Crítica – Acontece enquanto você não quer ver | Uma cena fluida para tempos fluidos
Imagens – Divulgação
Por Raphael Bernardo
Graduando de Licenciatura em Teatro (UFPE)
O grupo teatral CenaOff celebra junto à Mostra Outubro ou Nada os dois anos de trajetória do espetáculo Acontece enquanto você não quer ver. A cena nasce das inquietações dos atores Daniel Barros e Fabio Calamy, que dividem a cena e juntos assinam a dramaturgia e encenação do vigoroso trabalho.
“Na escuridão, tudo pode acontecer, mas não há como dizer o que virá. A escuridão não constitui a causa do perigo, mas é o habitat natural da incerteza — e, portanto, do medo” (BAUMAN, 2008. p. 8). Espremidos na estreita escada do Edifício Texas, estamos todos mergulhados na escuridão: uma pequena luz de lanterna nos guia e uma voz forte nos passa as instruções, é preciso passar por uma pequena revista, o popular “baculejo”. As sobreposições de grades, portas, porteiras, fechaduras, cadeados, câmeras e força humana tentam impedir que o medo entre para o lar, mas os tempos líquidos, como já dizia Bauman, nos mostram que isso é tarefa quase que impossível. O medo escorre pelas rachaduras e fissuras das portas, entra sorrateiramente e divide a mesa de jantar com o dono da casa, “o medo é o patrimônio da família”. Hoje não terão sorte, Earl Shriner— O Esmasculador— conseguiu transpor as barreiras, subiu as escadas e vai comer bolinhos de carne com eles.
As portas da casa nos são abertas e mergulhamos no primeiro ato do espetáculo, Bem Guardado, inspirado no conto “Pequenas distrações”, de Gregório Basic. Trata-se de um pequeno recorte do medo domiciliar — aquele que alimentamos como bichinhos de estimação em favor de uma ideia de segurança —, que nos faz abrir mão de nossas liberdades e cada dia mais nos tornar os reféns da história. Os atores trazem para a cena o cotidiano absurdo de uma família consumidora voraz da indústria de segurança, que, para proteger a inocência de uma jovem de 15 anos “perigosamente distraída”, colocam em risco as próprias privacidades.
A dramaturgia do segundo ato é criação do ator Daniel Barros, uma escrita que mistura fatos de sua memória com retratos do seu imaginário, memórias que nem mesmo ele tem certeza de serem suas. Várias imagens de violências nos são servidas, a cena fica indigesta, o bolinho de carne começa a não cair tão bem no estomago. As imagens das violências cotidianas, que comumente nos são servidas entre uma refeição e outra nos boletins policiais, são postas em cena afirmando o seu caráter de espetacularização. A dramaturgia apresenta-se como uma ação produzida na cena e pela cena, gestada por um trabalho forte na sala de ensaio que é refinado a cada encontro com o espectador.
A intermídia é um recurso forte da encenação, que se utiliza, em vários momentos, de projeções de vídeos para colaborar com a construção da narrativa. Algo que transborda para além da cena, através dos “filmes de extensão”, que são pequenos vídeos, disponibilizados pelo grupo na internet, onde se expandem as histórias postas na cena. Assistir a “Acontece enquanto você não quer ver” é vislumbrar uma “articulação polifônica” (CAETANO, 2006) onde os enunciadores misturam-se com seus enunciados, aproximando a obra de seus criadores, tendo o trabalho dos atores como o grande norteador para a construção da cena. A encenação é guiada não só pelos aspectos estéticos próprios da cena, mas por uma ação política, pois pensar um teatro concebido em um espaço alternativo em Recife é uma ação de engajamento e resistência. Vida longa ao CenaOff!
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
CAETANO, Nina. A textura polifônica de grupos teatrais contemporâneos. Sala Preta, São Paulo, v. 06, 145-154, 2006.