Festival Cenas do Nordeste – 2ª edição | Sobre ecos e curadoria
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Imagem – Adeloya Magoline
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE), pesquisadora e crítica cultural
Em algum galpão ou sala deteriorada, de paredes brancas, está um grupo de pessoas sentado a observar o espaço e as performers que estão em pé, à sua frente. Só consigo vê-las depois que a câmera passeia levemente pelo local, deslocando-se para a presença das três mulheres que se posicionam num círculo, fechadas em si mesmas. Um dispositivo performático é ativado por meio de letreiros no arquivo audiovisual de Plantas e Fantasmas:
Escreva o nome de algo ou alguém que já morreu
Agora risque as consoantes e deixe esse papel na terra
Na tela, pude ver o público escrevendo, riscando e plantando os pedaços de papéis brancos em cima da terra preta que estava espalhada pelo chão.
Fiz o exercício em casa:
T e a tr o
Não que eu ache que o teatro tenha morrido. Não quero fazer desse texto algo saudosista, tampouco negacionista e desatento às experimentações instigantes que artistas e grupos têm se disposto a fazer no meio dessa tragédia que estamos vivendo. Mas é que o Cenas do Nordeste, ao investir, majoritariamente, na exibição de arquivos audiovisuais, torna a questão um pouco mais sensível, pois nos lança materiais daquilo que já foi, não está sendo, mas, no fundo, ainda é alguma coisa. Ainda vibra, ressoa e ecoa algo que não está necessariamente deslocado desse presente movediço.
Manejando tais temporalidades (já foi, mas ainda é), dentro de contextos simbólicos que, num primeiro instante, se circunscrevem na individualidade de quem escreve aquilo que deseja enterrar (pois está morto!), as palavras/coisas/alguns ganha tons de coletividade, em Plantas e Fantasmas, ao se transformarem em eco nas vozes das performers, que constroem sonoridades com os restos vogais daquilo que está sendo lançado à terra em configuração de morte. Na transição entre o que está no chão terroso e o que passa a tomar corporeidade através da ação performática, elabora-se nascimento e invenção com aquilo que se restou (as vogais), criando sons e gestos que, se podem recriar vidas, também já nascem com a fantasmagoria de terem em si o registro daquilo que se findou.
Não por acaso a alegoria do fantasma para falar dos arquivos audiovisuais do teatro aqui nesse texto, como Small também traçou como alegoria para falar sobre a sua relação com eles (ver AQUI), em um texto publicado há um pouco mais de um ano. Mais do que essa imagem da fantasmagoria em si, gostaria de trabalhar com os ecos. Com aquilo que as obras escolhidas para serem exibidas no Festival Cenas do Nordeste produziram e desdobraram do lado de cá, como possibilidade de desenhar possibilidades de vida, mover os assombros e elaborar alguma coisa com aquilo que já foi (festival, artistas, teatro) e que, de certa forma, ainda é.
E… E… E…
Com a exibição de espetáculos e performances de artistas e grupos localizados nos estados do Nordeste, o conjunto de obras cria uma dupla sensação quando nos debruçamos sobre a curadoria do festival. Num primeiro momento, é possível dizer que o Cenas do Nordeste carece de desenhos mais precisos em relação à escolha de programação, por não deixar evidente as linhas de força que compõem o trajeto oferecido ao público, dentro de um universo tão complexo e distinto quanto o território criativo e cultural nordestino. No sentido contrário, proporciona certa autonomia às espectadoras, que podem elaborar, de maneira independente, aquilo que se conecta ou se desconecta na sequência das exibições. A configuração mais evidente em relação ao material exibido também poderia expor um pouco mais precisamente o que a curadoria compreende enquanto signo ‘nordeste’.
Não acredito que seja pretensão do festival propor uma visão total do que vem sendo gestado em nosso território. No entanto, por saber que muitos são os imaginários que permeiam a concepção fortemente estabelecida de nordeste, me questiono sobre a curadoria, com o intuito de perceber ainda mais o deslocamento provocado timidamente pelo festival, entre as visões mais tradicionalistas sobre nossas produções culturais e artísticas até às que rompem fortemente com tais simbologias e temáticas. Mesmo sem haver perguntas expostas ou motes temáticos destacados, é possível localizar algumas incidências dentro da programação: solos autobiográficos femininos, como em Mi Madre (PE) e Vulcão (CE) ou a tensão entre a tradição e o contemporâneo, como em Dança Anfíbia (AL) e Terreiro Envergado (PB). Além disso, alguns materiais e matérias emergiram das obras, como o escuro e água, em Sonhoridades para desadormecer serpentes (MA) e Entre rio e mar há lagoanas (AL) ou a precariedade dos espaços físicos, em Plantas e Fantasmas (PI) e Nebulosa (PI).
Ainda sobre curadoria e programação, um dos desenhos mais instigante e contraditórios do Festival foi no seu primeiro dia, com a exibição de Medeia Negra e Pele Negra, Máscaras Brancas. A primeira foi recriada para o ambiente virtual, ou seja, passou por um processo de tradução que intersecciona teatro e audiovisual. A segunda, apesar de utilizar-se de efeitos de montagem, foi concebida enquanto registro de um evento cênico. Suas materialidades profundamente distintas, que incidem na espectatorialidade, combinam com as dessemelhantes propostas estéticas e políticas das obras, ainda que componham em conjunto o cenário das teatralidades e performatividades negras brasileiras.
Em Medeia Negra, Márcia Limma provoca as ficções de poder pela voz, reencenando a mitologia grega dentro de uma afroperspectiva. Clamando por todas as degeneradas e excluídas, o espetáculo cria discursos anticapitalistas e expõe as fraturas da racialidade a partir do corpo feminino preto. Com o uso dos recursos audiovisuais, elementos como o fogo potencializam o canto e clamor de Limma, que queima sua própria presença a partir da sobreposição de imagens, ruindo-se simbolicamente para tratar sobre temas como violência, estupro e morte. O tempo também ganha contornos robustos com a montagem: com a repetição de imagens, sons e canções, as temporalidades se entrelaçam na performance, provocando loopings que permitem a suspenção do tempo linear. É dentro deste intervalo que a atriz libera seu corpo negro e feminino do medo da sujeição e submissão e passa a redistribuir a violência recebida pela máquina jurídico-colonial.
Para além das diferenças materiais de seus arquivos, Pele Negra, Máscaras Brancas aparece como pólo radicalmente oposto ao monólogo de Marcia Limma. Exibido na sequência desta edição do Cenas do Nordeste, o discurso pró-capitalista, impregnado contraditoriamente na obra que traz referências do pensamento fanoniano, colapsa o fervor instituído pela apresentação anterior. A tradução e inspiração da obra de Fanon se estrutura num viés discursivo totalmente mercadológico, na chave do empoderamento negro, que parece uma anti-tese do que se desenrola nas linhas do livro publicado em 1952. Enquanto a primeira propõe uma ruptura radical com os regimes instituídos, Pele Negra… caminha no sentido oposto, reforçando as ficções neoliberais que estruturam a natureza positivista e desenvolvimentista forjada no mundo.
O contraponto mais propositivo do espetáculo dirigido por Onisajé é a criação de uma personagem feminina que representa Fanon dentro do espetáculo, materializando, com essa presença, as críticas proferidas à obra do intelectual negro, sob a perspectiva do gênero, como feito no documentário homônimo de Isaac Julien (1995), onde pesquisadoras compartilham as contradições e limites do livro Pele Negra, Máscaras Brancas. Entre pretas e pretos no topo do topo e se puder, converse, se não puder, mate… Enquanto Fanon nos mobilizar a pensar conjecturando brancura e negrura, em sua dimensão relacional, assim como dentro de um projeto coletivo que se propõe a destituir-se da própria cor como escape do sistema que nos enclausura, o espetáculo da Escola de Teatro da UFBA reencena a individualidade preta e o processo de enegrecimento como solucionador dos problemas circunscritos no cotidiano das personagens (que são baseadas nos capítulos do livro de Fanon), numa contramão acentuadíssima aos estudos elaborados pelo autor martinicano.
Voltemos, então, para a questão do desenho curatorial: que pensamento, ou que provocação, circundam a exibição desses dois arquivos, considerando sua grade de exibição? Apesar da exposição que é se abrir os pensamentos que envolvem a curadoria, eles também podem (e devem) servir como faróis, para, inclusive, serem questionados e contraditos. O arranjo de dois espetáculos radicalmente diferentes, que, aos seus modos mobilizam públicos e formas de olhar igualmente distintos, tendem a se dissipar, ou até mesmo obliterar-se entre si. Acredito, inclusive, que esse tenha sido o caso que ocorreu aqui.
O… O… O…
O festival tem uma marca bem interessante em seu formato, que são os debates pós-espetáculos. Há o aspecto do encontro, da diluição de nossa solidão em tempos pandêmicos. Mas há, por conseguinte, a dimensão formativa dessa ação, que coloca público e artistas em contato, não com o objetivo de dissecarmos as obras, claro, mas com a proposição de lançarmos perguntas, compartilharmos sensações, criarmos ecos juntos. Às vezes, esses momentos se tornam um pouco contraproducentes, por se reduzirem (muito rápido, em alguns casos…) a um espaço estritamente elogioso a quem está exibindo sua obra.
Um pouco de calor no coração é sempre bom, mas, tendo em vista o público assíduo e fiel que acompanha o Cenas, me pergunto se seria possível aproveitá-lo dentro de um outro espaço formativo, onde a mediação encontraria um terreno propício para ganhar contornos mais complexos e instigantes dentro da programação. Esses apontamentos não se desenrolam de forma isolada, uma vez que o festival já demarcou seu interesse pela mediação e formação com a participação de um núcleo de críticos na edição deste ano.
Além de promover o fortalecimento entre críticos e críticas da região Norte e Nordeste (veja AQUI), o que ganha contornos políticos, se levarmos em consideração o contexto histórico da crítica teatral brasileira, essa ação também propulsiona o estabelecimento de diálogos que contribuem com a investigação do campo em solos fora dos eixos hegemônicos das artes da cena, possibilitando recriar as formas de nos relacionarmos com as obras de territórios criativos descentralizados.
A… A… A…
Outro ponto da programação que me faz refletir sobre as perspectivas curatoriais do Cenas do Nordeste é a coexistência de obras que, dentro de um complexo de programação que não se referencia ou pouco produz zonas de contato, parece deixar alguns de seus espetáculos e performances orbitando no vazio (ou em si mesma), ao ponto de despotencializá-los. Ou seja, faz com que eles percam a sua própria força. Isso parece ter acontecido com Sonhoridades para desadormecer serpentes, de Elton Panamby. Concebida como obra audiovisual, recebê-la na programação tem sabor de aposta, frente a materialidade estranha que Sonhoridades impõe em relação ao conjunto de obras do festival, pelo seu tom não-representacional e contra narrativo. Mergulhamos nas profundezas de uma imagem deteriorada e líquida, que se estrutura e se constrói pelos ruídos e sonoridades, fazendo da água o corpo do trabalho de Panamby. Totalmente diferente, por exemplo, de Entre rio e mar há lagoanas, onde a água é evocada como promessa e mistério estritamente pela narração e diálogo das atrizes em cena.
Cria-se também um impasse dentro da própria obra que, ao considerarmos a hipervalorização de sua dimensão sonora, Sonhoridades demanda do público uma outra forma de estar com Sonhoridades, que não foi amplamente investida no percurso do festival. Sua estrutura não-convencional ou incômoda corre o risco de ser vista como um possível “corpo estranho” dentro da grade, não pela possibilidade de friccionar posições e percepções dadas, mas como algo que parece não dialogar com o universo de trabalhos que fora abrigado no Cenas do Nordeste.
O mesmo parece acontecer com Nebulosa, de Vanessa Nunes. Ainda que esteja dentro de um espectro mais palpável em torno da performance, o material audiovisual, que abriga em si uma estrutura que dialoga com espaços museais, produz uma travessia fragmentada, que começa e termina no corpo da performer. Um estado físico e emocional se estabelece com o título da obra e somos levadas a encarar os esforços e sutilezas do ser movente, que sua e transpira, enquanto as paredes brancas e gélidas criam contraste e, por que não, uma barreira simbólica de sua passagem. As duas obras, se não permeadas por uma questão curatorial melhor afinada, demandam algum tipo de mediação que parece extrapolar as que ferramentas que abrigam e edificam, até então, o Cenas. E não vejamos isso como algo ruim. Mas como potencializar aquilo que transborda e ultrapassa os limites postos? Isso é algo que se impõe quando olho panoramicamente para o evento. E fico com uma pergunta: como amplificar os ecos que ainda aparecem tão dispersos e tímidos dentro do festival?
Esse texto foi produzido dentro da Cobertura Crítica do Festival Cenas do Nordeste (2021), incentivado pela Lei Aldir Blanc – Rio Grande do Norte. O núcleo de crítica do festival contou com a presença de críticos da região Norte e Nordeste, sendo eles: Daniel Guerra (Revista Barril), Lilli Lucca (Filé de Críticas), Lorenna Rocha (Quarta Parede) e Ítalo Rui (ArteDocumenta)