#20 Territórios em Trânsito | Não-binariedade em cena: O ixtranho como auto-determinação estética
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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Arevik Bogossian Porto (BA)
Pessoa trans não-binária, instrutora de pole dance e artista marcial. Graduada em Psicologia (UERJ), mestranda em Cultura e Sociedade (UFBA) e integrante do grupo de pesquisa Corpo e Cultura (CNPq)
Por Wendy Moretti (SP/BA)
é artista, diretora e produtora cultural, pessoa trans não-binária formada em Letras (Unesp) e técnica em Teatro (Senac). Graduanda em Dança e Mestranda no PRODAN (UFBA) e integra a Kiki House Casixtranha
Ô me disseram que essa trava ia cair
Ô me disseram que essa trava ia cair
Mas que mentira, as ixtranha cuida dela aqui
(Morada das ixtranhas, Sessão festival tr4v4d4 em casa, 2020)
Introdução: o seio da liberdade
O ano é 2024 e é uma sexta à noite. Correndo em turbilhão contra os prazos dos projetos, Wendy, nossa co autora, me convida para uma macarronada em sua casa. Eu resisto, digo a ela que as páginas que precisamos não se escrevem sozinhas e que já estamos atrasadas. “- Vem”, ela diz, “- A gente toma um vinho, dá risada e escreve juntas”. Quando chego lá e durante toda a noite, falamos do mês de Setembro e dos percalços no caminho, mas também dos trabalhos concretizados e dos planos para o futuro. Wendy, até então uma pessoa trans não-binárie, ri e relembra de quando uma vez, toda montada, postou um story nas redes sociais e foi censurada pela exposição de seus mamilos. “- Quebrou a internet, né, gata?” eu disse, lembrando a ela que mamilos são assunto de grande polêmica[1].
Indianarae Siqueire, ativista trans não-binárie candidate a vereadore pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no Rio de Janeiro, publicou em Outubro de 2015 em suas redes uma foto de um Boletim de Ocorrência, acompanhada de um texto em que expõe a situação que enfrenta com a justiça desde 2013. Considerada de fenótipo feminino pela polícia, mas com reconhecimento legal como homem devido ao seu Registro Geral e Certidão de Nascimento, Indianarae se coloca em um impasse diante da lei devido a um protesto em que expõe os seus seios em público. Desde a primeira vez que o caso repercutiu em 2013, Indianarae segue em liberdade e em protesto, habitando uma brecha na dimensão legal do sistema sexo-gênero.
Se me condenar estará reconhecendo legalmente que socialmente eu sou mulher e o que vale é minha identidade de gênero e não o sexo declarado em meus documentos e isso então criará jurisprudência para todas xs pessoas trans serem respeitadxs pela sua identidade de gênero e não pelo sexo declarado ao nascer. Se reconhecer que sou homem como consta nos documentos estará me dando o direito de caminhar com os seios desnudos em qualquer lugar público onde homens assim o façam, mas também estará dizendo que homens e mulheres não são iguais em direito (…). Libertem-me ou condenem-me. Mas decidam enfim. (SIQUEIRE, 2015. Trecho extraído do perfil no Facebook.)
É evidente que mobilizações políticas como a Marcha das Vadias já problematizavam a questão dos torsos e mamilos para além dos tensionamentos entre pessoas cis e trans, fazendo uso da exposição dos seios para criticar a responsabilização das mulheres cis e a “solução” de encobrimento dos corpos como medida contra as agressões sexuais. Porém, ainda que os exemplos demonstrem uma relação de desigualdade dentro do sistema sexo-gênero que não se restringe à relação de pessoas cis com pessoas trans, os ativismos demonstram de forma explícita a dimensão política transgressora dos nossos corpos.
Para nós comunidade trans, o conflito com a cisgeneridade impõe a necessidade de tentativas precárias e sequeladas[2] de habitar brechas nos espaços acadêmicos, nas leis, no mundo artístico e nas performances sociais. Assim, uma vez identificando, produzindo e habitando essas brechas, como na performance estético-política de um seio desnudo, causamos um curto-circuito no sistema normativo de gênero, potencialmente alargando o espaço para que caibam mais de nós. É o seio da liberdade guiando o povo, como retrata a pintura de Delacroix[3].
Já não choram mais por mim!
De fundo musical, originalmente pensado em Araraquara como espetáculo virtual devido à pandemia de Covid-19 e apenas posteriormente recriado para o formato presencial em Salvador, Já não choram mais por mim! tematiza os problemas da cisgeneridade compulsória a partir da personagem não-binárie Jenny. O edital em que fomos aprovadas era da “Semana Luís Antônio Martinez Corrêa”, uma semana de artes cênicas que acontece na cidade de Araraquara e homenageia o irmão de Zé Celso, que morreu assassinado, vítima de homofobia. No edital, tínhamos que escolher como referências as montagens que Luís Antônio realizou em vida e decidimos por duas obras de Bertolt Brecht: Happy End e A ascensão e queda da cidade de Mahagonny.
Este trabalho pretende, a partir de uma análise do processo criativo e da recepção da versão presencial de Já não choram mais por mim!, afirmar a ‘ixtranheza’ enquanto estética transgressora a partir de três eixos principais: o diálogo com a história da arte e com a comunidade ixtranha; o contexto político e a tensão com as normas de gênero; os elementos autobiográficos da performer e a identificação com o público. Dessa forma, buscamos a partir da performance cênica e apesar da dor, falar também em alegria, em comunidade e em amor.
Minha motivação pessoal para a criação de Já não choram mais por mim! estava em “curar” uma relação em que estive com um homem cishetero, na qual morávamos juntos e ele dizia estar questionando sua sexualidade por minha causa, até o rompimento total dessa relação que aconteceu um ano antes da criação do espetáculo. Em um dos piores momentos da minha vida, eu estava completamente isolada do mundo por conta da pandemia, morando com o homem que eu amava e ele sem falar comigo. No momento em que percebi que tinha que me mudar, um peso saiu dos meus ombros e comecei a chorar; eu estava entrando em processo de cura, mas isso não era o suficiente. Começou a surgir em mim a vontade de gritar e de expor em forma de arte, pois via que não era uma questão só minha, mas uma experiência coletiva que pessoas trans e pessoas dissidentes de gênero e sexualidade passam cotidianamente.
O processo criativo do espetáculo envolveu muitas conversas, leituras de texto e fofocas entre amigas sobre como nos relacionamos com os bofes, de modo que a vontade de falar sobre relações afetivas entre pessoas trans e dissidentes com pessoas cis e ditos heterossexuais veio das nossas experiências compartilhadas. A partir da leitura do texto Dama da Noite de Caio Fernando Abreu – em que uma mulher em seus quarenta anos contrata um jovem michê e descasca o coitado sobre questões da vida amorosa e da sexualidade que ele ainda não entende, invertendo uma relação de poder marcada por gênero – comecei a escrever minha versão Dama da Night, elaborando a narrativa a partir de histórias que vivi e ouvi na relação com a cisgeneridade.
O conceito de cisgeneridade deve ser compreendido aqui não como uma característica identitária de um indivíduo, mas em seu aspecto de norma[4] tal como propõe Vergueiro (2015), que aproxima o conceito da definição de cissexismo levantada por Jesus (2012), o que posteriormente levou à formulação da categoria nativa de cistema[5]. Nesse sentido, não nos interessa investigar se os sujeitos com quem nos relacionamos são heterossexuais ou cisgênero no sentido estrito, mas refletir sobre como a cisgeneridade é relevante como chave analítica para identificarmos elementos em comum nas relações de afeto.
Cissexismo: Ideologia, resultante do binarismo ou dimorfismo sexual, que se fundamenta na crença estereotipada de que características biológicas relacionadas a sexo são correspondentes a características psicossociais relacionadas a gênero. O cissexismo, ao nível institucional, redunda em prejuízos ao direito à auto-expressão de gênero das pessoas, criando mecanismos legais e culturais de subordinação das pessoas cisgênero e transgênero ao gênero que lhes foi atribuído ao nascimento. (JESUS, 2012, p.28)
Azini (2020) caracteriza a relação específica entre homens cis e mulheres trans a partir tanto do eixo da hiperssexualização quanto do limbo afetivo, ambos pautados pelo falocentrismo. A autora descreve o modo pelo qual, incapazes de oferecer aos homens cisheteros com quem se relacionam a confirmação da masculinidade esperada deles enquanto sujeitos sociais, as mulheres trans são relegadas a uma espécie de não-lugar, a partir do qual a cisgeneridade se relaciona através de uma hipocrisia do desejo. Essa concepção seria capaz de explicar a situação das pessoas trans no Brasil e na Bahia a partir tanto dos dados de violência quanto da expressiva busca por pornografia retratando pessoas trans e travestis.
A Bahia é o segundo estado com o maior número de assassinato de pessoas Trans e Travestis em 2021, segundo Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Estamos cansados de ouvir que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e também é a que mais procura esses corpos em sites de pornografia e o fato do ódio e do tesão reprimido andarem lado a lado foi um dos motivos de realizar minha pesquisa na capital Bahiana. Daí surge o desejo de explorar a reverberação do meu trabalho aqui, e a reverberação do território em meu trabalho.
Sabemos, também, que a maior parte da população trans tem como principal fonte de renda a prostituição e apenas 0,3% de toda população universitária federal se identifica enquanto pessoa trans. Por isso, vejo a importância de construir uma carreira acadêmica na escola de dança e abrir fissuras na estrutura do cistema abrindo espaço para que mais pessoas trans estejam ocupando espaços legítimos de igualdade, principalmente espaços das artes, pois esses são os em que mais somos capazes de transbordar aquilo que somos.
Jenny
Se por um lado podemos observar a multiplicação de criações artísticas produzidas por e para as diversidades sexuais e de gênero, a estética binária da cisgeneridade e suas definições rígidas de masculino e feminino seguem sendo uma lente sob a qual nossas produções serão avaliadas. Quando uma personagem entra em cena, quais roupas ela veste e quais adereços ela porta? Como as chaves de leitura ‘masculino’ e ‘feminino’ impactam na recepção do público? Que lugares de enunciação e legitimidade se tornam acessíveis a partir da estética que apresentamos? De que modos nossas experiências pessoais se tornam combustível para a performance artística?
A primeira cena do espetáculo presencial de Já não choram mais por mim! nos introduz à personagem Jenny, a Dama da Night, muito embora já fantasiássemos com ela e com seu perfume de cravo e canela enquanto as portas do teatro ainda estavam fechadas. Levados por uma trilha de pétalas de rosa vermelha, assumimos nossos lugares em frente ao palco, onde uma luz azul iluminava seu corpo inerte, rolando ao som das ondas. Coberta por um longo pano esvoaçante que faz desenhos pelo chão, vestida de corset vermelho com vísceras expostas e botas de salto alto cor de sangue, portando ora um grande leque escarlate, ora chicotes de bondage, ora lutando, ora dançando, a personagem se apresenta como uma cantora da noite e nos prepara para contar a sua história.
Os ensaios de Já não choram mais por mim! aconteciam duas ou três vezes na semana. Sempre muito propositiva, nossa diretora Viccy trazia rituais de invocação de Jenny, que foi o nome escolhido para a personagem após a leitura de A ascensão e queda da cidade de Mahagonny. Correndo em volta de mim com incensos e proferindo palavras de ações, imaginação e movimentos ao som de No Porn e Letrux, fomos invocando a personagem, que hoje acreditamos já existir aqui dentro há muito tempo. Os ensaios aconteciam em um espaço pequeno onde eu dançava muito, quase até a exaustão, quando Viccy me colocava para conversarmos como se fosse em uma entrevista, na qual Jenny era a personagem entrevistada. Durante todo o ensaio era como se eu me vestisse de Jenny e ali estivesse escolhendo sua voz, seus trejeitos, sua roupa, seu olhar…
Durante a gravação do espetáculo virtual em Araraquara conversamos com o dono de um dos karaokês mais famosos da cidade, onde todo mundo vai terminar a noite e loucuras acontecem. É um ambiente que vai gente de todo tipo e de várias idades, um ponto de tráfico de drogas e prostituição, o lugar perfeito para colocar Jenny, como se ela trabalhasse naquele bar, como ela conta nas histórias. Começamos o primeiro dia de gravação com a equipe completa; quando eu terminei a primeira estrofe do primeiro take, o dono do bar nos interrompeu dizendo que não queria a imagem do bar vinculada ao nosso trabalho. Eu, toda montada e bebendo whisky, não acreditava nas palavras que ele proferia. Dizia que não tinha nada contra a homossexualidade, mas que um dia no bar tinham três caras ‘se pegando’ e isso não o agradou. Ele falou tanta besteira que, no fim, quem não queria mais o trabalho vinculado àquele bar era a gente.
Felizmente, Jenny saiu do lixo ao luxo quando Viccy logo ligou para um amigo da família que tem um sítio próximo à cidade e conseguiu com que gravássemos lá no dia seguinte. Era um espaço lindo, com muitas árvores, piscina, quintal, churrasqueira, uma casa grande de dois andares e alguns quartos, toda de madeira e com móveis que ornavam com nosso projeto. Passamos o dia nessa casa, se organizando e preparando-a para a gravação. Gravamos tudo em um dia só e comemoramos à noite com risoto e vinho! EVOÉ!
Sempre tive o desejo de recriar Já não choram mais por mim! para o formato presencial e após anos de Covid-19, já morando em Salvador, reuni toda a equipe de Araraquara e iniciamos as reuniões de forma remota. Entendemos que eu já não era a mesma pessoa de 2021 e que Jenny, também, já não era a mesma9. De início Jenny se trabalha no masculino e no feminino, misturando elementos da moda masculina já que desde o começo pensamos nas questões da não-binariedade e do ixtranho como estética. Agora, só se tratava no feminino; o corset preto se tornou vermelho, cheio de vísceras expostas; o sapato preto virou uma bota de salto alto over the knee cor de sangue. Nesse novo tempo o masculino não me cabia mais, e muito menos a Jenny.
O objetivo central durante os ensaios de Já não choram mais por mim! foi o de aprofundar as interpretações sobre a personagem na finalidade de enriquecer e tornar mais efetivas as ações da cena, explorando o ‘ixtranho’ como possibilidade de linguagem cênica. Nos apropriamos, eu em conjunto com a Casixtranha[6], do termo estranho utilizado de forma pejorativa a corpas[7] dissidentes e reafirmamos a ‘ixtranheza’ que somos. Não nos afirmamos enquanto queer pois a palavra de origem inglesa não se faz entendida no contexto brasileiro. Assumimos antes a ‘bicha ixtranha’, assim como diversas formas em português para abordar o queer: sapatão, travesti, boyceta etc.
Neste trabalho definimos o conceito de ‘ixtranho’ para todo corpo, ação e performance que foge da lógica cisheteronormativa. É justamente essa ixtranheza, capaz de provocar simultaneamente medo e fascínio, recusa e desejo, desestabilizando e transgredindo a ideia binária de gênero, que afirmamos nas personagens enquanto subversão, e que ao mesmo tempo denuncia a relação sigilosa e conservadora que a cisgeneridade estabelece conosco enquanto categorias do abjeto. Não é que não nos desejem. É que seu desejo marca a hipocrisia e a desigualdade das relações que estabelecem conosco.
Ancestralidade ‘ixtranha’
“Dá-se assim desde menina.
na garagem, na cantina
atrás do tanque, no mato”
(HOLLANDA, 1979).
A canção Geni e o Zepelim presente no espetáculo musical Ópera do Malandro, de onde se extrai a letra acima, conta a história da personagem Geni, uma ‘bicha ixtranha’ em sua relação com a cidade, de onde parte seu trecho mais famoso: “joga pedra na Geni!”. Quando criança, ouvia a canção nos rádios dos adultos e levei muito tempo para entender que a personagem Geni era um ser humano. Não entendia como alguém podia ser feita para apanhar, a voz de Chico Buarque marcando para nós gerações após gerações de pedras atiradas contra a travesti pelo coro da cidade[8].
Foi apenas na gravidade da voz de Liniker durante sua performance no Amor e Sexo[9] que a música se fez ouvir em tons de seriedade e tristeza, quando em 2017 Geni de repente se tornou “um poço de bondade”, “rainha dos detentos, das loucas, dos lazarentos”. A performance de Liniker reinterpreta a música através de uma espécie de “traição”, cuja leitura a partir “do lado de lá” configura uma nova relação com a memória e com o destino da personagem Geni. Então quando o coro da cidade começa a se formar pronto para jogar suas pedras, Liniker interrompe a música para aponta o dedo para a platéia. “- Não joga!”, ela grita, provocando um silêncio antes de completar: “O Brasil é o país que mais mata mulheres trans, travestis e homossexuais no mundo. Isso tem que acabar. Basta. Só assim podemos nos redimir”, encerrando sua performance entoando a plenos pulmões “Bendita Geni!”.
A posição marginal que a personagem Geni ocupa na estória apresentada pela canção, sendo explorada sexualmente por toda a cidade, reitera a relação de hiperssexualização e limbo afetivo estabelecida historicamente entre a cisgeneridade e pessoas como ela. Ao produzirmos e sermos produzidos por essas criações, podemos nos perguntar: o que é o amor? Quais corpos têm direito sobre o amor e o afeto? Quais corpos são sexualizados e descartados? Por quais vidas choram e por quais vidas chorarão?
Assim como Já não choram mais por mim! e Geni e o Zepelim, o clássico filme da meia-noite The Rocky Horror Picture Show é uma obra de fundo musical que enreda a audiência em torno de sua personagem icônica. Transsexual e travesti vinda do planeta Transylvania, em The Rocky Horror Picture Show a cientista enlouquecida Frank’n’Further cria em seu castelo um monstro de Frankenstein na forma de um homem forte e musculoso para lhe dar prazer, sendo capaz de prender e controlar os servos em seu castelo graças a uma encenação do sexo conhecida como “dobra temporal”.
Apesar de ter sido duramente criticado no período do seu lançamento, o longa conquistou uma forte comunidade de fãs que começou a se vestir como os personagens e a conversar com a tela durante as sessões de exibição. De fato, a dedicação aos detalhes com que a sinopse do artigo de The Rocky Horror Picture Show foi escrita na Wikipedia parece apontar para uma camada de afeto na escrita, adicionando ao texto da obra elementos não utilizados na versão final de lançamento, contribuindo para uma mística em torno do filme, da personagem e de seu coletivo de ‘ixtranhos’.
Ixtranheza
Existe ampla discussão teórica acumulada sobre como nos países do Ocidente a visualidade do corpo está diretamente relacionada com a hierarquização de sujeitos em diferentes estratos sociais. A afirmação “anatomia é destino”, por exemplo, atribuída a Sigmund Freud (1905) no texto Três ensaios sobre a sexualidade, busca sintetizar o modo pelo qual as formas culturais de perceber as diferenças sexuais impõe aos sujeitos posições sociais totalmente distintas. Thomas Laqueur, por sua vez, em Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud (2001), detalha os aspectos culturais na compreensão da diferença sexual. Em seu argumento, a mudança histórica nos modelos de compreensão da diferença sexual demonstra a inessencialidade das definições de gênero, atribuindo a essas compreensões uma origem histórica e cultural, além de associá-las a formas de controle e subjugação da mulher.
Usando o gênero como ponto de partida para abordar as desigualdades de poder, Butler (2018) ressalta a relação entre a aparência ou a expressão do gênero e a precariedade social, associando determinadas formas de aparecer a posições sociais de maior vulnerabilidade: mais expostas ao dano, à violência e à morte, além de maior esgarçamento de redes afetivas. É de Butler o conceito de vidas passíveis de luto, elaborado a partir do fato de que a perda de determinadas vidas não produzi o sentimento de luto já que elas nunca foram vistas como vidas em primeiro lugar.
Paul B. Preciado (2000) define que os processos de subjetivação e produção de gêneros são constituído no interior de um regime fármaco-pornográfico, sendo definidos tanto pelos aspectos hormonais de base farmacológica quanto pelos aspectos técnico-semióticos incorporados a partir da produção pornográfica. Sua pesquisa, inicialmente voltada para a arquitetura, analisa a construção do corpo e do gênero a partir de conceitos arquitetônicos como enquadramento, colagem, imitação, reconstrução e distribuição espacial, entre outros. Assim, a partir de intervenções e do acoplamento de todo tipo de próteses ao corpo, sejam elas elementos da moda como vestimentas e adereços, sejam do teatro ou da dança como as sínteses de gestualidades, seria possível fabricar um efeito estético de gênero. Preciado expõe o masculino e o feminino como elementos de uma ficção e defende a livre fabricação do gênero para produzir corpos anormais de fora do regime binário.
No entanto, no seio da crítica decolonial que pensa a valorização dos saberes do território sul global, a análise da teoria queer estrangeira não pode validar as conclusões que assume de forma universal, sendo necessário analisar a construção do gênero a partir da realidade brasileira concreta. A partir da leitura de Queer dos Trópicos de Pedro Paulo Gomes Pereira (2012) é possível afirmar a importância dos elementos religiosos na constituição do gênero na realidade brasileira, sobretudo da ritualística do candomblé e da umbanda, a partir de suas tradicionais figuras de pombogira, que se tornam referência de entidades femininas insubmissas para mulheres trans e travestis, mas também de forma mais geral com relação à religiosidade de diversos povos indígenas, que têm nos two-spirits uma figura capaz de fazer a travessia entre os mundos, sejam eles físico e espiritual, mas também masculino e feminino. Nesse sentido é possível falar em incorporação de gênero, associando diretamente a ‘ixtranheza’ a elementos das tradições religiosas originárias, mas à experiência religiosa propriamente dita, na medida em que esta é também capaz de provocar um sentimento avassalador que dialoga com a estética do sublime, simultaneamente atração e horror.
A ‘ixtranheza’ como sensibilidade é vizinha da noção filosófica de diferença, entendida como não-identidade, que integra na experiência estética algo que não poderia ser definido pelas tendências à conciliação ou superação da contradição características da compreensão estética clássica de Kant e Hegel. A exploração de termos que não são simetricamente polares a partir da noção de diferença enfatiza o caráter não-puro do sentir, das experiências insólitas e perturbadoras, vizinhas aos estados alterados de consciência, como transes religiosos e experiências com psicoativos, que encontram no diálogo com a problemática do sublime como sentimento avassalador, de repulsa e de fascínio diante da enormidade do insondável (Perniola, 1998).
O que se enfatiza na estética ‘ixtranha’ não é a dissolução do conflito com a cisgeneridade, mas a sua afirmação a partir da experiência coletiva de inadequação dentro do regime binário. Nesse sentido, masculino e feminino não são pólos complementares em uma equação essencial, mas antes, as intercessões e interpenetrações entre si criam dobras e fissuras por onde as novas formas de vida entram no mundo.
A ‘ixtranheza’ em seus elementos exteriormente identificáveis pode ser metaforizada como uma máscara, oferecendo uma possibilidade de proteção a partir da criação de uma armadura que oculta ou falseia um rosto por detrás. Paradoxalmente, a máscara fixa a representação do rosto em um elemento material rígido, mas que por ser móvel alude também à insuficiência do eu ao sugerir a possibilidade de exploração de outras faces. Como recurso cênico, a máscara é capaz de disfarçar e ampliar o corpo, incorporando nele a sua identidade; vinculada ao uso mágico e sagrado ritualístico, a máscara opera uma conexão transcendente entre o visível e o invisível, como um elemento de passagem entre mundos.
No regime cisgênero não somos consideradas vidas dignas, muitas vezes sendo taxadas de monstras no sentido em que cruzamos a fronteira do aceitável, o que nos leva, umas mais, outras menos, a adotar, em muitas ocasiões, uma máscara. Quando Preciado declama “Eu sou o monstro que vos fala” em uma conferência intitulada A psicanálise e a mulher, ele se refere a nos aglutinarmos em torno da monstrusidade e da abjeção com que nos rotulam para incorporar os atributos de agressividade e do temor como enfrentamento à violência do regime binário. A gestualidade do Kung Fu, performada por Jenny com seu grande leque vermelho, expressa bem a necessidade de produzir um ‘corpo que luta’, fazendo uso dos nossos objetos como armas e ferramentas de combate. De forma semelhante operamos com os elementos de ‘batalha’ presentes no vogue femme, dança de rua tradicionalmente performada por travestis e mulhers trans, que ocupa posição central na composição das cenas dançadas de Já não choram mais por mim!, e que produz o efeito enérgico de conseguirmos nos impor de modo singular.
A apropriação da ‘ixtranheza’ nos torna igualmente capazes de deslumbrar e seduzir quanto de atemorizar e agredir. Através de nossa caracterização somos capazes de atrair o olhar do público para os elementos mais exteriormente visíveis a partir dos quais escolhemos nos mostrar. Nesse sentido, atua como uma inversão de poder entre quem olha e quem é olhado, na medida em que o artista ou performer está revelando aquilo que deseja, enquanto mantém oculta uma outra parte. É esse o mistério capaz de atrair a humanidade para o insondável. Seja através do seu uso mágico ou cênico, é evidente que a ‘ixtranheza enquanto máscara exige preparação, não podendo ser portada por qualquer pessoa (CIDREIRA, 2008).
Amor de comunidade
A conclamação para se unirem todas as pessoas desobedientes de gênero, presente diretamente no texto de Já não choram mais por mim! e presentificada na corpa de Jenny, aponta para uma relação de participação e envolvimento com o público característica das formas mais contemporâneas de artes da cena, influenciadas por aquilo que vêm se constituindo como performance: atuação voltada a produzir estados de presença capazes de tornar visível o invisível, remodelando subjetividades e questionando modelos de poder vigentes (Martins, 2014).
Já não choram mais por mim! foi ao ar como espetáculo virtual em agosto de 2021. Assisti à estreia junto a Viccy em sua casa e uma sensação horrível veio ao fim: não sentimos a vibração do público, aplausos, nada, estava cada um em sua casa e nada podíamos ouvir. Lembro só do comentário da minha mãe no YouTube: “Meu filho lindo!” e nesse momento olhei para Viccy, perguntando “E aí?”. Ficamos sem saber como o espetáculo havia chegado ao público e viemos ter alguns retornos apenas com o passar do tempo, a partir da volta das atividades presenciais após a primeira dose da vacina da Covid-19.
Eventualmente pudemos comemorar toda a reverberação que o espetáculo trouxe para nós e para o público. Algumas reverberações vieram para mim de maneira a repensar as minhas relações e a forma como eu lido com o meu gênero e minha sexualidade, questões que sempre foram presentes em minha vida. A partir do espetáculo e de uma sensação de “acho que me identifico com isso”, minha amiga Viccy fez desabrochar a flor da transição no seu coração a partir da nossa amizade e de todo esse processo, de modo que a potência do trabalho reverbera em mim até os dias de hoje.
Durante toda a recriação do espetáculo virtual para presencial, de Araraquara para Salvador, um processo muito importante foi a ligação com a minha pesquisa no mestrado que é “como a cultura Ballroom pode ser movimento em criação em dança”. Além das movimentações do vogue femme usadas no espetáculo, a Ballroom é um ambiente de resistência das dissidências de gênero e sexualidade, o que faz com que as questões políticas e socioculturais presentes no espetáculo também sejam referência das vivências das pessoas da comunidade. A identidade e a construção de pertencimento são pontos relevantes para nós, já que a dança e a política estão intrínsecas no modo de viver essa arte.
Dessa forma, ainda que a conclamação pela comunidade de desobedientes de gênero esteja ausente no espetáculo enquanto narrativa, o que talvez possa explicar o destino trágico dad personagem; a conclamação se realiza de fato em torno da obra, quando escrevemos e compomos em parcerias, nos conhecendo um pouco e cada vez mais, desenvolvendo nossos processos a partir de um reconhecimento e de uma identificação coletivos, nos ajudando em nossas transições, de cis para trans, de binário para não-binário, do sudeste para o nordeste, do virtual ao presencial.
Neste trabalho buscamos apresentar os modos utilizados por nós para a criação de processos artísticos. Tanto para a elaboração de um espetáculo quanto de um texto, mas também de nossas performances cotidianas, enfatizar o elemento coletivo, a luta pela liberdade e equidade nos convívios com a cisgeneridade é nosso elemento marcante, capaz de compor uma história de ativismo artístico através da conexão com as produções de ‘ixtranhas’ do passado e do futuro. A construção da identidade está totalmente imbricada nesses processos que envolvem, além de reconhecimento coletivo, elementos da espiritualidade e do imaginário social, que são incorporados a partir da mobilização de sensibilidades proporcionadas pela experiência estética.
Referências
Anzini, V. B. (2020). O poder das coisas: corpa, falocentrismo, transgeneridade e arqueologia. Arche: Rev. Disc. Arqueologia, v.1, n.1, Rio Grande.
Butler, J. P. (2018). Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. Tradução: Jamille Pinheiro Dias. Caderno de leituras, n.78, p.3-16. Recuperado AQUI
Cidreira, R. P. (2008). A máscara da moda e as cenas contemporâneas. 2008. Recuperado AQUI
Freud, S. (1979). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), vol. VII. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago.
Hollanda, F. B. (1979). Geni e o Zepelim. Ópera do Malandro. Recuperado AQUI
Jesus, J. G. (2012). Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Guia técnico sobre pessoas transexuais, travestis e demais transgêneros, para formadores de opinião. Recuperado AQUI
Laqueur, T. (2001). Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Relume Dumara. Rio de Janeiro.
Liniker (2017). Geni e o Zepelim. Amor e Sexo. Recuperado AQUI
Martins, T. A. (2014). Diluição das fronteiras entre linguagens artísticas: a performance como (r)evolução dos afetos.
Perniola, M. (1998). A estética e o sentir. In A estética do século XX. Lisboa: Editora Estampa.
Vergueiro, V. (2015). Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise etnográfica da cisgeneridade como normatividade. (Dissertação de mestrado). Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil.
Notas de Rodapé
[1] Referência ao vídeo Mamilos são muito polêmicos publicado em 2011 no YouTube por Bruno Nicoletti, então com doze anos de idade. Devido a repercussão viral, o vídeo passou a ser usado como meme e mais de dez anos depois Bruno foi convidado a dar uma entrevista no Encontro com Fátima Bernardes. O Museu de Memes conta com o vídeo em seu acervo.
[2] Vergueiro escreve em Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade: “Considero esta dissertação, em suas possibilidades e limitações, como uma tentativa precária e sequelada diante dos desafios representados nestas questões, procurando estudar alguns caminhos decoloniais possíveis por entre os diferentes cistemas que normatizam corpos e gêneros, particularmente aqueles situados em intersecções de marginalizações socioculturais, políticas, existenciais” (VERGUEIRO, 2015, p. 15).
[3] A liberdade guiando o povo, pintada em 1830 por Eugène Delacroix, representa a própria liberdade como uma mulher branca com os seios a mostra, guiando o povo com uma baioneta em uma das mãos e com a bandeira tricolor da revolução francesa em outra. A pintura se tornou um marco do romantismo, movimento artístico que buscou valorizar a expressão e a emoção interiores diante dos grandes conflitos sociais.
[4] Paradigma que embasa a distinção entre normal e anormal, por exemplo: os significados culturais para masculino e feminino inferidos a partir do corpo são denominados normas de gênero.
[5] Categoria nativa da comunidade trans para enfatizar o cissexismo que predomina na compreensão do gênero e da diferença sexual, resultando em um sistema baseado em relações de desigualdade e opressão para pessoas inconformes ou desobedientes de gênero.
[6] Casixtranha ou Casa das Ixtranhas é uma kiki house da Cultura Ballroom, fundada por mim e por outras pessoas trans em Araraquara no interior de São Paulo, agora se expandindo para Salvador, Bahia. Coletiva multi-artística de pessoas transgêneras pertencentes à comunidade Ballroom, através dela e com ela compusemos criações que permeiam toda minha trajetória enquanto artista, me tornando potente nos palcos ao lado das minhas irmãs. Começamos nossa trajetória artística juntas e graças a elas escrevo esse artigo.
[7] “Discordância de gênero formal da língua portuguesa colocada propositalmente com a finalidade de desconstruir a linguagem androcêntrica e ressignificar substantivos e adjetivos para o gênero feminino e/ou não-binárie” (ANZINI, 2020, p. 32).
[8] Não é consenso se a personagem Geni da Ópera do Malandro se tratava inicialmente de uma travesti. As interpretações contemporâneas, no entanto, parecem corroborar esse fato. Independente disso, seja ela homossexual, travesti ou transsexual, Geni é uma ancestral ‘ixtranha’.
[9] Programa de auditório inspirado na música homônima de Rita Lee e que esteve no ar de 2009 até 2018, cujo episódio mencionado abordou o tema da diversidade sexual e de gênero, incluindo performances com banda ao vivo e momentos de aula expositiva com a apresentadora.