Crítica – Orunmilá | Travessia ancestral em expansão

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Imagem – João Borges
Por Íris Cláudia e Lorena Carvalho Furtado
Ọ̀rúnmìlà transita entre os planos espiritual e físico, o Ọ̀run e o Àiyé, divindade a quem é atribuída a sabedoria e a divinação, oraculista que conecta mundos. O intérprete-criador, Orunmillá (Orun Santana) tece histórias com este testemunho dos destinos e suas simbologias, movimenta e articula evocações e dissoluções das existências através das filosofias Yorùbá e Bantu-Kongo, em busca de uma dança de/para um corpo oracular.
(Orun Santana).
Apresentado no Teatro Hermilo Borba Filho, no dia 24 de Outubro de 2025, como parte da programação do 28º Festival de Dança do Recife, Orunmillá — dança oracular é o segundo espetáculo solo de Orun Santana e se inscreve como continuidade de uma pesquisa que articula corpo, espiritualidade e memória ancestral. A obra leva o nome do próprio artista e do Orixá da sabedoria e da divinação, convocando desde o título uma caminhada entre ancestralidade, filosofia, identidade e corpo-memória.
Artista, bailarino, capoeirista, professor e pesquisador em dança e cultura afro, Orun cresceu e se formou no Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo, fundado por seus pais, Mestre Meia-Noite (Gilson Santana) e Vilma Carijós, em 05 de outubro de 1988 e registrado em 1990, passando a funcionar desde então em Chão de Estrelas, Recife. Ali, a dança, a capoeira, a música e a coletividade atravessam cotidiano e ensino, constituindo o corpo como arquivo e como projeto comunitário. A ele se soma sua formação acadêmica em Licenciatura em Dança pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), resultando em uma corporeidade situada entre pedagogias ancestrais e experimentações contemporâneas.
Seu primeiro espetáculo solo é Meia-Noite, em homenagem ao pai, Mestre Meia-Noite, mestre de capoeira, bailarino e educador popular do Recife, e lhe rendeu o prêmio de Melhor Bailarino na 24ª edição do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, em 2018. O espetáculo circulou por palcos e festivais relevantes em Pernambuco, no Brasil e no exterior, incluindo o Itaú Cultural (SP), o Palco Giratório do Sesc e o Festival Lusofonia em Macau (China).
A criação de Orunmillá não nasce só. O processo conta com a colaboração de Marconi Bispo, performer e dramaturgo formado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em Artes Cênicas, cuja participação contribuiu para a composição dramatúrgica e a estruturação sensível da obra. Essa parceria reforça a dimensão processual e compartilhada do trabalho, em que escuta, pesquisa e troca constroem o percurso cênico.
A ambientação cênica, composta por baixa luminosidade, elementos brancos, tecidos leves e uma cenografia reduzida, cria um espaço liminar, íntimo e sensorial, sugerindo rito, passagem e nascimento. Um saco de pó branco cai antes mesmo de o artista tocar o chão; ao descer pendurado no teto, Orun pisa, desliza e manipula o pó, marcando o corpo e o espaço como se consagrasse o território. A trilha começa com sons espaciais, instaurando uma atmosfera de suspensão: entre útero e cosmos, entre chão e órbita. Há leveza, vôo e flutuação, uma dança que respira gravidade e escuta o ar.
O figurino todo branco se transforma ao longo da obra: balaclava que se retira, calça que se abre e escoa, cinto que vira colar. Cada desamarração opera como gesto simbólico: revelar, nascer, atravessar. A gravação da mãe do artista narrando a escolha do seu nome comparece como ativação de linhagem; a incorporação do jogo de búzios costura destino, consulta e escuta. A ancestralidade não aparece como referência ilustrativa, mas como fundamento ontológico.
O vocabulário corporal transita entre danças de Orixás, gestualidades afro-brasileiras, frevo, hip hop, capoeira, caboclinho, maracatu e técnicas contemporâneas. Em determinado momento, a cena desloca-se da atmosfera ritual para pulsos urbanos: para uma atmosfera de rolê de rua, diversão, vida que pulsa e celebra, marcada por riso, movimento e presença viva no mundo. O corpo celebra, compartilha, convida, uma festa que não rompe o rito, mas o complementa. O movimento reivindica alegria como tecnologia de sobrevivência e potência estética.
Após a sessão, o artista menciona o estigma de se esperar que corpos negros dancem apenas danças populares tradicionais, afirmando seu interesse também por ficção científica, futuridade e outras referências. Essa fala confirma o que a cena sugere: a ancestralidade aqui não limita; ela expande. O corpo não se fixa no passado, ele o usa como propulsão para imaginar o que ainda não existe. Como o pássaro Sankofa, retorna para avançar.
“Orunmillá — dança oracular” não fixa o corpo na tradição nem o lança ao futuro sem lastro; faz da ancestralidade um motor de expansão. Entre pó e cosmos, entre búzios e batidas urbanas, o trabalho contesta o enquadramento e afirma a dança como campo de multiplicidade e invenção. Orun atravessa memórias para produzir novos territórios, lembrando que corpo ancestral é também corpo em expansão, e que caminhar para frente exige saber, sentir e reimaginar o que nos funda.












