Crítica – Grãos da Imagem: Vaga carne | Percurso de empoderamento de uma voz
Imagens – Divulgação
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor Adjunto do curso de Licenciatura em Teatro (UFPE)
Sexta-feira. Na programação do 4º TREMA! Festival de Teatro, Grãos da imagem: Vaga carne, com direção, texto e atuação de Grace Passô. Enquanto aguardávamos o início do espetáculo, num Teatro Hermilo Borba Filho lotado, mal percebíamos que éramos invadidos por fios dispersos de uma voz em off, sem discurso ainda articulado. Esses fios passeavam no ar e vinham, através de ondas, envolver nossos corpos, silenciando-nos e conduzindo a atenção do público para o espaço-tempo da performance. Aos poucos, começou a se desenhar um corte de luz na cena. Espaço vazio, atravessado pelos fios de voz.
O corpo da atriz performer vai entrando na cena, titubeante, acompanhando o ritmo da voz, que continua dizendo nomes, verbos, adjetivos. A partitura corporal vai se construindo sobre a partitura vocal, procurando encontrar formas expressivas de ocupação do espaço. Não abrindo brecha para a representação, a cena trabalha a voz, o verbo e o corpo da atriz como elementos de pura teatralidade. Ou melhor, de pura performatividade. Desautomatiza nosso olhar, ávido de narrativas. Nos coloca frente à matéria, ponto de partida da expressão.
Aos poucos, essa voz vai se articulando numa fala, dispersa em princípio, mas já nos fornecendo alguns focos de sentidos. Revela estar entrando em matéria sólida, num corpo, com seus tecidos, músculos, veias e sangue. Essa voz passa a vasculhar esse corpo, conhecendo seus desvãos, invadindo seus porões. Apela para a fala do público, essa outra alteridade, para que lhe forneça palavras. Se esbarra em fragmentos de enredos, se identifica e assume para si esses enredos, num processo árduo de autoconhecimento. Até descobrir que se encontra num corpo de mulher, de uma mulher negra.
Grãos da imagem: Vaga carne é um teatro performativo, um solo, com uma atriz de forte presença no tempo-espaço da cena. Uma atriz que se expõe como um corpo, um corpo de mulher, de mulher negra. Uma atriz negra em busca de sua voz. Voz reverberando uma longa história de silenciamento numa sociedade colonizada, patriarcalista e racista. Voz que procura se compreender como identidade, a partir de fragmentos identitários. Somente esse autoconhecimento permitirá à voz se empoderar, liberar os grilhões que a prendem a um passado de opressão, assumir-se como identidade de gênero feminino, de raça negra. Somente esse autoconhecimento permitirá a essa voz protagonizar uma luta política de gênero e de raça.
Ao contrário de outros trabalhos de Grace Passô, neste, ela partiu do texto já elaborado para a criação da cena. A dramaturgia é de uma poesia impactante: palavras geradas por uma voz, que vai se articulando em fala à medida que o tempo avança, construindo fragmentos de discurso, de enredos, até assumir-se enquanto identidade de mulher negra. O que, a meu ver, confere um valor ainda maior ao texto é o fato de ele sugerir esses sentidos (dentre outros), sem ter precisado recorrer a um discurso político explícito de identidade. Na performance, o próprio corpo negro da performer já constituía esse discurso. E nós, do público, fomos completamente envolvidos na atmosfera instaurada pela performance. Pelo menos, o rosto impactado de boa parte das pessoas que deixavam o teatro denunciava.