#20 Territórios em Trânsito | O ACONTECIMENTO ALÉM DO FORMATO E O ACONTECIMENTO COMO FORMATO
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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Tadzio Veiga
Diretor, coreógrafo, performer e pesquisador. Mestrando em Artes Cênicas (UFOP) e Bacharel em Artes Cênicas (UNESP)
As inquietações que aparecem aqui são de salas de ensaio, de salas de oficina e residência artística, de salas de filosofia, de apresentações teóricas, de experimentos cênicos. São inquietações de quem dança, de quem assiste a dança… inquietações que não devem se converter em sugestões. Por isso, não trago “apresentação de proposta” ou “elaboração de projeto” para as inquietações. São coisas mais soltas e mais bagunçadas. O risco que se assume por aqui é o de recair nas inquietações, uma vez que é uma escrita que não encontra sua capacidade afirmativa na apreensão das coisas que apresenta, mas por algum outro efeito que podemos ter com elas, e que precisamente não devo sistematizar (não seria possível fazer isso, na verdade). Poderia sugerir a palavra “incentivar” (não me perguntem o que), mas ela parece horrorosa pelo seu teor produtivo que não convém às preocupações deste texto. E, falando do texto em si, preciso dizer que não tem me parecido ser possível pesquisar sobre o nosso acontecimento sem que a escrita também se torne agitada. Talvez deva agradecer a Antonin Artaud por isso, pelas explosões que são seus textos, sobretudo os últimos, os que estão próximos de sua morte. Ele reconheceu, simultaneamente, a força do que gostaria de propor e a sua impossibilidade de alcançar essa força. Me parece que há uma beleza nisso.
Eu não lhes mostrarei esta noite o que demandaria muitas horas de exercícios progressivos a fim de começar a transparecer / aliás para isso é preciso ar e espaço. / é preciso sobretudo uma aparelhagem que eu não possuo. (Artaud apud Virmaux, 2009, p. 324)
Afinal, “teria sido preciso que eu cagasse sangue pelo umbigo para chegar àquilo que eu quero” (Artaud apud Virmaux, 2009, p. 325). Artaud passa, nesse texto e em outros de seus últimos anos de vida, a atuar como uma espécie de profeta de um teatro e de um corpo vitalistas que ele próprio não obteve e não poderá obter. O nosso acontecimento, algo que tem simultaneamente fragilizado e fortalecido minhas criações, me parece estar intimamente envolvido com isso. Não me parece que Artaud “não conseguiu chegar lá”, mas que chegar lá é precisamente não chegar, pois talvez a própria ideia de chegar em algum lugar não está na mesma frequência do acontecimento em si.
O acontecimento além do formato
Embora não seja o foco deste texto, podemos primeiramente reconhecer que a defesa do acontecimento no teatro como dado do que lhe é próprio é recorrente nos textos dos encenadores e atores dos mais variados teatros que surgem desde o século passado.
Poderíamos nos aproximar de grandes nomes como Jerzy Grotowski ou ainda de Tadeusz Kantor para expor o modo como eles buscaram encontrar o acontecimento que é próprio ao teatro[1], mas nós não faremos isso aqui. Ao invés de, por exemplo, buscar no training de Grotowski uma sistematização do corpo que acontece e procurar modos de reprodução ou reapropriação dessa corporeidade, proponho uma observação dos acontecimentos de corpo[2] de quem já está em cena e talvez já não se interesse pelo training.
Ainda assim, parece necessário fazer alguma colocação, ainda que somente estratégica, do que é o acontecimento por aqui, o que estou chamando de acontecimento de corpo. Ao que me parece os acontecimentos estão sempre aí, em uma aparição que está sempre para dar as caras, uma expressão que está sempre para ser expressa. Desta forma, vamos considerar que o acontecimento está em uma camada ainda não atingida ou percebida, mas tão real quanto qualquer outra unidade de nosso cotidiano, e que talvez tenhamos meios para desvendar o acontecimento, fazê-lo surgir, transparecê-lo, ou potencializá-lo[3]. Isso não significará, preciso dizer, que o acontecimento de corpo é o privilégio das mais sofisticadas subjetividades mutantes, dos maiores ostentadores de devires ou dos mais plenos corpos sem órgãos. Ao contrário, os movimentos que tenho encontrado na dança, no teatro e na bibliografia apontam a força da banalidade, que se mostra presente nas rachaduras do cotidiano. De qualquer forma, ainda que lidando com a realidade que estamos diante de nossos olhos, algum trabalho deverá acontecer.
Cassiano Quilici, autor de uma pesquisa singular sobre Antonin Artaud, tem duas colocações que não me canso de utilizar. São de publicações diferentes, com mais de uma década de diferença entre elas, e ainda assim me parece que elas conversam muito bem. Sobre este corpo que Artaud profetizou,
O acesso a ele se dá por outras vias, diríamos por uma faculdade de ‘sentir’ que foi exercitada e refinada. Pois não basta fechar os olhos para que sensações e imagens como estas brotem espontaneamente. (Quilici, 2004, p. 197)
Ao mesmo tempo, não há na sua obra uma exposição sistemática de métodos e exercícios desta ‘ocupação consigo mesmo’. […] Trata-se de um exercício constante de autoinvestigação, em que estados físicos e psíquicos muito sutis são escrutinizados com incrível minúcia. (Quilici, 2015, p. 103)
Estes “estados singulares de percepção” que Quilici fala são de grande importância para entendermos que houve um momento em que Artaud desloca o lugar do teatro. Se nos primeiros escritos ele se utilizava de diversas metáforas para especificar o teatro que deveria ser feito (se utilizar da peste, por exemplo), nos últimos escritos o próprio teatro se torna metáfora para o corpo, ou, se quisermos atribuir uma maior literalidade ao que Artaud nos diz, consideraremos que o corpo é o lugar onde este teatro é alcançado.
De um teatro que deve acontecer à vitalidade que se apoia na lógica do teatro como acontecimento para ser alcançada. Aliás, o próprio Artaud já dizia que existem forças de outros âmbitos que poderiam alimentar o teatro adoecido. A força das festas, das manifestações culturais, de rituais… Artaud propõe o teatro como uma antena dessas forças todas, e é aí que a “verdadeira cultura” encontra e contribui para o ressurgimento do “verdadeiro teatro”. Talvez não fosse uma metáfora o uso da peste por ele, pois quando o assunto é essa força, essa “fúria”, analogias parecem insuficientes, uma vez que ele está tratando de vibrações, de intensidades. É um modo outro de conceber as intensidades, de considerá-las materiais, e em alguma medida, palpáveis.
Logo, o que pode ser considerado “acontecimento” parece estar presente não só no teatro (o que desbancaria a especificidade do teatro como a arte do acontecimento), mas também na dança, na performance, nas manifestações culturais. E isso em dois modos, com duas formas de aparição: um primeiro que dirá respeito a cada um desses variados eventos que já teriam o acontecimento e que poderiam servir de gatilho para o teatro; e um segundo em que o acontecimento, por não ser um norteador somente do teatro, poderá ser fabricado em outros espaços, poderá ser buscado em outros formatos onde não “já haveria” o acontecimento, ou seja, onde ocorreu algum corte semelhante ao teatro canceroso que Artaud tanto ataca (poderíamos fabular sobre um “A Dança e Seu Duplo”).
O acontecimento, ou seja, a vitalidade
Pode parecer um problema para alguns e até uma forma de desqualificar Artaud como um propositor do teatro, o fato de sua não-sistematização de práticas para a execução do teatro que almejara. Temos registros de cadernos de direção, dramaturgias com apontamentos de encenação, citações de uma ou outra prática envolvida nessas forças todas, mas de fato não temos um “método Artaud”.
Particularmente, em minhas experiências como diretor e preparador corporal, tenho pensado que essa não-sistematização de Artaud contém uma complexidade interessantíssima. Me parece perfeitamente adequado que tenha sido assim, que Artaud tenha se empenhado em descrever as qualidades desses acontecimentos todos, ao invés de nos guiar ao encontro deles. Parece contraditório, sim, dizer isso tendo em vista a literalidade de preparar um corpo, de se empenhar em encaixar num tempo de ensaio a produção de forças do corpo…
No ano de 2023, estava em um congresso de artes cênicas apresentando minha pesquisa, ainda incipiente, de mestrado, quando fiz a seguinte pergunta, que funcionava na época como norteadora de boa parte dos meus questionamentos: “algo verdadeiramente nos acontece?” Curiosamente minha pergunta estava fadada ao fracasso, sobretudo porque não era a pergunta certa, não era a pergunta que realmente manifestava minha inquietação. Digo fracasso porque as respostas viriam e vieram com facilidade: “mas não acontece o tempo todo?”, “quando não acontece?”, “acho que você deve buscar tal referência, ali acontecia mesmo!”.
Minha pergunta nos levava a considerar o acontecimento como inato ou como um evento o qual alguns teriam o privilégio de alcançar. Mas não seria tão simples assim, ao menos não imediatamente. Faço mais um desvio, dessa vez com Gilles Deleuze e Félix Guattari, que pesam em minhas mochilas de viagens e se amontoam em volta de onde eu durmo, para dizer que o acontecimento na verdade está potencialmente acontecendo, ele está em vias de emergir, reaparecer (pois teremos que considerar que o nosso acontecimento foi raptado).
Embora tenha sido Artaud que deu nome ao corpo sem órgãos, na emissão de 1947, é com D&G[4] que a ideia se torna um conceito-prática. Digo conceito, mas poderia me corrigir: “Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas” (Deleuze, Guattari, 2012, p.12), “isto não é um fantasma, é um programa” (ibidem, p.14). Ainda que o corpo sem órgãos seja uma prática (infinitas e singulares práticas), uma programação (infinitas e singulares programações), precisamos reconhecer que as pessoas encontram o corpo sem órgãos em D&G como um termo que tem uma operação conceitual, um desenvolvimento teórico.
De qualquer forma, fato é que a provocação contida na escrita deles é que o corpo sem órgãos está para ser criado e restituído, de modo que o texto em si serve para contribuir com esse reencontro da vitalidade. Na perspectiva de D&G, que segue a esteira de Artaud, mas no campo da filosofia e da clínica, os conjuntos molares (também chamados de fascistas) sedimentam repetidamente os meios de produção do corpo, definindo trajetos produtivos ao desejo e aos órgãos[5]. Tendo em vista essa grande ordenação das pequenas especificidades do corpo, D&G propõem um modo de interromper esse automatismo produtivo, ainda que momentaneamente. Seria necessária a realização de uma criação tão intensiva a ponto de romper com esse caráter produtivo.
Mas, da mesma forma que não temos um método Artaud, não teremos um método D&G. E por aqui ao menos o motivo fica mais evidente.
Para cada tipo de CsO [corpo sem órgãos] devemos perguntar: 1) Que tipo é este, como ele é fabricado, por que procedimentos e meios que prenunciam já o que vai acontecer; 2) e quais são estes modos, o que acontece, com que variantes, com que surpresas, com que coisas inesperadas em relação à expectativa? (Deleuze, Guattari, 2012, p. 15)
Se a singularidade é a matéria da programação do corpo sem órgãos, a singularização é sua metodologia. E como sistematizaríamos a singularização? Como sistematizar a busca pela vitalidade, se a vitalidade terá como dados, tendo em vista Artaud, D&G, a singuladade e a singularização[6]? E iremos mais longe: o que a leitura e compreensão da importância da singularização terá de contribuição para os próprios procedimentos de singularização?
É este o sentido último da vitalidade que posso colocar por aqui. Não se trata de colocar a vida na cena. Não falaremos da vida como um ready made que é justaposto no teatro, como se o espaço teatral estivesse, talvez por sua virtuosidade, descontextualizado da própria vida. Não se trata de justapor o que é da vida, essa externa ao teatro, para dentro do espaço cênico e desta forma obter a vida no teatro. Essa coisa da vitalidade deve ser entendida como produção de intensidades, e o teatro (assim como a dança, a manifestação cultural e outras potenciais aparições) pode ser o espaço onde essas intensidades ocorrem. Ainda assim, questionarei em algum momento essa consciência toda, dos acontecimentos, dos conceitos, dos termos: qual a importância de saber se algo verdadeiramente nos acontece? Há alguma potencialização proporcionada por um movimento de obsolescência da compreensão dos modos de acontecer?
A artista da dança e da performance Pedro Galiza traz uma banalidade-banalização que muito me interessa para enfrentar esses problemas todos, se utilizando, inclusive, de uma certa centralidade do acontecimento e suas operações em uma única pessoa – a performer em cena – e seu compartilhamento com outras pessoas – espectadores da obra.
O acontecimento como formato
Fui assistir ao novo solo da artista Pedro Galiza[7] no mês de abril, no espaço cultural Centro da Terra. O trabalho dela levava o título de Existe algo que nos acontece agora, e era uma obra de dança, exercida pelo movimento e precisamente pela ausência dele. Fui assistir o solo duas vezes, em dias seguidos, nos dias 25 e 26, para entender qual o lugar (ou não-lugar) da repetição nesta dança de Galiza.
É importante dizer que Galiza opera a cena como coreógrafa e intérprete, mas também como operadora de luz e de som, e, além disso, brinca com diversas convenções do teatro e da dança. A própria convenção do que é um espetáculo de dança que lida com os acontecimentos de corpo, presentificações singulares e alterações está ali integrando as operações e movimentos de Galiza, e isso me lembra Uno Kuniichi[8] falando de Hijikata Tatsumi, sobre a sua zombaria com a dança:
Tudo o que é expresso, mesmo com delicadeza e sinceridade, pode trair aquilo que deveria ser expresso ao torná-lo explícito, externalizado. Hijikata procurava algo que transbordasse a dança através da dança. Essa alguma coisa ultrapassa a dança, mas também zomba dessa ultrapassagem. A dança é experimentada para questionar essa alguma coisa, esse gesto de ultrapassagem. (Uno, 2018, p. 74)
Essa espécie de tiração com a expectativa do acontecimento me parece de uma força monstruosa, e remonta ironicamente ao título do trabalho de Galiza. Ora, se algo nos já está nos acontecendo agora, e agora… e agora, qual seria o sentido de produzir acontecimentos? Ou ainda de delimitar uma obra em meio a essa infinidade de acontecimentos em que estamos envolvidos?
Para exercitar o nosso pensamento (e o nosso acontecimento), me propus ao trabalho de escrever esse pedaço do texto também em conversa com Galiza. Realizei uma entrevista com a artista[9], e fiz perguntas amplas sobre as relações dela com as coisas envolvidas no acontecimento. Eu definitivamente precisava perguntar para Galiza se algo verdadeiramente nos acontece.
Galiza nos dirá que “nós estamos acontecendo o tempo inteiro… e as vezes ficar em silêncio… as vezes… apenas você se atentar ao fluxo de coisas… é acontecimento” e apresenta sua noção pessoal, mas também de movimento e de performance, de acontecimento como sendo “um estado de percepção de tudo que nos ocorre simultaneamente”. E faz um apontamento do tamanho que isso poderá ter: “[até mesmo] a minha dúvida é um acontecimento”.
E lembremos… Artaud não sistematizou o acontecimento e a obtenção da tal vitalidade expressa num corpo sem órgãos. Galiza, por sua vez, quando perguntada pelos seus modos de acontecer, ou melhor, sobre qual a sua participação nos acontecimentos, disse: “me coloco em condições e situações, é… às vezes não para fazer acontecer algo, mas para aguçar os meus sentidos e conseguir me correlacionar com o que está acontecendo.”
A potente banalidade em considerarmos que algo sempre está acontecendo encontra na garrafa de velho barreiro uma boa correspondência – a dançarina passeia com a garrafa, oferece ao público, a torna cenografia (uma espécie de totem de seu ritual). O espaço cênico é esburacado e nos buracos vemos a pesquisa de Galiza em algum boteco do centro da cidade, onde, inclusive, realizamos a entrevista. Em outro momento da entrevista, Galiza dirá que o acontecimento é “espontâneo, instantâneo e brutal” e que “tem um lugar da brutalidade porque a realidade está sempre na nossa cara”.
Mas há um deslocamento que me parece importante de fazer. Talvez eu esteja aqui tentando discutir o acontecimento e as formalizações teóricas e praticadas em decorrência de certas concepções dele, e, ainda que isso esteja presente no trabalho de Galiza e possa se tornar aliado dela, gostaria de supor que o que o solo de Galiza se manifesta também pelo tal “agora” presente no título do solo. Encontrando o agora, reencontraríamos o acontecimento (em alguns casos seria o contrário?). E, no exercício de Galiza de lidar e tocar no agora, ela se dispõe de algumas unidades de composição. Retornarei então ao que me motivou assistir o trabalho dois dias seguidos.
“[…] e não tem como capturar o agora, o acontecimento… a gente pode interpretar ele né, de algumas formas, mas aí ele já não é mais o acontecimento, ele é só uma interpretação… daquilo que já, daquilo que você já viveu… eu acho que não é possível capturar o que está acontecendo, não é possível capturar o acontecimento.” (GALIZA, em entrevista, 2024)
Galiza tem algumas peças para improvisar: ligar e desligar as luzes do palco e as de serviço, os copinhos de café que servem para bebermos cachaça, a garrafa de cachaça, a dança que remonta ao butô mas também a algo intencionalmente desprovido de erudição, os sussurros para o público, soliloquia, a ocupação do espaço teatral, o tempo do solo e de cada uma das coisas agora citadas. Ela parece se utilizar de todas essas peças para improvisar este específico e banal “agora”, produzi-lo ou se sensibilizar com ele. Ainda que ela não considere coreógrafa, como me disse em entrevista, me parece essa uma forma de produzir coreografia, já com uma ideia outra do que é coreografar.
“[…] eu tenho um hábito de apenas, de ao invés de me incomodar com algo que vem, ou que me assusta, ou com algum barulho, eu tenho uma forma de tentar deixar isso vir e fazer com que isso vire meu corpo de alguma forma, sabe? Como você incorpora isso? Como você responde a isso? Às vezes é fazendo nada…” (GALIZA, em entrevista, 2024)
“Todo mundo está em estado de acontecimento. Acho que o que eu faço, ou a forma como eu entendo isso, e as experiência que eu tive com isso… existe um deslocamento de entendimento do acontecimento assim, sabe? Uma coisa é você estar vivendo assim num fluxo automático e outra coisa é você se sensibilizar pelo que está acontecendo.” (GALIZA, em entrevista, 2024)
A aparição do acontecimento pode ser um motor dramatúrgico, coreográfico ou programático. Evidentemente que montando Hamlet algo pode te acontecer, ou que um bailarino em Gisele pode experienciar a singularização que Artaud tanto desejou… mas talvez seja possível pensarmos em formatos em que o acontecimento não é mera coincidência ou acidente da obra, ou que, ainda intencional, ser somente uma das muitas partes que integra o espetáculo (objetivo final, o produto artístico endereçado). Talvez seja possível compreender que a busca pelo acontecimento pode ser fundante para alguma obra, ou melhor, que algumas obras poderão essencialmente se desenvolver como sendo a busca pelo acontecimento, nas suas mais variadas formas. E as mais variadas formas podem ser o que de interessante teremos em buscar esses acontecimentos todos.
Assistir o solo de Galiza me fez pensar sobre meu solo, que teve estreia no ano de 2023[10] e trata sobre uma espécie de impraticabilidade do corpo sem órgãos que pode alastrar quem o compreende. Após assistir Galiza escrevi algumas coisas no meu caderno. A obra dela me levou a pensar sobre a solidão de um solo, mas também sobre essa espécie de espera ativa que a performer preocupada com o acontecimento deve ter, e depois de entrevistá-la entendi muito melhor do que se trata. São coisas que já procurava mexer com meu solo, e não tinha me dado conta que estavam envolvidas com a ideia de dançar sem ninguém dançando junto.
Nós criamos o jogo? Nós o operamos? Nós nos apropriamos, a cada segundo, de nossas permanências neste espaço? Há uma espécie de secura que a dança de Galiza apresenta que me interessa. Uma secura que contém o cheiro da cachaça. É a solidão, a esquizofrenia, é uma busca rigorosa por um reencontro a partir de vias esquisitas. Se tornar receptáculo e operador do acontecimento é uma responsabilidade razoável. É então que passa a me interessar, mais recentemente, alguma irresponsabilidade com essas operações e os nossos acontecimentos.
A relatividade do acontecimento como formato
Eu quero que o corpo sem órgãos se foda. Demorei muito para perceber isso. Não digo isso em ato de rebeldia, mas na verdade como a manifestação mais bela que pude ter, nos últimos tempos e sinceramente, com ele. O pouco caso, a destituição conceitual. Tudo isso parece ser incompreendê-lo e desistir de em algum dia compreendê-lo, mas é precisamente uma oportunidade de ampliar sua experimentação (nossa experimentação). É justamente por isso que é importante desrespeitar a apreensão conceitual, filosófica, clínica do corpo sem órgãos. Por aqui podemos supor que mais importante que respeitar o termo, é colocá-lo na relatividade que lhe é própria, que lhe deu a oportunidade de coexistir com seu próprio limite terminológico[11].
Se algo sempre vai acontecer, se algo sempre está acontecendo[12], pouco importaria termos assertividade com quando ou onde está acontecendo… Esse é o momento em que o estudante desinteressado passa na frente daquele que tem todas as informações e especificidades na ponta da língua. Pensemos na seguinte cena hipotética, que contém um absurdo curricular: em uma sala de aula, estudantes estão assistindo a uma aula de corpo sem órgãos contra sua vontade (supondo que faz parte da grade do curso regular do ensino médio, por exemplo), e alguns desses estudantes estão engajados e tomando notas da apresentação do professor, e outros estão fazendo aviãozinho, se cutucando, debochando da aula, inventando variadas formas de se expressarem em meio à chatice que se apresenta ali.
Estes estudantes desinteressados, não-engajados, não são e nunca seriam aqueles que foram por livre e espontânea vontade compreender o corpo sem órgãos e reencontrar seus desejos povoados pela saúde mais singularizante possível, em algum ciclo de aulas que só pode ser acessado pelo pagamento de um valor que normalmente só estudantes não-bolsistas de grandes universidades particulares poderiam pagar[13].
Já o salto que um estudante descompromissado, na cena que estou inventando, pode realizar é precisamente o de não se preocupar com o acontecimento que estaria sendo elaborado. Ele pula a etapa da compreensão e da apreensão. Essa etapa (ou essas etapas) que ele não vivencia talvez deem a ele a oportunidade de experienciar algo, mesmo que ele não esteja intelectualmente apropriado dessa experiência e que não tenha consciência terminológica disso. Isso pode ser mais que suficiente. Afinal, que importância é essa de compreender racionalmente que existem modos de operação do corpo que farão com que ele fabrique, por meio de si próprio, uma singularização que desmonta, ainda que momentaneamente, a estruturação produtiva de seus órgãos, emissões, gestos, fluídos, humores?
Talvez nas frestas desse niilismo verticalizante estejam as chances de restituir uma ou outra força… mas dizer isto já é um problema, talvez eu já esteja contribuindo para algum fracasso por dizer. Mesmo assim, é em relação a essa figura, desse estudante, que é o não-engajado e o desinteressado, que busquei criar alguma presença no trabalho “Para todos os órgãos que por vezes ‘eu’ não tenho”. No solo em questão aparecem esboços de toda essa questão que coloco aqui e que pretendo aprofundar com o Teatro da Matilha[14] e me redirecionar com o Teatro Gregarista[15].
E não quero que pareça que estou me interessando por algum tipo de superação da filosofia deleuzoguattariana e sua matriz conceitual. Na verdade, preciso dizer que eu acho que Deleuze poderia ser um bom observador desses estudantes desinteressados. Me parece que, se ele fosse o professor dessa turma, ele não procuraria corrigir essas desobediências… ainda que a desobediência fosse ao corpo sem órgãos ou, principalmente, ao modo como acaba se formalizando a concepção do corpo sem órgãos enquanto um termo apreendido. Deleuze disse uma vez:
Essa outra leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É do tipo ligação elétrica. Corpo sem órgãos, conheço gente sem cultura que compreendeu imediatamente, graças a seus próprios ‘hábitos’, graças à sua maneira de se fazer um. (Deleuze, 2013 p. 17)
Deleuze talvez não soubesse fazer um aviãozinho de papel que voasse. Pode parecer uma tarefa simples, mas dobrar o papel para que ele tenha, simultaneamente, uma aparência de avião e alguma aerodinâmica, talvez não seja uma tarefa simples para o filósofo envolvido com os processos de singularização. O estudante desinteressado não vai decorar qual é procedimento do masoquista, não vai saber dizer quais as duas fases distintas e simultâneas de criação de um CsO e muito menos vai fazer uma boa redação sobre a prudência. Mas o que ele vai fazer são aviõezinhos de papel que voam.
E o que, então, propor a mim mesmo em meu solo, à Matilha ou aos meninos gregaristas, tendo em vista esse problema da apreensão dos termos e a atual suposição de que existem potências precisamente onde algo não foi apreendido? Trata-se de uma ruptura com a elucubração conceitual nos espaços da cena e da dança?
Novamente tudo está perdido, e dessa vez não por Deus que nos julgou e nossos duplos que automatizaram seu julgamento, mas por nossos triplos que vem acreditando que o acontecimento pode ser comportado por nossas racionalidades bem-intencionadas. Talvez já tenhamos perdido a oportunidade de obter algum acontecimento, uma vez que compreendemos e apreendemos o que nos acontece (aparentemente). A força do não-apreendido e do não-compreendido não sofre pelo que nos é atribuído terminologicamente.
Em meio ao desastre da apreensão, só consigo pensar nisto: nada nos acontece. Mais do que pessimismo, uma oportunidade.
Referências
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução de Teixeira Coelho. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. Para acabar com o juízo de Deus. Organizado por Alex Galeno. Tradução de Olivier Dravet Xavier. Belo Horizonte: Moinhos, 2020.
DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Tradução de Peter Pál Pelbart. 3ª edição. São Paulo: Editora 34, 2013.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2011.
______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 1. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2011.
______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2012.
QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud: teatro e ritual. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004.
______. O ator-performer e as poéticas das transformações de si. São Paulo: Annablume, 2015.
UNO, Kuniichi. Hijikata Tatsumi: pensar um corpo esgotado. Traduzido por Christine Greiner e Ernesto Filho. São Paulo: n-1 edições, 2018.
VIRMAUX, Alain. Artaud e o teatro. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes Moura. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2009.
Notas de Rodapé
[1] Por vezes me perco nas leituras dos poemas de Kantor. Me perco porque na verdade encontro Artaud, porque vejo que mesmo partindo de modos de operação diferentes, a ânsia dos dois se expressa com uma intensa certeza, uma crise irreversível. Me perco e preciso lembrar que estou lendo Kantor, e não Artaud, de quem me considero mais próximo.
[2] Tenho procurado, nos últimos tempos, me utilizar do termo “acontecimentos de corpo” como guarda-chuva para tudo o que é alteração, transformação, ampliação, exaustão, fabricação de corpo sem órgãos, desconstrução da anatomia etc. Me parece uma forma de não estimular a universalização de um termo em detrimento de outros.
[3] Trato alguns termos como sinônimos porque me parece favorecer nosso trabalho por aqui.
[4] Me utilizo da abreviatura “D&G” para citar Gilles Deleuze e Félix Guattari, mas também para citar a literatura produzida por ambos em cooperação.
[5] Acho importante que seja colocado que o desejo não é aniquilado ou obstruído por completo. Não cairemos na fábula de que um desejo essencial e puro é apagado, mas que o desejo, esse combustível da força e expressão da potência, é cortado e atribuído a determinados fins. O biopoder e seus automatismos não somem com o desejo, eles o determinam, inclusive o inflando algum segmento, caso seja pertinente para a produtividade.
[6] Digo singularidade e singularização, nunca individualidade e individuação.
[7] Pedro Galiza é artista transmídia autodidata residente em São Paulo, e em conexão à diversas redes de artistas do Brasil e no exterior. Sua pesquisa artística se dá no corpo em expansão, e em constante transmutação, através de mídias e ambientes plurais. Entre suas colaborações destacam-se trabalhos com Keyzetta e Cia, Núcleo Artístico Vera Sala, Núcleo Entre_Tanto e Mirella Brandi x Muep Etmo. Além das obras autorais “ACIDENTES” (2015-2021), “COIOTE CEGO” (2017-2021), “DO FILHO NOTURNO AOS PAIS DESCONHECIDOS” (2018), “DE VOLTA AO COMEÇO” (2023) e “EXISTE ALGO QUE NOS ACONTECE AGORA” (2024). Como artista musical, Pedro explora a cena da música eletrônica brasileira, colaborando com DJs e artistas.
[8] As citações de autores japoneses seguirão o modo como eles são citados nos textos japoneses, isto é, com o sobrenome à frente do nome.
[9] A entrevista foi realizada no dia 31 de outubro de 2024, e será trabalhada para que possa ser acessada na íntegra, seja por áudio gravado ou em formato de texto.
[10] “Para todos os órgãos que por vezes ‘eu’ não tenho” é o primeiro trabalho solo do presente pesquisador, tendo estreia em 2023 na cidade de Ouro Preto e tendo sido apresentado em Belo Horizonte e Rio Branco.
[11] São muitas as vezes em que, lendo D&G, somos provocados a não atribuir, aos termos que eles mesmos trazem, um caráter universal ao que está sendo tratado. Ainda assim, o corpo sem órgãos parece ser, além de uma prática, uma espécie de “massa pré-individual” de tudo o que foi individuado (segmentado), um estágio “anterior” às delimitações. Neste sentido, tudo terá o seu corpo sem órgãos, tudo já foi corpo sem órgãos e poderia voltar a ser. Daí o paradoxo de, numa filosofia de enfrentamento às totalizações, se forjar e reproduzir um termo que abranja todas as singularizações.
[12] Gilles Deleuze e Félix Guattari dizem, nas primeiras páginas do platô do corpo sem órgãos: “Algo vai acontecer. Algo já acontece.” Acredito que tenha sido para encorajar que criemos nossos corpos sem órgãos, uma vez que potencialmente eles já estão aqui.
[13] Me intriga a territorialidade que os estudos de e a partir de D&G tem se encontrado. Por um lado, a crítica às instituições feita pelos autores talvez não lhes confiram grandes aberturas institucionais (e isso poderia nos levar a acreditar numa filosofia de guerrilha, por exemplo), e por outro, cursos extremamente distantes da realidade da população brasileira (inclusive da pequena camada intelectualizada e especializada, sobretudo a partir das diversas políticas afirmativas e a ampliação das formatações de pesquisas na atualidade).
[14] Agrupamento de dança-teatro por onde foram realizados os espetáculos “Dissolução festiva: geração z” (2019), “Foda-se eu” e “Rito qualquer para qualquer coisa”.
[15] Iniciei em 2024 uma pesquisa em formatos híbridos baseada no desejo aniquilatório (também chamado de gregarista), tendo como principais referências, além da filosofia com a qual me articulo, o esporte de impacto e a pornografia mainstream. Começo a esboçar um elenco formado por homens cisgêneros e uma reflexão sobre o tamanho e a posição diferenciadora que o chamado “teatro político” tem com algumas estruturações do desejo.