitando-se sobre nosso corpo donde tudo começa, donde tudo termina. A gente sai tateando o escuro. devagar, calma! devagarinho [a gente pode cair]. Com olhos de café, quente. Sustentamos com as unhas, as paredes e saímos, de rosto posto no chão pela tangente a fim de escapulir pelas ruas e desaparecer. Não importa o perigo noturno, lá fora. queremos sair desvairados pelas ruas. não sabemos dirigir. e desaprendemos a mastigar. Por que é nosso, persona humano, os crimes da humanidade inteira. Olhos de café é um inferno na gente. Não se pode assistir em Recife, que é outro inferno na gente, corre-se o risco de congestão e morte súbita com tanto inferno para digerir. É um terço para rezar perdão ao nosso contato desorganizado com a existência. É um canto de desgraça por si só legitimando a glória de um ser humano erguendo-se por sobre o dedo em riste do sistema. Carolina é uma flor que floresceu em campo minado do sistema, no pedregulho. É por isso que as borboletas me lembram o céu, por que elas contemplam o produto do sofrimento de uma existência psíquica em amplitude e vasta graça criativa: a flor. A criatividade é um perdão a si mesmo, uma convocação a continuar, a dialogar com a humanidade. A criatividade nos sarará essa ferida imensa que todos evitam elucidar. Olhos de café quente é uma crítica a ponta de punhais de nós mesmos. Cabe a cada um de nós beber de volta a placenta do nascimento. o sêmen de nosso gozo para ser transformado em quem somos. a gente não sabe o que fazer de si, como de frente a um espelho e distante dessa tarefa amena que é ser-se humano: e varrer o chão, e educar filhos, e lavar a louça, e cozinhar o jantar. O que nos desumanizou tirou-nos o direito ao discurso. Desde que evoluímos para humanos, nós átomos aleatórios, que vivemos a reverter nosso susto mediante a inconsciência da existência. A gente descobre que não sabe existir. Que só queremos nome, máscaras e onde deitar nosso corpo zangado e revoltado pelo desmame. Mas há o instante em que tudo se mitifica, inclusive Ozzi. E irrompe a penumbra da Paz, o nascimento do filho. a barganha da vida. A gente é tão feliz, afinal. Somos até capaz do amor. e cultivamos almas, dentro da gente, no jardim suspenso, no jantar posto, no vinho dividido pela entrega profana da língua na língua bebendo um o sulco do outro.
Se vos falo um punhado de contradições meus senhores, é por que eu trans-pessoal estou cansado e desistindo das peles que lançadas sobre a gente, se agrega. estou raspando a pele que me polui. Só entendo o mundo pelo olho. é a medida do olho que meço. E no fundo, meus senhores, a gente só quer esquecer num copo de uísque. num trago de cigarro. numa xícara de café quente. a gente quer um ombro donde possa chorar com desespero, então a gente inventa esse ombro e com ele é feliz.. A gente quer poder desistir para saber continuar lutando. se minha métrica não serve, está tudo bem, meus senhores, está tudo bem: eu só quero o nexo. Só quero beber o amargo de minhas desgraças com a dignidade que lutarei até o fim de meus anos. O inferno é a única via direta com o paraíso. Levanta-te, já é chegada a hora de vestir a persona. Sou apenas alguém assustado com a existência. que não cabe em si e encontra, na técnica do transbordo a exímia e suprema arte de existir [um dia Carl Rogers me disse que era ‘à experiência que ele recorria como suprema autoridade’. É por isso que, o que vos relato agora, fora uma experiência que Soraya Silva, mulher, negra, brasileira, me contara que Bitita contara a Maria Carolina de Jesus que contara a Elisa Lucinda que Gregório viu em cartaz e me convidou, pessoalmente, a escrever esse texto. tudo aqui relatado, fora atestado. Nada do que vos digo chega a ser macio. É que eu mesmo fiz minha casa nas rochas pontiagudas da poesia. eu nem sei se suporto ser poeta. tanta gente vi morrer desintegrado.
Até breve, meus senhores, até breve, eu preciso, agora, de fato, partir como quem já marcara itinerário com o amor. vos encontro em qualquer olho, em qualquer rua, a qualquer hora. eu, propriamente dito, não existo. sou apenas, no meu corpo inteiro, um olho. Um olho que encontra na suprema experiência aquilo que pode ser, e é: a visão. Eu tenho a visão.
– CÃNDIDO, di Ozzi.
Referências:
– texto poético, de cunho crítico, solicitado por Gregório, sob a sede do Quarta Parede [Jornal artísticoinformativo]. Para compor o texto, foi muito simples, levei em consideração todas as minhas vivências, desde o condicionamento à liberdade, do cárcere ao trono, tais quais, também, aspectos socioculturais, ambientais e de aspectos filosófico e devaneios inventados. O olho é o dom do poeta – emporio das Ideias LTDA. Recife 13 de maio de 2015.