Crítica – Cara da Mãe | Um mergulho no útero abissal
Imagens – Divulgação
Por Pedro Rodrigues
Graduando em Licenciatura em Teatro (UFPE)
O espetáculo de dança Cara da mãe é resultado de dois anos de pesquisa do Coletivo Tenda Vermelha. O dispositivo de criação partiu das inquietações das bailarinas sobre as jornadas do feminino, com foco no desafio da maternidade. Uma das fases da pesquisa foi as visitas aos espaços onde elas se encontravam com pessoas de realidades distintas, mas envoltas no mesmo tema. A diretora do espetáculo, Luciana Lyra, escreve no programa do espetáculo, entregue aos espectadores:
[…] adentramos às salas de ensaios vivenciando procedimentos mitodológicos de criação, saímos ao campo, desenvolvendo pesquisas artetnográficas com mães nas comunidades da Várzea, do Coque e do Cais do Parto, formando, por fim, um clã constituído por nós e outras artistas parceiras […]
Os termos, até então desconhecidos, presentes no texto (“mitodológicos” e “artetnográficas”), substantivam as formas de trabalho peculiares da encenadora. O modo de pensar e realizar o processo é carregado de métodos/formas já presentes nos trabalhos de Luciana. A artista, que também assume a função de dramaturga no espetáculo, não faz diferente no que diz respeito ao trato com o texto. Ela comenta: “a mim coube responder também aos ecos do chamado a esta jornada, dirigindo e textualizando o nosso filho chamado Cara da mãe”.
O que poderíamos chamar de texto, ou roteiro, é definido, por ela, como “movimentos tramados”. A escritura divide o espetáculo em um prólogo, sete movimentos e um epílogo. Ela mantém as tradicionais formas da dramaturgia clássica (prólogo – cena introdutória em que o tema em questão é exposto – e epílogo – cena de desfecho, término da representação) e nomeia de “movimentos” o que podemos entender por cenas, ou subdivisões de um único ato, com alguma lógica fundamentando a composição dos blocos, seja por sentidos estéticos, ideias temáticas, coreografias específicas.
Cada movimento, definido por um título poético, descreve indicações de ação, de elementos sonoros e visuais e de relação das bailarinas com o público, além de conter o texto-palavra, presente em todos os movimentos, a ser falado/cantado por elas durante algumas coreografias, individualmente ou em coro. Compor a escritura do espetáculo de um modo diferente dos padrões linguísticos do dramático tem sido uma recorrência nos processos de criação teatral. A estrutura dramatúrgica de Cara da mãe é um exemplo de como descobrir novas formas de registro da tessitura que baseará todo o trabalho cênico, a ser levado ao encontro com o espectador. Segundo afirma a professora Sílvia Fernandes, em um artigo sobre o texto teatral contemporâneo:
[…] tudo o que aparecia até o final do século XIX como marca inconfundível do dramático, como o conflito e a situação, o diálogo e a noção de personagem, torna-se prescindível quando os artistas passam a usar todo tipo de escritura para eventual encenação, na tentativa de responder às exigências de tema e forma deste final de século. (2001, p. 69)
Ela se refere à produção de dramaturgia no final do século XX, que continua avançando, cada vez mais, nesse sentido, no século XXI. Foi justamente esse desejo criativo de falar sobre o que move, o que pulsa, que as bailarinas do Tenda Vermelha decidiram tratar sobre o tema da maternidade, algo tão marcante nas suas trajetórias individuais e nas de muitas outras mulheres. Qualquer estímulo pode dar início à necessidade de escrever um texto, contanto que haja a inclinação artística de pensar o teatro como espaço de partilha; ou seja: encontrar a conexão do que o artista sente com o que os outros sentem, pretendendo que os futuros espectadores sejam cúmplices do criador, no momento do encontro.
Sobre a influência do conteúdo contemporâneo na forma de fazer dramaturgia, Sílvia Fernandes diz, ainda:
A forma dramática, além de expressar um sentimento de época, sempre revelou uma prática cênica, um tipo de desempenho e uma determinada imagem da representação. A qualidade do espaço, o estilo de atuação e o modelo de fábula que o teatro estava apto a contar sempre foram fatores determinantes da escritura do dramaturgo. (2001, p. 71)
É uma nova forma de escritura que nasce para dar conta de um teatro que se valide, que se sustente no mundo contemporâneo. Para o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1989-1956), “hoje em dia, para que essa reprodução [do mundo no teatro] se torne, de fato, uma vivência, exige-se que esteja em diapasão com a vida” (1978, p. 5).
Para poderem construir o espetáculo Cara da mãe, as bailarinas-criadoras passaram por um longo tempo de pesquisa, indo ao encontro de várias mulheres (mães experientes e mães jovens, parteiras, doulas), buscando adentrar em outros espaços nos quais a maternidade é valorizada e encarada como questão central. Além disso, entraram em contato com as obras Libertem a mulher forte e Mulheres que correm com lobos, de Clarissa Pinkola, descobrindo e investigando os tipos de mães apresentados pela escritora americana.
O trabalho da dramaturga Luciana Lyra foi acompanhar esses encontros, conduzir os “procedimentos mitodológicos de criação” em sala de ensaio e, finalmente, compor a escritura que permearia toda a cena. Dessas etapas, podemos destacar: a maneira de composição processual do texto, permitindo que a dramaturga o fosse escrevendo processualmente, até a versão final (ou inicial); a integração das bailarinas no processo de elaboração do texto (por isso chamadas “bailarinas-criadoras”); o fato de a dramaturga ser a diretora do espetáculo, marcando o texto com resoluções cênicas da encenação (desde materiais a serem usados à imagens a serem construídas) e proporcionando um trabalho contínuo de dramaturgia – uma oportunidade a mais para aprimorá-la.
Em seu artigo O direito ao teatro, o ator e diretor Walter Lima Torres comenta, sobre o termo dramaturgia na contemporaneidade:
O emprego do termo dramaturgia sobressai de maneira a querer nos anunciar que há uma maneira de anotação (ou seria uma partitura?), minimamente sistematizada, cujo conteúdo é veiculado por meio da expressão dos signos da cena. Não é mais a cena que emancipa da literatura, isto é, da dramaturgia, mas são os elementos constituintes da cena que se emancipam da própria cena. […] graças a um novo olhar para a função social do teatro, esses elementos expressam sentidos particulares por meio de uma outra organização dramatúrgica específica, e se liberam assim, eles próprios, do jogo da encenação convencional. Essa dinâmica criativa, que gera uma dramaturgia performativa, passa a ser o fio condutor do processo que se mostra numa etapa de seu permanente work in progress, quando da apresentação deste “experimento cênico” ao público. (2012, p. 267)
Desse modo, Cara da mãe pode ser considerado um espetáculo que já pensa e trabalha com as demandas dos novos tempos: assimilar as formas convencionais e adaptá-las à sua realidade, às suas necessidades, em busca da forma artística que mais seja promotora de experiências estéticas e reflexão do mundo.
É uma convocação ao coreografado e arriscado mergulho no útero abissal, reafirmando o cosmo maternal e resguardando a generosidade oceânica da mãe, na sincera esperança que tenhamos um mundo onde o cuidado de si e do outro faça-se carne e nos dê colo. O colo que dança! (Luciana Lyra)
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Referências
BARBA, Eugenio. O trabalho das ações. In: BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: um dicionário de antropologia teatral. São Paulo: É Realizações, 2012.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
FERNANDES, Sílvia. Apontamentos sobre o texto teatral contemporâneo. Sala preta, n. 1, 2001, p. 69-80.
TORRES, Walter Lima. O direito ao teatro. In: IAACSSON, Marta; PEREIRA, Antonia e TORRES, Walter Lima (Orgs.). Cena, corpo e dramaturgia: entre tradição e contemporaneidade. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2012.