Crítica – Cabaré Diversiones | Cabaré Diversiones: o passado no presente
Imagens – Wellington Dantas
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor Adjunto do curso de Licenciatura em Teatro (UFPE)
Tive a oportunidade de rever, dentro da programação do 22o. Janeiro de Grandes Espetáculos, o último trabalho do querido e multifacetado Henrique Celibi. Em Cabaré Diversiones, o talentoso artista assina o projeto de cenário, das coreografias, de figurino; o roteiro, a trilha sonora e a direção. O espetáculo se propõe a trazer ao presente o que foi no passado o Vivencial Diversiones, grupo teatral que deixou, nos idos da década de 70 e início de 80, marcas significativas na cultura local e nacional. Ninguém melhor do que Celibi para fazer essa evocação, único artista da produção que pertenceu ao grupo de origem.
Grande satisfação foi ver que o Teatro Apolo estava quase lotado. Antes de abrirem a porta que dá acesso à sala de espetáculo, a fila seguia por todo o quarteirão da rua Apolo onde se localiza o teatro. Um público particular: rostos que me fizeram remeter à geração que viveu e que acompanhou a trajetória do Vivencial; ou de pessoas/artistas que adotaram a estética e o estilo irreverente do Vivencial; ou mesmo de um jovem público curioso por conhecer o que fora o Vivencial. A atmosfera desse grande encontro – artistas e público – era de celebração.
O espetáculo adotou o formato de teatro de revista, com uma dramaturgia constituída de uma colagem de textos de Carlos Eduardo Novaes, Glauco Matoso, Fernando Pessoa, Luiz Fernando Veríssimo, Guilherme Coelho e do próprio Henrique Celibi. O diretor se valeu de muitos textos e cenas da época áurea do Vivencial, acrescentando-lhes alguns outros novos. Tal como no Vivencial, a ironia, a galhofa e o deboche permeiam os textos e a cena desse Cabaré Diversiones, para falar, através do riso, de muitos assuntos sérios de nosso cenário político e cultural. Inegavelmente, como bem pude constatar, o espetáculo proporcionou ao seu público momentos de diversão e de alegria. Todos os artistas estavam empenhados e se divertindo em fazer esse trabalho. E esse clima contagiou os espectadores.
Também aconteceu de eu confirmar algumas impressões e questionamentos que me vieram da primeira vez que assisti à peça. Valho-me deste espaço para compartilhar essas questões, a fim de poder contribuir, de alguma forma, com um debate sobre o trabalho desses respeitáveis artistas. Desde logo, falo que, infelizmente, não fui da geração do Vivencial Diversiones. Sou de uma geração posterior à do grupo e, por isso, não vivi seu sucesso. Do grupo, conheço o que dizem as testemunhas vivas e os livros que tratam da época. Conhecimento que vem revestido por um mito, do qual não posso escapar. Meu questionamento vem desse espaço de quem conhece a trajetória do Vivencial pelas diversas e contraditas narrativas.
Primeiramente, a aura do Vivencial me chegou imbuída do elemento da transgressão. Estamos tratando de um grupo que ficou conhecido pelo desbunde na subversão dos valores estéticos e socioculturais dos anos 1970. O clima político era de repressão e os artistas que faziam parte do Vivencial Diversiones rasgavam a malha da moral burguesa, com comportamentos desbocados e muito maliciosos, ao mesmo tempo que sensuais. Sensualidade expressa no erotismo dos corpos em exposição. As fotografias que nos chegaram revelam corpos que, em pleno regime de exceção, vicejavam no solo úmido e costeiro dos manguezais, no afã da liberdade a qualquer custo. Liberdade de expressar o desejo, a voz da subalternidade. Liberdade de ser feliz.
Mais de três décadas se passaram, e muito já foi conquistado quanto à liberdade política dos corpos e da expressão dos desejos. Mais de três décadas se passaram, e estamos assistindo no Cabaré Diversiones corpos abundantes em exposição. A mim ficou a pergunta: qual o sentido desses corpos, muitos deles formados em academia de ginástica (belos, por sinal), no contexto contemporâneo? Nesse espetáculo, me pareceu que os corpos perderam o caráter político inerente aos dos artistas que fizeram parte do Vivencial. Porque outro é nosso atual cenário social, político e estético. Se antes os corpos expostos assumiam naquele grupo um caráter de transgressão, dado o contexto de constante vigilância da época, o que vem a expressar hoje, numa época em que temos nas mais diversas mídias a exposição desenfreada de corpos em abundância? Trocando em miúdos, o que os corpos desses artistas do Cabaré Diversiones estão transgredindo?
Esses questionamentos me envolveram, pois minha expectativa, ao ler o depoimento de Celibi sobre o espetáculo em foco, era de encontrar o passado no presente, ou seja, de conferir uma leitura contemporânea do fenômeno do Vivencial Diversiones. Mas o que pude constatar foi que esse passado recebeu no presente um olhar nostálgico, de recuo no tempo, sem redimensioná-lo às expectativas e questões contemporâneas sobre a cultura propriamente dita, sobre gênero, sobre sexualidades. Um retrato destituído hoje da força e do impulso da transgressão que marcou uma época de nossa história teatral. Se o propósito de Celibi é dar continuidade ao projeto de retomada da estética do Vivencial Diversiones, creio eu que uma aprofundada pesquisa a respeito do que vem a ser a transgressão nos dias de hoje possa vir a contribuir para o intento.
O que escrevo são pensamentos de um entusiasta do trabalho de Celibi. Questões à margem de quem pensa o teatro e deseja sucesso ao trabalho e ao grupo. À margem. Até porque, do ponto de vista da recepção, Cabaré Diversiones garantiu ao público momentos de deleite e de risada farta. Cabe agora ao artista decidir: contentar-se com a resposta efusiva do público que clama por entretenimento, ou agregar a isso um discurso estético e político de transgressão, de fato, como o que caracterizava o trabalho do Vivencial Diversiones.