Antecipar futuros | Entrevista – Mário Lopes
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Imagem – Ana Paula Mathias
Até 05 de maio, o espetáculo de dança Movimento I, Parado é Suspeito e Movimento II, Kodex Konflikt fará apresentações gratuitas no Mezanino do Sesc Copacabana, com sessões sempre às 20h30. O projeto, que comemora 10 anos, estreou em tempos e contextos diferentes, no Brasil, em 2014, e na Alemanha, em 2018 e se trata de um manifesto político sobre o genocídio do povo preto e dá vazão ao que começa nas sonoridades do passado e continua ecoando no presente e os movimentos seguem o compasso do comando, que deprime o batimento cardíaco, as palavras silenciadas que buscam se manifestar e a capacidade de contar e recontar.
Inspirado na frase encontrada na Academia de Polícia Militar na década de 1990, ‘Negro parado é suspeito, negro correndo é ladrão’, Movimento I, Parado é Suspeito, acontece para denunciar, em cena, os números alarmantes que quantificam a face do extermínio da população negra e o racismo estrutural presente nas instituições policiais. Já no segundo ato – Movimento II, Kodex Konflikt, o espetáculo reflete sobre o impacto no corpo em contextos estranhos, códigos sociais de comportamento, processos de adaptação física e momentos de confronto com o corpo percebido como estranho pela linguagem, cor da pele ou modos de ser. Aqueles que são reconhecidos como estrangeiros (pelo idioma, aparência e hábitos) buscam estratégias de camuflagem que lhes permitam entrar e penetrar nas “normas”.
Contemplado no edital de Cultura Sesc RJ Pulsar Corpo Negro 2023/24, o álbum coreográfico “Movimento I, Parado é Suspeito e Movimento II, Kodex Konflikt” é uma obra em dois atos que circulou fora do Brasil com reconhecimento em espaços importantes, como a Bienal de Arte Contemporânea de Berlim, em 2018. Voltando para o Brasil depois de 10 anos e completando 10 anos da estreia da obra Movimento I, que abre a trilogia “Movimentos”, o público é contemplado para reestrear dois movimentos no SESC Copacabana. “Movimento I, parado é suspeito” e “Movimento II, Kodex_Konflikt”, em dois atos em uma mesma noite. O diretor e performer Mario Lopes conversou com o editor-chefe da Quarta Parede, Márcio Andrade, sobre o contexto geral do trabalho e suas apresentações no Brasil.
Mário, para quem ainda não conhece tua trajetória, você poderia fazer uma breve apresentação e como se encontrou as artes da cena?
Quando olho para frente e visualizo o meu caminho, só tenho a agradecer pelo trajeto iluminado. Agradecer a minha mãe, meu pai, minhas avós, minhas tias e meus tios, por me mostrarem o que é ser bem vindo ao mundo. Estou falando de amor, e este amor me acompanhou para desafiar o improvável, chegar vivo onde cheguei. Vi pessoas morrendo do meu lado, pela arma do estado. Passei noites com falta de ar, sufocado e sem ter esperança de chegar até essa tal luz no fim do túnel, que nunca chegava e só se afastava cada vez mais. Sempre fui sonhador. E treinei muito para conseguir me esquivar dos “exterminadores de sonhos”. Neste caminho no túnel, abriram-se portas, fecharam-se portas, passaram flashes de luzes, vieram apagões, encontros e desencontros. Hoje não corro mais atrás desta luz no fim do túnel, hoje me teletransporto direto para a luz ou explodo o túnel.
Já sabia, em cada parte do meu corpo, ao que iria me dedicar. À construir uma plataforma para fermentar sonhos, acolher construtoras das ditas utopias ou realizadoras dos chamados improváveis. Investir, gerar suportes, estruturas e ferramentas. Mostrar para jovens, como eu fui, que são bem vindos ao mundo e possibilitar com que elas e eles compartilhem suas ideias ao universo.Sou um ex-entregador de jornal, ex-contínuo, um ex-office boy, um ex-auxiliar administrativo, um ex-cartorário, um ex-personal dance, um ex-acompanhante das noites, um ex-limpador de peixe, um ex-jogador de futebol semi-profissional, um ex-karateka semi-profissional, um ex-gerente de prospecção de um banco, um ex-professor, um ex-semi engenheiro da computação, um ex-ator…
Hoje sou tudo isso e a arte é o veículo que me possibilita ser e compartilhar. Fui ensinado e estimulado a sonhar e através da arte descobri um meio de realizar sonhos. Hoje sou um especialista em realizar sonhos e compartilhá-los.
Seus trabalhos parecem explorar, de formas bastante distintas, como os corpos lidam com alteridades, territórios, midiatizações e, muitas vezes, os confrontos e violências que nascem nesses contextos. Como essas questões te surgiram e vêm sendo desenvolvidas nas tuas obras?
O meu deslocamento como coreografia no espaço tempo, atravessando terras, oceanos, territórios, fronteiras, terrenos, ruas e outras existências, foram gerando muitas memórias e marcas no corpo. Ser um jovem negro das periferias do Brasil gera uma experiancia única no corpo, bem como esse corpo imigrar para Europa. Todos esses processos me trouxeram questões profundas, traumas, espaços vazios e nós no corpo. Meu trabalho, desde então, vem sendo mapear o meu estado físico e de muitas companheiras e companheiros do meu entorno. E a partir deste mapeamento, buscar formas de transformar e regenerar o estado físico das nossas existências. E a metodologia que venho praticando para dissolver tudo isso é “Salivando os nós do corpo”, onde posso salivar e cuidar dos sinais do corpo.
Você vem desenvolvendo uma pesquisa em torno do conceito de Afrotranstopia, que trabalha uma intersecção entre afrotranscendência, tecnologias e modos de existir. Você pode falar um pouco como essa investigação se atravessa na concepção dos seus espetáculos?
Afrotranstopia se trata em antecipar futuros e realizar sonhos. Afrotranstopia é sobre processos regenerativos e reparativos anti PACACO-bi (Patriarcado, Capitalismo e Colonialismo dentro de uma estrutura binária).
“Estou refletindo, através dos rastros e fragmentos da minha caminhada até aqui, como a palavra utopia vem me atravessando desde criança. Quando criança, fui ensinado a sonhar, imaginar e criar portais para universos lúdicos, onde tudo era possível. Especulações e projeções de ser o primeiro da história, piloto de fórmula 1 preto ou o primeiro presidente preto do Brasil. Muitas projeções e desejos de realizá-las foram se construindo. Essas especulações durante o tempo, na passagem da infância para a adolescência, começaram a ser chamadas de utopias. As especulações com expectativas menores, do que as da infância, ainda eram distanciadas de mim, das minhas e dos meus pares. Essas especulações, para muitos, eram utopias. Eram projeções anormais a todo contexto. Toda essa recusa, basicamente pelos seguintes pontos: raça, classe social e classe econômica. Sabemos, que a maioria de amigues daquela infância tiveram seus sonhos interrompidos, bloqueados, baleados ou enterrados ou submersos. Meus sonhos na adolescência eram terminar a escola, ir para uma universidade, ter uma profissão, entrar em um mestrado no exterior, viajar o mundo, falar outros idiomas, casar, ter filhos e ter dinheiro suficiente para cuidar da família e ajudar a comunidade ao meu entorno. Sim, ser chamado de utópico por sonhar em realizar feitos, como os da minha adolescência, me levaram a desafiar essa palavra e tudo que se traz com ela…”
Trecho da introdução da minha Tese de Mestrado pela Universidade de Arte de Amsterdam(2021-2023).
A prática do “Salivar os nós do corpo” gera muita espuma interna, através da saliva e do líquido sinovial ativado a partir das articulações do corpo. A imagem que vem forte são das espumas pós-tsunami, que depois do seu destroçar, a beira, o que sobra são espumas. Quero dizer que nos meus trabalhos, apesar do contexto distópico, violento e tóxico trazido pelo virus sindêmico PACACO-bi, quero emancipar e anunciar um estado individual e coletivo espumoso para o universo. Leve, maleável, poroso, flexível, líquido e sólido. Meu trabalho é esta tentativa, mas até chegar lá ainda temos muitos conflitos internos a serem regenerados.
Ao compartilhar meu trabalho entre colegas da universidade, eu havia sido questionado sobre por que levava a afrotranstopia como pesquisa se eu não estava muito afrocentrado e meu trabalho foi rotulado como afrodiaspórico. De fato, minha pesquisa não se dirigia a apenas o que era relativo ou natural da África. Em um processo descobri que “afro”, em grego, significa “espuma” (αφρός, “afrós”), derivando daí o nome da deusa Afrodite, “nascida da espuma”.
SERVIÇO
Espetáculo Movimento I, Parado é Suspeito e Movimento II, Kodex Konflikt
Dias 1, 2, 3 e 5 de maio – No Mezanino – às 20:30
Sesc Copacabana – R. Domingos Ferreira, 160 – Copacabana, Rio de Janeiro
Entrada gratuita – As senhas são liberadas com 30 minutos de antecedência, por ordem de chegada