Crítica – Farm Fatale | Teatro e meio ambiente: quando a militância se faz necessária
Imagem – Martin Argyroglo
Por Bruno Siqueira
Professor de Teatro (UFPE)
O tema do espetáculo de Philippe Quesne, Farm Fatale, apresentado na 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, vem a ser muito oportuno para este momento histórico em que estamos vivendo, quando vemos, no Ocidente, uma ofensiva violenta da ultradireita, exercendo um capitalismo predatório e devastador para com o meio ambiente.
Francês, Philippe Quesne é artista visual e tem uma larga experiência como cenógrafo teatral e como expógrafo, fundando, em 2003, a companhia parisiense Vivarium Studio, composta por atores, bailarinos, músicos e artistas visuais. Mas foi com a Kammerspiele de Munique que, em 2019, criou seu Farm Fatale, concebido e dirigido por ele, o qual também assina o cenário, os figurinos e a produção de palco. A dramaturgia ficou a cargo de Martin Valdés-Stauber, sociólogo, economista e dramaturgo alemão.
Em seu enredo, Farm Fatale localiza suas personagens num mundo distópico, onde todos os seres humanos e boa parte dos outros seres vivos haviam morrido. A maioria dos agricultores se matou porque a agricultura industrial destruiu suas fazendas e o glifosato havia tomado conta do mundo, até mesmo deles próprios. Apenas as vacas geneticamente modificadas sobreviveram à hecatombe.
No palco asséptico, todo coberto com um papel branco, entram três espantalhos, somando-se a eles, posteriormente, mais outro, um ativista político. Eles coletam e reproduzem os cantos dos últimos pássaros com um microfone e um pequeno gravador acoplados a um forcado. Esses sons funcionam para lhes preencher o vazio do tempo. Além disso, os espantalhos têm uma rádio, com a qual fazem programas e divulgam suas próprias músicas, tocadas e cantadas no palco, num estilo do tipo neofolk.
A situação é absurda e as personagens fazem lembrar as de Samuel Beckett, em Esperando Godot. No espetáculo de Quesne, elas são clownescas e dialogam para preencherem o espaço vazio do tempo, destituído de qualquer sinal de vida. Suas vozes são mecanicamente distorcidas e seus corpos coloridos provocam, no fundo branco, um forte impacto visual.
Ao contrário das personagens de Beckett, há nesses espantalhos, não obstante o deserto apocalíptico em que se encontram, uma certa alegria peculiar, fazendo com que tenham esperança de que algo possa provocar naquilo tudo alguma mudança. Essa esperança é liricamente simbolizada pelo ovo de cor iluminada que encontram e colocam ao lado dos outros ovos, também coloridos e brilhantes, em cima de um gigantesco carro no qual vão embora, encerrando-se, pois, o espetáculo.
A dramaturgia aposta numa espécie de fábula, animando (antropomorfizando) não os animais, como de hábito, mas espantalhos, cuja história aponta para uma moral. Há um alerta necessário para o fato de que, se continuarmos degradando o meio ambiente, com desmatamentos, incêndios provocados, poluição e agrotóxicos, estamos fadados a nos extinguirmos enquanto espécie, bem como acabar com outras espécies, como já está acontecendo na realidade dos fatos. Olhando para o contexto maior, o ativismo de Greta Thunberg e do Greenpeace, por exemplo, não é mero capricho de uma classe média branca, mas um sobreaviso emergencial de que nossas vidas estão em risco.
Ao final do espetáculo, depois de muito digeri-lo, senti que o grandioso trabalho visual de Quesne apresentava um desnível com relação à narrativa do drama. Pareceu-me que a imagem e a palavra estavam competindo entre si, não havendo a afinidade necessária para tornar a cena potente. O impacto visual muitas vezes fazia-nos perder, por momentos, alguma passagem do texto. É certo, também, que faltou ao texto um maior investimento (pós)dramático, de forma a não permitir que a imagem lhe roubasse a cena, mas que colaborasse para criar uma melhor economia para a cena. De toda forma, Farm Fatale deixou ao público seu recado, ainda que tivesse dividido opiniões.