#01 Cena e Censura | Corpo: uma presença/potência que assusta
Arte – Rodrigo Sarmento
Por Matilde Wrublevski
Mestranda em Artes da Cena (PPGAC/UFRJ) e Especialista em Gestão e Produção Cultural (FGV)
“Porque o corpo ainda assusta tanto?”, inicio este texto com um questionamento do artista Maikon Kempinski, detido em Brasília pela polícia militar quando apresentava a performance DNA de Dan em que uma de suas características era a de que ficar nu em um espaço público. Voltarei a esse exemplo mais a frente. Por agora, acredito ser necessário se aprofundar na questão deste corpo que assusta. Que corpo é esse que causa tal reação? Ouso dizer ainda mais, ele causa sério incomodo e desconforto. Neste cenário, pode ser visto três peças que formam esta situação: o espaço público, a presença de corpos a vista de outros, a presença de um corpo nu.
Nossos corpos possuem uma potência relativa simplesmente a sua presença no espaço. Essa potência é amplamente utilizada como estratégia na ocupação de espaços públicos, estes que possuem formas específicas para manter a ordem ao abrigar diferentes indivíduos. Isto é, na esfera pública existem coreografias e modos de vivência a serem seguidos. Eu enxergo o ato de ir para rua e ocupar um espaço que também lhe diz respeito, como antes de tudo, uma vontade política de tornar-se responsável pelo mesmo. Pode-se dizer também que existe uma vontade de se relacionar em coletivo. A potência da qual falo pode ser facilmente vista em manifestações que acontecem em ruas e praças. É importante dizer, então, que esta presença, por si só, causa incômodo. Muito incômodo. Não apenas em políticos, governantes e nos órgãos responsáveis pela ordem pública, como também nas pessoas que cruzam essas ruas.
Os espaços públicos, há muito tempo, são palco e cenário de diversas manifestações artísticas, assim como as figuras que o compõem, transeuntes, policiais, moradores de rua etc. O teatro, com sua tradição de espetáculos de rua, possui diversos momentos onde a censura se fez presente. Essa trajetória é muito longa e não precisamos nos debruçar aqui nela, pois acredito que para nós é importante observar o presente. Para pensar como hoje, no ano de 2017, o simples ato de ocupar um espaço público se faz pertinente e como atores ou coletivos de teatro com trabalhos já consolidados ainda sofrem represálias de instituições que “garantem a ordem” nas ruas. Os motivos variam: desde ter nas mãos documentos legais que viabilizam a performance, até mesmo sobre afirmações de que teatro é para ser feito dentro de edifícios.
Até agora, temos um caminho com questões bastante complexas sobre a relação entre essas presenças e um espaço comum a todos. Ao adicionarmos a participação de um corpo nu, que se mostra, que se faz ver, trazemos novas faces à problemática e requer um olhar mais apurado. Primeiro, porque é preciso entender que corpo é esse. Estamos falando aqui de artistas que possuem em suas peças ou performances a figura dema pessoa sem roupas. Porém, mesmo atrelado a isto o que se vê, antes do personagem ou da performance, é o corpo do artista. Deste modo, o desconforto gerado parece vir de um deslocamento parcial do contexto em que a ação está inserida. Antes mesmo do público se questionar sobre quais outros pontos são levantados ou quais são os outros elementos utilizados, percebe-se que existe um juízo dedicado somente a questão do corpo nu.
Ao escrever o parágrafo anterior e me questionar sobre as questões e dificuldades de se trabalhar com o corpo nu em espaços públicos me recordo que este é um ponto delicado não apenas do lado de fora dos teatros, mas também o é dentro das paredes do edifício. Visivelmente a nudez do artista apresenta menos polêmica e é melhor recebida quando se faz presente em cima de um palco, ou seja, em espaço institucionalmente dedicado à arte. No entanto, mesmo dentro deste cenário específico é comum observar discussões sobre como a nudez não deveria ser gratuita e deve ser muito bem justificada, passando também por questões como uma figura que pode se tornar vulgar. O corpo nu, por si só, parece ser um elemento que o público exige mais cuidados do que outros.
Quantas oportunidades você teve de olhar ao vivo o corpo do outro, com calma, sem julgamentos por estar olhando e sem interesse sexual, apenas observar diferentes corpos? Esse momento não é algo fácil de existir e pode ser uma experiência muito interessante, principalmente se você tiver a oportunidade de ver vários corpos juntos. Eles são tão diferentes, coisa que teoricamente você sabe, mas ao ver você toma uma consciência maior.
Pensando no contexto do público de artes em geral, ainda é errado ver o corpo nu de outra pessoa? Porque se teme tanto a nudez? Dentro dessas perguntas, podemos pensar como a nudez de um artista no espaço público potencializa a presença do próprio artista, que nesta condição, existe exatamente com o propósito de ser visto e se relacionar com o outro. Nossos corpos, mesmo atualmente, ainda são alvos de reflexão sobre o que é correto e respeitoso de ser feito com eles, desde o quanto deve ser mostrado e que tipo de relações e afetos podem reverberar. É inevitável passar pela sexualização ou não, independente da ação que está sendo desenvolvida, esta característica afeta homens, mas se faz especialmente presente em corpos femininos. Eu acredito que, ao trazer esta potência para perto do público, principalmente o público espontâneo que caminha nas ruas, a reação pode ser de estar vendo um ato obsceno ou impróprio.
Será este um sintoma de um estado maior de não relação ou não reflexão sobre a ação que está sendo presenciada? Isto é, ao observar o corpo nu, existe um processo para perceber em que contexto ele está inserido? Existe um reflexão que antecede, ou acontece até mesmo junto, de uma percepção que envolve a moral e a ética?
Apresento então, três exemplos onde me parece que a nudez é trabalhada para aprofundar a relação com essa presença potencializada, através da possibilidade de um contato de longa duração.
No caso da performance de Maikon Kempinski que foi interrompida aos 30 minutos (originalmente tem duração de 4 horas), acusada ser um “ato obsceno”. Algumas famílias com crianças que passeavam pelo local ficaram revoltadas. Dito isto, questiono, neste contexto, é errado uma criança ver um adulto pelado? Essa pergunta pode parecer um pouco polêmica, mas realmente acho necessário fazê-la, pois estamos tratando de uma ação feita num espaço onde circulam pessoas de todas as idades. Além disso, é um fato corriqueiro em muitos casos de performances em locais públicos.
O espetáculo Isso te interessa?, da Companhia Brasileira de Teatro (PR), foi desenvolvido através da adaptação do texto Bom, Saint Cloud da autora francesa, Noelle Renaude. Ele está em cartaz desde 2011, circulando por diversas cidades brasileiras e esteve em 2012 no 15º Festival Recife do Teatro Nacional. A peça trabalha questões familiares através de quatro personagens, mostrando acontecimentos cotidianos ou marcantes. Os quatro atores estão nus por todo o tempo, exceto pelas meias e sapatos, imagem que por si só causa estranhamento ao expor boa parte do corpo, justamente a que classifica uma pessoa como estar nu, e esconder uma parte em que sua exibição é socialmente aceitável.
A montagem do Grupo Oficina (SP) de Macumba Antropófaga é outro exemplo. Esta peça faz referência à trajetória do movimento antropofágico, abarcando também o atual processo político vivido no Brasil e Estados unidos. Como é de costume, o espetáculo tem duração de 5 horas e boa parte dessas horas, os atores passam nus, interpretando personagens ou cantando e dançando.
Acredito que há algo em comum nesses espetáculos, onde os atores permanecem nus por um período de tempo mais extenso, contribuindo para a construção de um olhar mais receptivo e reflexivo. Na realidade em que vivemos, estamos vestidos quase o tempo inteiro, nos relacionamos muito pouco com outros corpos nus que não seja de uma forma sexual. Deste modo, o olhar passa por um processo ao ser confrontado por uma imagem de um corpo desconhecido, nu e que se coloca à disposição da observação. O encontro do olhar do público passa pelo primeiro embate, onde surge a surpresa, o constrangimento, a euforia ou ainda outras sensações. Esse momento sendo vivenciado de modo expandido dá oportunidade ao espectador de construir um processo a partir desse encontro.
Assim como o título deste artigo sugere, o corpo é uma presença que assusta. Ela está atrelada a valores morais e condicionantes. Então, é importante compreender e pensar que, desvincular e até mesmo expandir essas noções, é um processo. Sendo então, muito complicado quando o artista ignora essa realidade, principalmente ao considerar que tipo de público será recebido. Acredito ser importante o espectador poder passar por esse processo e até mesmo, confronto. A nudez é uma questão complexa e mesmo entre artistas na condição de espectadores, é exigida uma justificativa plausível para ser utilizada em cena. No entanto, ela é recebida de um modo diferenciado do que quando se trata de um público, onde seu cotidiano não se relaciona muito com as artes.
Após o primeiro momento, a nudez passa a não ter mais um caráter de algo novo ou estranho. Apesar da imagem do corpo ser amplamente utilizada pela mídia, a sua presença ao vivo ainda é mais problemática. Um processo de descoberta em como aquele corpo pode afetar, quais sensações ele desperta. Os três exemplos citados aqui trazem os atores e performers em ações que “dão tempo” ao espectador para minimamente acostumar-se com a nova situação, acredito até que exista, após o primeiro impacto, o movimento do espectador que se encaminha para explorar este corpo. No caso da performance de Maikon Kempinski e da peça Isso te interessa? é muito interessante ver que a imagem dos corpos não está associada a ações ou contextos sexuais, então, o exercício de olhar estas figuras de uma forma mais natural e com menos estranhamento acaba acontecendo. Este processo acontece ao ponto da própria nudez tornar-se figurino e uma composição com naturalidade dos personagens ou da performance. No espetáculo Macumba Antropófaga a proposta é diferente, pois, imagens e gestos evidentemente sexuais são amplamente utilizados ao longo da peça. No entanto, pelos atores permanecerem em cena e transitando entre personagens, gestos, ações, cantos e danças que podiam ou não explicitar a sexualidade, a gama de proposições recebidas pelo público era muito grande e diversa. Deste modo, propiciando a construção das mais diversas relações e olhares, a “convivência” proposta, nesse período de tempo mais extenso (no mínimo 1 hora), apresentados nos três exemplos, parece ser uma questão chave para este processo.
É claro que trabalhos artísticos que envolvem nudez e não possuem as mesmas condições temporais também são importantes e contribuem para a construção de novas leituras sobre o corpo. No entanto, a questão que coloco aqui é a relevância de trabalhos cuja duração oportuniza este processo de descoberta de novas relações com o corpo nu. Pois, trata-se de longo caminho que busca a expansão das relações, sexualizadas ou não, por um trato mais naturalizado, onde a nudez e o próprio corpo se desvinculem de julgamentos condenatórios. Veja que talvez a questão aqui seja a diferença entre o tempo que é necessário para públicos diversos construírem suas próprias relações a partir de experiências prévias tão divergentes. Pensar a presença nua, existe exatamente para trazer essa presença do corpo.