A imagem do morto | Entrevista – Fause Haten

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Imagem – Bruno Lemos
De 25 de maio a 30 de junho, a performance Eu sou um monstro realiza sua segunda temporada, no Teatro Vivo, em São Paulo, com sessões aos sábados às 20h e domingos às 18h. Com criação do ator e diretor Fause Haten, a peça aborda uma narrativa que aconteceu com o pintor anglo-irlandês Francis Bacon (1909–1992) na véspera da estreia de uma importante exposição, em que um artista encontra seu namorado morto e deixa o corpo no mesmo lugar, para não atrapalhar o grande dia.
Essa narrativa com ares de mistério inspirou Fause Haten a escrever um conto e, depois de algum tempo, conceber uma versão em performance intitulada Eu Sou um Monstro, que estreou em abril de 2024 no Sesc Pompeia. Tudo começou a partir da palavra. Haten, que transita entre as diversas artes, ficou muito impressionado com esse relato e escreveu um conto ficcional. Em um determinado momento, surgiu a ideia de transportar a narrativa para o teatro – foi quando começou a fazer leituras individuais para amigos atores e diretores de teatro. Nessas leituras sempre gravadas e roteirizadas depois, foi performando de improviso todo o restante da obra.
Para saber um pouco mais sobre como essa tranversalidade de linguagens apareceu no processo de criação, o editor-chefe do Quarta Parede, Márcio Andrade, conversou com o criador da performance, Fause Haten.
Fause, na sua trajetória, aparece de forma evidente um interesse em uma diversidade de linguagens (moda, performance, vídeo, fotografia, escultura etc.) como modo de se expressar. De onde surgiu esse interesse?
Foi acontecendo de uma maneira natural. Quando eu comecei a rodar o mundo fazendo desfiles internacionais comecei a sentir que me faltava alguma coisa. Em 2006, entrei para a escola de teatro Celia Helena e não parei mais. Ali, eu me envolvi com a atuação, o figurino, o cenário, o canto, a dança… Experimentei tudo o que pude em busca do meu caminho. Algum tempo depois, descobri a performance nas artes visuais, a fotografia, o vídeo, a pintura e a escultura. Hoje, entendo que eu tenho um processo de criação multidiciplinar. Quando começo uma pesquisa, explodem obras e expressões para todos os lados. O texto de Eu Sou um Monstro foi escrito na mesma fase que eu gerava uma infinidade de imagens, performances, pinturas e esculturas. O texto foi feito para teatro e todas essas obras para artes as visuais. Hoje, elas fazem parte todas da mesma obra.
Alguns desfiles que realizou, como O mundo maravilhoso do Dr. F. e A fábrica do Dr. F., transbordam de índices de teatralidade e jogam com ideias em torno da performance. Como você percebe o espaço do desfile como lugar de experimentação e fricção estética com a adesão a outras linguagens?
Passando por toda essa transformação interna e descobrindo esse mundo infinito da criação nas artes cênicas e visuais, eu precisava de um palco para me expressar. Naquela época, o meu palco era a sala de desfile. Foi uma fase muito especial na minha vida e acho que também foi um exercício maravilhoso para repensar as passarelas e a forma de se apresentar uma coleção de moda. Eu sei que, naquela época, causei um certo estranhamento no mundo da moda, mas, poucos anos depois, todas as marcas internacionais mais importantes do mundo seguiram exatamente o mesmo caminho. As passarelas foram invadidas por performances, dança, artes, teatralidade e etc. Do meu jeito e com as minhas possibilidades, acho que sempre estive com o olhar na direção certa.
O espetáculo ‘Eu sou um monstro’ partiu de um encontro seu com uma história vivida por Francis Bacon. Como foi seu encontro com essa narrativa e qual foi o impacto que ela lhe provocou para escrever o conto original?
Eu havia visto um documentário sobre a vida do Francis Bacon e tomei conhecimento de que George Dyer, um de seus namorados, se suicidou na véspera de sua maior exposição no Petit Palais em Paris. E que ele e a sua agente encontraram o corpo e decidiram “não encontrar” para a notícia não ofuscar o grande evento. George era pugilista e foi retratado em muitos dos quadros de Bacon, possivelmente alguns desses quadros deviam estar nessa exposição. Achei tão absurdo pensar na abertura dessa exposição, sabendo daquela morte e não poder falar. Ver aqueles quadros com a imagem do morto e não poder gritar… Achei aquela situação tão impressionante que escrevi o conto inteiro naquela noite mesmo a partir desse gatilho. E esse conto ficou ali guardado. Eu não sabia muito bem como, mas achava que ele poderia virar teatro.
Como foi o processo de adaptação de um conto literário para as espacialidades e materialidades que envolvem a concepção do espetáculo?
Eu tinha estreado meu primeiro texto, A Feia Lulu, em 2014 e Lili Marlene, um antiMusical, em 2017. Eu queria estar um texto novo e achava que aquele conto poderia ser um ponto de partida. Em 2018, comecei a fazer leituras para amigos atores e diretores. Passei quase um ano fazendo isso. De início era uma troca de ideias…do tipo: o que você acha desse texto? Coincidentemente, no início e depois de propósito, estávamos sempre sentados em uma mesa, frente a frente e fazia sempre para uma pessoa de cada vez.
Nessas leituras, eu ia introduzindo e experimentando sempre de improviso novos textos e cenas, que eu fui transcrevendo e roteirizando a cada leitura a partir das gravações e registro que sempre faço nos meus processos. Somei ali também uma performance que já usava essa frase ‘Eu sou um Monstro’, que eu havia feito em parceria com a Ondina Clais em 2013. Assim, o texto foi se consolidando e chegou um ponto que eu passei apenas a repetir esse texto já definido, sempre performance para uma pessoa de cada vez. Eu assumi aquele formato de mesa com duas cadeiras e incorporei essa simplicidade de forma na dramaturgia.
Em paralelo a isso, fazia uma serie de fotoperformances que chamo de ‘selfiesculturas’. Sobre o meu rosto, vou experimentando materiais que tenho em casa e lidando com o gesto e o movimento como pinceladas de tinta. No início, não era intencional, mas em um momento entendi que aquelas eram as obras do “Artista”. Eu tenho um processo muito intuitivo: às vezes, estou fazendo uma pesquisa e nem sei disso. Começo projetos paralelos e de repente, percebo que eles falam do mesmo assunto ou tem pontos de convergência que os unem fortemente.
Além dessas investigações, você também publica nas redes sociais performances em foto e vídeo com seu próprio rosto/corpo. Como a criação nesses espaços digitais também vem influenciando suas criações artísticas ‘analógicas’ e vice-versa, digamos assim?
Eu tenho um processo de criação muito solitário e auto-suficiente. Comecei a usar o meu corpo porque ele estava ali a disposição. Hoje, posso dizer que isso virou um método/característica. Nesse caminho, foi achando uma forma de me autofilmar, fotografar, editar as imagens, os videos, os áudios. Meus processos são bem intensos e vão acontecendo dentro de mim. Difícil dividir isso. As vezes, lá no final, coloco alguns outros criadores que contribuem com uma trilha, uma luz ou algo assim, mas já com uma direção minha bem clara. Tudo isso acontece porque eu gosto de realizar. Eu preciso realizar. E dessa forma, encurto caminhos e viabilizo as obras. As redes sociais desde a pandemia, viraram um pouco o meu palco. Algumas daquelas postagens no Instagram ou no Youtube tem pra mim, a mesma carga dramática de uma montagem de exposição, ou de uma sessão de teatro.