Crítica – À un entroit du début | O próprio ventre

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Imagem – Thomas Dorn
Por Jaqueline Rosa e Larissa Marques
No palco uma vela acesa, um livro, uma pedra e, ao fundo, a cortina de franjas com a projeção de um homem. As luzes se apagam e entra a dançarina, pés descalços, vestido preto e um tipo de manto enrolado no tronco. Pega o livro e lê um relato que descobrimos ser de seu próprio pai, sobre como teve que se submeter aos padrões coloniais. A leitura é feita ao vivo, a performer fala em francês e o público pode acompanhar a tradução simultaneamente através de uma legenda projetada acima do espaço cênico.
A dançarina, Germaine Acogny, senegalesa e considerada a mãe da dança contemporânea africana, vem ao Recife para apresentar, numa parceria entre o 28° Festival Internacional de Dança do Recife e a 34ª edição do Festival de Teatro do Agreste – FETEAG, o trabalho À un entroit du début (Na entrada desde o início – tradução nossa) criado juntamente com o diretor francês Mikaël Serre, no Teatro de Santa Isabel. O trabalho autobiográfico traz situações vividas pela intérprete e levanta diversas pautas durante sua duração: racismo, colonialismo, casamento, machismo, intolerância religiosa, todas questões presentes no espetáculo.
Apresentados de forma não linear, Germaine nos narra acontecimentos de sua vida de forma verbal e corporal, além de contar com o auxílio de objetos em cenas específicas e da estrutura do palco com projeções em duas cortinas, trazendo uma ilusão de ótica que faz parecer que as imagens estão em 3D, às vezes até engolindo a performer quando ela se põe entre as cortinas.
Após termos um primeiro contato com os comentários do pai de Germaine e sua relação com o colonialismo, descobrimos que a mesma era considerada, na comunidade em que viviam, como a reencarnação de sua avó. Aqui, ela nos traz um pouco sobre a relação conturbada com o pai, e a relação ancestral com a avó, ambas conectadas pela natureza feminina.
O espetáculo segue com a apresentação de um vídeo em que um homem normaliza o fato de um marido ter várias esposas. Durante o vídeo, Germaine questiona o que ele diz e segue nos contando sobre sua rejeição à situação de seu próprio marido ter uma segunda esposa após um casamento de 3 anos. A performance entra, então, no campo da independência feminina e a relação com a comunidade, como a decisão das mulheres é sempre julgada fortemente quando comparada à dos homens.
Retornamos aos manuscritos do pai de Germaine, em que narra sua relação com o cristianismo, e como ele deixou de usar os símbolos de proteção da própria religião para assumir os da religião a ele imposta. A bailarina questiona o porquê dos símbolos cristãos serem socialmente aceitos enquanto que símbolos de outras manifestações religiosas, como os do vodu, são fortemente repreendidos, se no fundo todos têm a mesma função de proteção e sorte.
Assim, o espetáculo segue transitando entre assuntos sem nunca esgotá-los, cada trama apresentada sempre já adentrando na seguinte. A não linearidade nas histórias é interessante e criativa, mas às vezes nos leva a perder certos detalhes, mantendo questões em aberto, o que talvez seja intencional, pois sustenta nossos questionamentos sobre a performance mesmo após o seu fim. O fato de o trabalho ser narrado pela própria dançarina enquanto ela performa também traz um ar de intimidade entre ela e o público, como se fôssemos amigos conversando. Apesar de as línguas serem diferentes, isso não significou uma barreira, graças à legenda, entretanto, em alguns momentos, ela parecia travar, nos fazendo perder alguns detalhes da fala da artista.
Entre indas e vindas nos assuntos trazidos, surge o tema “filhos”. A artista atesta como o tema é protagonista de diversos debates familiares, sobre se devem ou não tê-los, se é a escolha certa, como garantir que os filhos sejam boas ou más pessoas, etc. Até que afirma sua intenção de vender os próprios filhos, fala que causa certo estranhamento seguido de curiosidade; seria verdade? Ela segue abordando questões de imigração, religiosidade e família até retornar aos filhos, quando afirma que os matará e que o genitor nunca os verá. Pouco após esse momento ela pega a almofada, põe sobre o próprio ventre e a rasga, aludindo, quem sabe, a um aborto – fato não confirmado por ela em nenhum momento da performance.
Toda a obra conta com uma produção cênica rica em detalhes que valorizam e conferem sentidos à trama narrada. Cada objeto, projeção ou momento em que ela passa pelas cortinas dialoga com a história narrada a cada momento. É uma obra cheia de intimidade e histórias, que se costuram simultaneamente, assim como o próprio desenrolar da vida.












