Crítica – Estudo nº 2 – Miró | Acendi um cigarro numa cidade de isopor que pegou fogo em poesia
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Imagem – João Maria Silva Jr
Por Guilbert Kallyan da Silva Araújo
Estudante do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFil/UFPE) e Psicólogo Clínico (CRP 02/27050)
A peça Miró: estudo nº 2 do grupo pernambucano de teatro Magiluth esteve em cartaz no Teatro Apolo, nos dias 20 e 21 de maio de 2023, e dá sequência às incursões do grupo em repensar as construções que se desenvolvem nos seus espetáculos teatrais, através das vivências pessoais e profissionais vividas durante a pandemia. A partir dos trabalhos realizados durante o período pandêmico em modelo on-line, o grupo se colocou a repensar as disposições e noções de teatralidade em palco, tanto das questões de espaço e estrutura, quanto das noções de atuação e de construção de narrativa e personagens.
No estudo nº1, Morte e Vida, estreado e encenado em 2022, o grupo se dispôs a investigar, a partir da obra Morte e Vida Severina do escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto, os caminhos possíveis para a construção de um espetáculo teatral, questionando tanto como se estrutura, quanto como se consolida e se executa o roteiro em ato.
Dicionário Miró, parte 1: Alegrismo; Besteiras; Oh my dog ; Ki-suco; Tiro.
Se no primeiro estudo houve uma investigação acerca da espacialização do espetáculo, neste o que temos é um aprofundamento para pensar aqueles que compõem e realizam o fazer teatral através do corpo em atuação, dando especial atenção ao que entendemos como construção de um personagem. Conforme relatado em matéria do ABC do ABC[1], este espetáculo vem sendo pensado desde 2015 quando o grupo se mudou para a região central do Recife, no edifício Texas, situado no Bairro da Boa Vista, onde funcionou como um ambiente de alto fluxo cultural, tanto de peças quanto de figuras artísticas de Pernambuco, dentre os quais o que acabou por se tornar o grande personagem do novo estudo: Miró da Muribeca. Como o próprio Giordano Castro, um dos fundadores do grupo, coloca na supracitada matéria, o processo de construção do Estudo Nº2 possui uma íntima relação com o Itaú Cultural, pois foi durante os ensaios de Fruição em 2021 que o Magiluth começou a abrir o processo de criação de espetáculos para novos públicos a partir de uma nova configuração de realização das peças.
Em Estudo nº2, há uma encenação que se dispõe a pensar, a partir da história e das reverberações da existência de Miró, aquilo que compreendemos enquanto sujeitos de uma peça teatral, dando especial enfoque para o que se entende por protagonismo, antagonismo e o lugar do coadjuvante dentro – ou melhor, à margem – de um espetáculo teatral. Temos aqui uma tentativa de encenação da vida e obra de uma cidade que se fez em corpo. Por mais que tenhamos Erivaldo Oliveira na pele de Miró, Giordano Castro dando as vozes como o autoproclamado antagonista, e Bruno Parmera como o curioso coadjuvante, suas posições não são tão delimitadas a ponto de conseguirem ser demarcadas por um pedaço de fita no palco que, em tese, circunscreveria a atuação a partir do lugar que cada um deles ocupa na cena.
Por estarmos falando de Miró, um homem negro e periférico que fez da cidade seu mundo, a ponto de sua carne se confundir com o concreto que voava feito isopor em suas palavras. Não podemos nos dar ao luxo de pensar a fala que vibra como sendo necessariamente aquela que vem do centro, mas sim daqueles que vêm da margem.
Dicionário Miró, parte 2: Ônibus; Domingo; Marginal; Ponte; Recife.
É curioso pensar como geralmente associamos o lugar de protagonismo com o centro do fenômeno, seja ele de ordem natural ou artificial. Quando vivenciamos uma cheia ou uma enxurrada, costumamos associar de forma direta a forte chuva com a força da água que leva pedaços de história pela força da inundação, mas poucas vezes nos atentamos que a consequência direta é permeada por uma série de acontecimentos prévios e concomitantes ao momento da nossa percepção. Da mesma forma que uma inundação tem mais a ver com a forma de utilização do solo de maneira não planejada, uma peça que se dispõe a colocar uma cidade feita de carne em evidência tem a difícil missão de fazer a margem não só caber no centro, como fazer dela a protagonista. Miró, um poeta que com muito alegrismo poetizava besteiras não tão besteirosas assim, é uma força da natureza que arrasta nossos corações para a margem de nós mesmos através de suas palavras.
A história do ícone muribequense demandava a energia de dois sóis se beijando no escuro de um teatro para que pudesse ser minimamente encenada de forma consoante ao homem que bebia pelas ruas, oh my dog, perdão, ele não só bebia, ele degustava o concreto fazendo-o voar feito isopor pela sua fala enérgica. Quem teve o prazer de conhecer Miró ainda em vida em algum lugar do Recife vai poder afirmar, com toda certeza, que a performance de Erivaldo Oliveira transparece bastante fidelidade de fala e comportamento. Assim que se iniciou a peça, me senti suficientemente confortável para pegar um ki-suco e contemplar o reencontro com o velho amigo de almoço. Iniciada a peça, as palavras se tornaram bala, e Miró pode, finalmente, subir ao palco, para usar suas balas da margem.
O personagem central, ou melhor, periférico, condensa em sua história um relato que, um tanto corriqueiro, faz com que esqueçamos que estas histórias são tão potentes quanto aquelas que costumamos aprender na escola. Miró é a encarnação da poesia feita em carne, cachaça e bala, um filho da desigualdade social que pariu tantos e tantas negros e negras, mas que também se alimenta da morte de gente preta pra continuar a existir. Máquina de segregação. Se de um lado temos a margem tomando o protagonismo, do outro temos o protagonista do cotidiano buscando se firmar como tal na peça: o homem branco cis normativo que encarna o privilégio em sua carne. O contraponto entre eles se torna ainda mais evidente no momento, durante a peça, da seleção para protagonista do espetáculo, quando é colocada em xeque a possibilidade de um sujeito normativo conseguir encarnar, seja no corpo ou na atuação, o direito de ser Miró.
Como poderia ser o protagonista de uma cidade desigual que se fez corpo, um sujeito que reivindica uma pernambucanidade abstrata, falando em leões do norte, e sendo a representação fidedigna de tudo que Miró não representa? Ou melhor, tudo aquilo com o que ele não se apresenta. O protagonista é à margem da margem que faz o centro ser margem da centralidade demandada para falar da história de quem brincava, aos gritos e carinho, com palavras.
A construção dramática dos personagens é cruelmente real, visto que Miró deixa de ser figurante do seu próprio espetáculo e passa ser personagem não só central, como protagonista – mas sempre à margem, pois é à margem que se protagoniza na centralidade – a partir de sua inauguração enquanto sujeito pela interdição violenta do estado. Miró só existe enquanto Miró no momento em que reivindica e recebe seu nome, com título e marcação de lugar, reiterando que este não é senão um corpo marcado geograficamente, que é interditado pela violência para que assim seja, finalmente, inaugurado.
O nome só surge quando há o contato com a interdição, e a interdição é violenta; é como se somente a partir da interdição que os sujeitos pudessem existir. É curioso pensar neste âmbito, visto que, por exemplo, para a psicanálise, o sujeito se inaugura como tal a partir de uma interdição que o pontua enquanto dotado de si na medida que este se diferencia de sua mãe; tornando-se dotado de si na medida em que se diferencia do outro. O nome se torna um delimitador do corpo. Entretanto, tal esquema pressupõe que haja uma realização plena do próprio corpo na medida em que este se diferencia da figura materna, algo que é irrealizável quando pensamos no esquema de construção subjetiva da população negra periférica, cuja tônica do real é a contínua negação das possibilidades de realização de si, sempre sendo violentado em todas as esferas possíveis. Miró, o nome, só surge quando este responde a violência com a poética.
É necessária uma atribuição de nome para que a partir dele se possa existir. Na peça, cada nome é reivindicado a partir de um lugar distinto, que marca não só a fita no palco de quem vai ocupar cada espaço, como também o que este nome carrega de história. Miró é, sobretudo, um filho das mais variadas formas de violência, que se fez presente na presença das palavras, inaugurado na violência, que por vezes a utiliza para ser Leão, mas sem ser um pretenso leão.
Dicionário Miró, parte 3: Hotel; Muribeca; Cachaça; Solidão; Apito
Se o protagonista aqui nasce da margem, ou melhor, veio da margem, digo, está à margem, quer dizer, é à margem, ou melhor, é A margem, tal lugar só se confere na exata medida em que exista um pretenso centro que reivindique a centralidade, que se faça na imposição da demarcação que se legitima através da diferenciação. Quem faz de Miró A margem não é só a posição que este ocupa, mas em como tal lugar se dá na contraparte em diferença ao típico protagonismo das cidades. O preto Miró só é margem porque existe o centro branco.
Quem faz Miró existir é a diferença, e a diferença é marcada pela interdição, e esta o é, de forma objetiva – como poucas vezes algo objetivo pôde ser evocado nessa encenação, ou seria uma história real? Não saberia dizer – por conta da violência: quem faz nossa margem ser centro protagonista é a violência que o antagonista exerce ao se colocar como parte física do lugar de onde vem o coadjuvante, filho do centro, mas herdeiro da brancura que agencia o direito de matar do estado.
É o antagonista quem o faz nascer pela violência. Miró era a cidade que declamava poesias como força e forma de existir. Ao ser colocado e evidenciado no mundo na posição de quem sofre baculejo com a mesma frequência que tomamos um copo d’água, evidencia como este poeta não era somente carne, ele era a própria cidade. O Recife, cidade das pontes nas quais passam inúmeros e incontáveis ônibus todos os dias, carregando milhares de cabeças que pensam, sentem e voam, não é apenas a capital pernambucana, também é a cidade marginal que tem na díade alegria/violência a sua organização diária. Miró era o Recife. E o Recife é uma cidade preta violentada.
O momento em que há o uso do palco em sua totalidade, do proscênio até os fundos, fazendo nossa margem ir até o banheiro se banhar em desespero através da tentativa de se fazer vivo pelas palavras, foi, talvez, o momento em que senti de forma mais contundente a presença da poesia encarnada no palco. Foi como se Miró estivesse em minha frente, e realmente o estava, pois a poesia de bala que tanto permeia a mente quando pensamos na vida na janela do ônibus, pôde ser encarnada e feita em carne através da atuação.
O espetáculo alcança seu objetivo de repensar os lugares que ocupam aqueles que estão em cena. Uma pessoa que fala sobre outra pessoa, para que assim seja um personagem – mas sempre uma pessoa. Quebrei os ponteiros do relógio pra esquecer não só o tempo, como tudo que havia para além daquele teatro, para além daquele reencontro com o velho amigo poeta que encontrava por vezes nas pontes, brincando com as palavras, relatando a solidão pela presença dos versos que rasgavam o silêncio barulhento do Centro.
Mais do que Miró, a peça também é sobre Muribeca, o lugar de resistência que foi destruído como um dos atos antagonistas para lucrar com moradia especulativa. Muribeca era resistência, e essa se fez carne no corpo de uma pessoa, que voava feito isopor.
A peça é sobre a terra que caminhou com nome de Miró, um bairro feito de carne, filho da violência, se alimentava de poesia, bebia cachaça pra matar a sede da terra seca que via sonhos na janela do ônibus…. A peça não é. Ela se faz. Como Miró se fez. Na mordida do mundo com a boca lotada de palavras que rasgavam a garganta enquanto eram digeridas na exata medida em que eram regurgitadas. Um espetáculo que celebra a vida e obra de uma poesia feita de carne, tão humana e intensa que conseguiu fazer uma metrópole inteira caber num único corpo. Miró é ponte, é poesia, é poeta, é música, é tanta coisa ao mesmo tempo. E, sobretudo, é Muribeca.
Notas de Rodapé
[1] https://www.abcdoabc.com.br/abc/noticia/itau-cultural-recebe-temporada-estreia-miro-estudo-n-2-194083. Acesso em 22 de maio de 2023 às 22:00.