Crítica – Bando | Dança que ninguém quer ver ou uma estratégia de sobrevivência?
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Imagem – Brunno Martins
Por Anna Clara Monteiro
Bailarina e Licencianda em Dança (UFPE)
O espetáculo Bando: dança que ninguém quer ver, da Cia. Gira dança poderia muito bem ser intitulado como Bando: dança que prende a gente. Numa pegada de jogos de improvisação, eles exploram, através das possibilidades dos seus corpos e da construção no coletivo, a ideia do bando.
O Gira Dança se tornou um dos coletivos de dança mais atuantes do Rio Grande do Norte. Desde de sua criação, em 2005, em Natal, vem se propondo a pesquisar uma linguagem própria na dança contemporânea a partir da composição com múltiplos corpos como parte do trabalho. Na prática, isso se deu com a formação de um elenco de bailarinos com e sem deficiência física, que possibilitou uma investigação em torno dos limites e das possibilidades do corpo.
O espetáculo Bando: dança que ninguém quer ver surge em comemoração aos 10 anos do Gira, em 2015, e a intenção é expor os processos criativos e os corpos dos envolvidos, apresentando situações coreográficas e de erros coreográficos em que eles se reconheçam enquanto bando, reconectando-se ao que o coletivo propõe.
Quando entramos no teatro, eles já estão em cena, se movimentando, com roupas pretas e alguns materiais, como barras de aço, bases de borracha preta e uma bacia de metal, que os bailarinos deslocam pelo palco, como um bando, um vai e todos os outros o seguem. Em outro momento, espalham-se pelo palco e ficam em quatro apoios, fazendo uma movimentação um pouco animalesca e, segundo o diretor artístico Alexandre Américo, em busca de um uníssono, onde todos se movimentam iguais, juntos. Ele também diz que é o momento de “coreô”, que tem uma sequência fechada, mas que não necessariamente é em uníssono, por mais que eles tentem, pois não conseguem se movimentar de forma exatamente idêntica, sendo uma grande falha positiva do grupo.
Ao longo do espetáculo, a plateia acaba também se colocando em estado de alerta (pelo menos eu fiquei). São tantos detalhes e a sensação de que a qualquer momento vai acontecer alguma coisa que não podemos perder. Nessa perspectiva eu percebi, em alguns momentos, que antes de mover as barras de ferro, os bailarinos passavam a mão na ponta de cima, como se quisessem perceber alguma diferença/detalhe entre elas. Em um dos deslocamentos, percebi um pouco de água caindo dali e já fiquei curiosa sobre em que momento aquela água entraria em cena, no jogo, ou não.
Em outro momento, eles vão se colocando em círculo e começam a se locomover avisando previamente o que irão fazer, como: subi, ficando em pé e caminhando; desci, ficando em quatro apoios e se movendo assim; passei – fala o nome de alguém- , dando uma corridinha até chegar à frente de quem foi chamado; fica -fala o nome de alguém -, para pessoa parar e quem a chamou ficar em cima dela de alguma forma; e saí, quando alguém sai do fluxo da roda para descansar e respirar. Os bailarinos se mantêm nessa dinâmica até chegar à exaustão. Em alguns momentos os bailarinos surpreendem a gente ficando em cima dos outros em pé, com a ajuda uns dos outros ou até sozinhos passam correndo pelas costas dos que estão em quatro apoios e dão grandes saltos. Um momento de entrega e estado de alerta de todos os envolvidos, inclusive da plateia.
Mais uma vez, Alexandre Américo faz a definição desse momento com a analogia a uma dramaturgia do martelo, que bate várias vezes e vai se transformando, e não tem a pretensão de ser exitoso e limpo, perspectivas que Américo enfatiza que não fazem parte do vocabulário do grupo. Acordos e regras são estabelecidos, assim como são provocadas as dificuldades e qualidades de cada um em cena, pois são 10 minutos de corrida em círculo durante os quais Marcondes pode estar ou não na cadeira de rodas, Jânia tem que correr o dobro de Aninha e de Samuel; e aí eu me dei conta: cadê Joselma? ela não estava na apresentação do TREMA!, e tive a curiosidade de questionar como seria para ela, com deficiência visual, estar presente nesse momento da cena? Não tenho dúvidas que ela teria sua forma de participar e acredito inclusive que a fala utilizada na cena seja uma estratégia de incluí-la na movimentação.
Um dos momentos mais emblemáticos para mim do espetáculo é quando finalmente a água aparece (e lembro do meu amigo ao lado se questionar: de onde essa água surgiu? eu sabia do mistério). Os bailarinos vêem a água que estava em algumas barras de aço na bacia de metal, todos seguram a bacia e apenas um bailarino vai encaixando as barras de aço nos corpos dos bailarinos. Um momento de tensão, esforço físico, pois não é fácil se locomover e segurar a bacia cheia d’água tentando não derramar e administrar as barras de aço que ficam nos ombros, entre as pernas, nas axilas e em algumas mãos, levando em consideração que eles já estão cansados. É um momento de trabalho coletivo, onde eles estão juntos, sem pressa, nessa força tarefa.
Para fechar, mais um momento de tensão que prende a gente é quando Álvaro, numa ação solística, fica em cima das barras de aço, que estão deitadas no chão, e vai tentando se locomover sobre elas. As barras correm e conseguimos ver o trabalho de tônus muscular dele, para se manter em pé e não perder as barras sob seus pés. E mais uma vez é um corpo exposto à exaustão. Em seguida, ele mantém seu solo e faz um trabalho de quedas. Mas não era bando? E agora ele está só? É mais uma provocação do grupo para pensarmos que nunca estamos só, a coletividade é uma estratégia de sobrevivência, pois juntos, em bando, conseguimos aumentar nosso grito de esperança.