Crítica – Sibila | O mistério das coisas
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Imagens – Dhyego Lima
Por Maria Pepe
Atriz e Graduada em Letras (UFPE)
Quem ou o que é Sibila?
Na Antiguidade, as sibilas eram consideradas mulheres oraculares. Bruxas, feiticeiras, profetisas.
Acredita-se que, ao todo, existiram dez sibilas com dons divinatórios, sendo a mais conhecida Sibila de Cumas, que mais tarde irá inspirar grandes artistas, como Dante Alighieri, Michelangelo, Virgílio, Ovídio, Petrônio e T. S. Eliot. Na noite de quarta-feira, dia 11 de janeiro, tive o prazer de prestigiar, novamente, a inspiração poética que incorporou a atriz Surya Marielle no espetáculo Sibila — O mistério das coisas, realizado no Teatro Santa Isabel.
Digo incorporar de forma literal, pois o monólogo é a representação de um ritual de feitiçaria, onde podemos captar suas delicadezas através do festival de sentidos a serem ativados pelo contato com os quatro elementos: terra, fogo, ar e água, que, mais tarde, irão protagonizar o espetáculo junto com a atriz. E assim parece ser a linguagem de Surya, que, italiana, prefere expor sua poeticidade através das sensações que provoca, desde o cheiro de mirra até o deslumbre auditivo que a trilha sonora causa, nos comovendo em uma dança quase estática, como se um quadro fosse pintado a cada fração de segundo.
É preciso ressaltar a estética do espetáculo: como uma pintura em movimento, os cabelos e figurino moldam-se à cena, agindo e reagindo como, também, personagens coadjuvantes à Sibila. A atriz traja um tecido preto que, inicialmente, surge como uma saia, e mais tarde será metamorfoseado em um vestido, seguindo o ritmo dos movimentos de dança de Sibila, fazendo companhia aos seus longos cabelos, que caem até quase a cintura.
A primeira vez que assisti esse espetáculo foi em sua estreia, ano passado, o teatro Apolo. Achei especialmente simbólico, pois o deus Apolo era o que inspirava as profecias das sibilas. Contudo, assistir novamente no Teatro Santa Isabel é realmente uma experiência única. Não assistimos na formação à italiana, estando todos sentados dentro do palco, junto com a atriz. O jogo de luz criado por Luciana Raposo escolhe metodicamente quais pontos ressaltar e em qual momento destacar o quê.
Em determinada ocasião vemos pequenas lâmpadas piscando diante de Sibila, agregando ao ritual a sensação de estarmos juntos com ela, numa gruta do monte Córico, acompanhadas de vários vagalumes. A mitologia conta que Sibila era imortal; contudo, ao desejar a Apolo a imortalidade, esqueceu-se de pedir, também, a eterna juventude. A feiticeira pegou um punhado de areia em sua mão e pediu ao deus para que vivesse tantos anos quanto haviam de partículas de areia ali. O resultado é que ela pôs-se a envelhecer com o passar dos anos, presa na maldição da interminável vida.
Em dado momento da peça, Surya pega uma porção de terra que derrama, em meio à sua coreografia hipnotizante, ao redor de todo o palco. Tem-se a impressão de estar vivenciando o momento de imortalidade de Sibila, ou apenas ter um pedaço de sua história contada em alegorias que ultrapassam a corporeidade. Utilizo o termo hipnotizante, pois nos sentimos, enquanto plateia, extremamente hipnotizados pela atriz, que, fazendo uso do golpe de máscara, mostra suas raízes italianas e choca o público com um olhar que provoca lágrimas sem sabermos exatamente porquê.
O golpe de máscara é recorrente na commedia dell’Arte, forma de teatro popular surgida no século XV, na Itália. Nessa forma de teatro, máscaras cobrem todo o rosto e a atuação faz-se necessária através do corpo. Como é um teatro de rua, em sua maioria, os movimentos devem ser amplos e largos, para que, sem a configuração de um teatro à italiana, todos possam ver os movimentos das personagens.
O golpe de máscara, então, é uma maneira de ressaltar a máscara, criando uma movimentação característica do rosto, encontrando o olhar do espectador através da imagem enigmática e sedutora de suas máscaras, representando arquétipos sociais. Surya utiliza-se desse artefato para guiar os olhares do público e, também, nos seduzir diante de sua apresentação.
Foi assim que me vi diante da mais recente apresentação de Sibila no Santa Isabel: em dado momento, meus olhos lacrimejaram sem possuir exatamente motivo concreto para tal. O poder dos olhos da atriz juntamente à força de sua coreografia esteticamente bem desenhada nos leva direto à antiga Grécia, e o poder do feminino ganha protagonismo diante de representação tão visceral e delicada. O olhar da direção realizado por Quiercles Santana, mesmo partindo de um homem, constitui uma singular feminilidade. O cuidado com as pausas, olhares e gestos meticulosamente calculados prepara o terreno para as mais potentes interpretações.
A lenda de Sibila de Cumas conta que ela viveu nove vidas humanas de 110 anos cada, chegando, também, a guiar Eneias, príncipe de Tróia, em meio ao Hades, o submundo. Conta-se, também, que existiam os chamados Livros Sibilinos, uma compilação de declarações do oráculo que foram comprados pelo rei romano Tarquínio, o Soberbo. Mais tarde o fogo veio a destruir os livros originais, formando uma nova coleção que também será inutilizada.
No momento final do espetáculo vemos uma referência da personagem ao fogo que destrói e constrói. A atriz, segurando uma vela, repete para que nós não deixemos a chama se extinguir. A metáfora, contudo, pode ser atribuída à arte no período atual, um diálogo entre os tempos antigos e modernos sustenta-se na tentativa de não deixarmos que destruam nossa arte, que não percam-se nossas relíquias. Uma nova inquisição acontece a cada período histórico e nós, artistas, não podemos deixar a chama se extinguir.
Já que, apenas recentemente, voltamos a ter novamente o Ministério da Cultura, que fora extinguido na gestão presidencial anterior. E como esquecer da Cinemateca Brasileira que, com mais de cem anos de história e com o maior acervo de audiovisual da América Latina, foi inteiramente sucumbida pelo fogo, em 2021!? O incêndio, por sua vez, foi consequência de uma política de descaso de um
governo que não prezava pela cultura, que teve o orçamento destinado às artes sucateado, além do esvaziamento dos órgãos responsáveis pela conservação dos espaços e acervos, como a demissão da equipe da Cinemateca.
Sequelas, portanto, de um governante que prezava pela censura de nossas peças teatrais, extinção de nossas leis de incentivo, além de tantas outras formas de aniquilação de nossa cultura. Agora, o Brasil suspira aliviado diante de um novo presidente. Contudo, não podemos deixar de lado nossa busca por manter a chama da Arte acesa, viva, sem relaxar diante de nossos direitos.
Reforço, ainda: é esse fogo que Sibila busca emanar dentro de nós, clamando, em desespero, que não o deixemos se extinguir. E assim o monólogo é concluído, através de uma simbologia expressa entre atos e intervalos, trazendo, em suas fraturas, imagens que abrem espaço para reconstruir a superfície realista de ecos literários e alusões místicas e mágicas de um passado que
constantemente se repete.