BR Trans, uma trans-cenação
Por Bruno Siqueira
No comentário crítico que escrevi a respeito do espetáculo A Receita (leia AQUI), apresentado na sexta-feira (10), fiz menção a Eugenio Barba. Depois de encaminhar o texto para postagem, lembrei-me do que tinha lido no livro escrito pelo mesmo Barba, Além das Ilhas Flutuantes, quando dizia ser o teatro “uma ilha flutuante, uma ilha de liberdade. Risível, porque é um grão de areia no turbilhão da história e não muda o mundo. Mas ela é sagrada porque nos muda.” Saí de alguma forma trans-formado do Espaço d’ O Poste. Mudanças aqui e acolá confluem para mudanças de maiores proporções. Assim creio.
A propósito, também saí tocado e trans-formado do Teatro Hermilo Borba Filho, após ter assistido ao espetáculo BR Trans, do coletivo As Travestidas (Ceará) (leia a entrevista sobre o grupo AQUI), apresentado dentro das atrações da 3ª edição do TREMA! neste sábado (11). Com direção de Jezebel de Carli, Silvero Pereira faz o solo e ainda assina a dramaturgia. À primeira vista, um teatro documental, no seu mais refinado (e particular) estilo. Por teatro documental, entende-se todo teatro que se vale de documentos vivos (inclusive de documentos pessoais, o que corresponde a uma das vertentes desse teatro, o biodrama) para transformá-los em cena. Foi exatamente o que Silvero Pereira fez para criar o solo BR Trans. O espetáculo faz parte de um projeto mais amplo, de intervenção social através da arte do teatro, em prol da discussão sobre a condição sociocultural das travestis e transexuais, minorias sociais profundamente marginalizadas e postas nos subterrâneos da existência em nossa cultura.
Nesse trabalho, Silvero Pereira empreendeu uma pesquisa de campo e registrou modos de vida de travestis e transformistas de Porto Alegre (RS), relacionando os dados aos das pesquisas empíricas realizadas, por ele, com travestis do Ceará. O ator se baseou nesses documentos para criar uma tessitura com as vozes provenientes de vidas e de existências que a sociedade brasileira (e mundial, de certa forma) nega e abafa. Mistura essas histórias com suas próprias histórias, de um sujeito que transita entre as diversas identidades. Do tecido dramatúrgico, são projetadas as figuras de Gisele, de Bruna, de Babi, de Dani, de Tyna e de uma gama de personas que se identificam com a transexualidade. Se o prefixo “trans” na língua portuguesa significa “através” ou “além de”, implica dizer que a transexualidade, por exemplo, corresponde a uma identidade de gênero e de sexualidade que, por sua vez, questiona o estabelecimento das identidades fixas. Trata-se de uma condição de gênero e de sexualidade que vai além (e através) das identidades estabelecidas pela cultura: masculino, feminino, gay, lésbica, heterossexual, homossexual, bissexual.
Vale frisar que minha concepção, aqui, é posta a partir da perspectiva da cultura. Não entrarei no viés da medicina ou da psicologia, que tendem a caracterizar o fenômeno como “distúrbio de gênero”. Distúrbio pressupõe patologia, e eu não sou favorável à patologização do fenômeno. A transexualidade surge e faz parte da cultura, e, como tal, merece o direito de ser assumida e exercida. O fenômeno amplia, portanto, o debate sobre a política do corpo, que ganhou novos contornos com Foucault. Como, então, transformar esse tecido dramatúrgico em cena teatral? A encenação optou por criar uma cena que chamo, aqui, de “trans”. Se a língua me permite experimentar, o que vimos foi uma transcenação. O teatro documental que Jezebel de Carli e Silvero Pereira nos apresentaram faz fronteira com a performance, a qual, por si própria, já constitui um gênero de fronteira – expressão cênica transdisciplinar, que faz confluir as diversas artes (teatro, artes visuais, música, dança) num tempo e num espaço determinados para projetar a presença do corpo do performer em ação. A cenografia constrói diversos nichos que serão usados na performance de Silvero Pereira: num, uma mesa e um espelho de camarim; noutro, um microfone numa haste; noutro, um baú; noutro, um piano e o músico que faz, por sua vez, sua performance em cena. A performance de Silvero Pereira acontece “através” (trans) desses nichos.
Dessa forma, a cenografia deixa de ser apenas um espaço em que transcorre a cena e passa a constituir extensão do próprio corpo do performer, que é um corpo simbolicamente trans. Um corpo posto como presença, como volume, como matéria-prima da criação artístico-performática no ato mesmo da realização cênica. Um corpo fluido, ambíguo (por isso trans), apesar de tecnicamente sólido. Um corpo que se trans-forma em diversos corpos. Um corpo que se expõe como suporte de criações plásticas, flertando, assim, com a body art. Um corpo que não se prende a identidades fixas. Masculino, feminino, gay, lésbico, travestido, trans. Enfim, um corpo que constrói um discurso: há (porque deve haver) liberdade e respeito para as diversas formações e transformações do corpo que pertence única e exclusivamente a nós mesmos.
Com isso, Jezebel de Carli e Silvero Pereira nos emocionam, nos comovem e nos convidam para um debate maior sobre a política do corpo, sobre as políticas de diversidade de gênero e de sexualidades, e sobre a função política da arte, pois não dá mesmo para conceber estética sem algum pressuposto ideológico. Nós, do público, entregamos nossos corpos à experiência estética e recebemos as histórias de algumas travestis que participaram da pesquisa de Silvero Pereira; nos aproximamos delas, de suas dores, de suas experiências, de seus prazeres. Sujeitos que ocupam, as mais das vezes, o único espaço que a sociedade lhes permite ocupar: a rua, na calada da noite, debaixo de um poste, vendendo seu corpo a parte dessa mesma sociedade que insiste em excluí-los. Mas que estão, cada vez mais, reivindicando o direito à voz e à cidadania.