Crítica – O Beijo no Asfalto | O visto e o dito em ‘O beijo no asfalto’
Imagens – Américo Nunes
Por Igor de Almeida Silva
Doutor em Artes Cênicas (USP) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
O beijo no asfalto é uma montagem sob a direção de Claudio Lira, contemplada pelo Prêmio Funarte Nelson Brasil Rodrigues – 100 anos do Anjo Pornográfico, que financiou a realização de 17 peças do dramaturgo, reunindo-as na mostra A Gosto de Nelson, que ocorreu de 1 a 31 de agosto de 2012, no Rio de Janeiro, como parte das comemorações em torno de sua obra, e que cumpre, atualmente, temporada no Teatro Apolo, na cidade do Recife. Na peça, o destino fatídico do protagonista Arandir é determinado pelo acaso e pela calúnia. Testemunha do atropelamento e morte de um passante, Arandir beija o moribundo no asfalto em um ato irrefletido de comiseração. A partir daí sua vida é destruída por acusações e reportagens sensacionalistas encetadas pelo delegado de polícia Cunha e pelo repórter policial Amado Ribeiro, que forjam uma trama de crime e paixão homossexual.
A verdade dos fatos torna-se relativa, pois cada um possui a sua. A cada nova versão dos acontecimentos difundida pela imprensa, somam-se outras estórias e versões, constituindo uma espécie de mitologia em torno de Arandir, que se esforça em preservar sua integridade psíquica e moral a despeito da opinião pública. Não importam suas ações, ou o que ele diz sobre si mesmo, mas o que se diz sobre ele. De certa maneira, a frágil e reticente figura do protagonista torna-se apenas uma imagem (ou múltiplas imagens), que se mantém viva na narrativa graças ao perverso poder de fabulação do jornalista Amado Ribeiro.
Arandir existe enquanto objeto de desejo e escárnio, desprovido de “vontade” no sentido clássico de construção de um personagem. Ele é desejado simultaneamente pela esposa, pela cunhada e pelo sogro. No lugar da compaixão, sua fragilidade desperta a volúpia. Além disso, o escárnio do qual é vítima revela uma pulsão sexual reprimida tal o fascínio com que Amado Ribeiro e o delegado Cunha arquitetam sua fábula caluniosa e assediam moral e fisicamente Arandir, assim como os demais membros de sua família, principalmente sua esposa Selminha que, se no texto de Nelson Rodrigues deixa-se claro ser a personagem vítima de assédio sexual no interrogatório do delegado e do jornalista, na encenação de Claudio Lira a ocorrência do estupro é sugerida com ênfase.
Um dos possíveis leitmotiven da encenação recai na crise da masculinidade. Isso porque o “masculino” é colocado em questão. De certa forma, Arandir é um “bode expiatório”. É preciso seu sacrifício para um reequilíbrio do universo heteronormativo que a peça apresenta. Sua suposta homossexualidade atiça a violência e a libido dos personagens, como a perseguição que Arandir sofre no trabalho (ambiguamente violenta e lasciva) ou como a exposição e assédio dos personagens femininos e de seus corpos em cena. Exposição, por vezes, desnecessária, como o nu da personagem Dália (durante o banho presenciado por Arandir), que no espetáculo ganha função meramente ilustrativa. Quanto mais o masculino é ameaçado pelo fantasma da homossexualidade, mais as mulheres são assediadas e seus corpos expostos, vide a profusão de nus em que a genitália feminina é enfaticamente revelada em cena. O que evidencia no espetáculo um universo masculino opressor e predatório.
Fora isso, Claudio Lira valoriza em sua encenação o papel da opinião pública, conferindo ao espetáculo uma organização coral. Personagens menores, que não interferem propriamente nos rumos da intriga, como os colegas de escritório de Arandir, vizinhos e transeuntes, assumem a função de um coro de pessoas anônimas. Vestem-se todos (em diversos momentos do espetáculo) de terno e gravata cinzas, com chapéu e óculos escuros, muitas vezes lendo o jornal – uma possível versão derrisória do oráculo na contemporaneidade. De um lado, há o homem solitário das grandes cidades (Arandir); de outro, a massa coletiva e uniforme que o oprime. Mais do que a calúnia em si é o coro da opinião pública que aniquila o herói. Esse mesmo coro também exerce uma função auxiliar no espetáculo, como se seus integrantes fossem contrarregras, visto que é ele o responsável pela mudança dos elementos de cena, além de ajudar outros atores a trocarem de figurino e personagem diante da plateia. Eles observam, vigiam, por vezes auxiliam; mas, sobretudo, oprimem.
O espaço é preenchido por biombos e portas pivotantes, por onde os atores entram e saem. Ora essas portas representam a cidade – o espaço público – com imagens em vídeo projetadas de portas antigas e decadentes de casas do Recife; ora mimetizam o interior da casa – o espaço privado – constantemente invadido pela rua. Ao fundo, no centro do palco, duas dessas portas tornam-se, em diversos momentos, telões em que são exibidos trechos de entrevistas com pessoas reais nas ruas do Recife, nos quais dão sua opinião sobre o suposto caso do “beijo no asfalto”. Também aparecem em vídeo atrizes da cena recifense como vizinhas fofoqueiras (Clenira Melo, Cira Ramos, Márcia Cruz, Renata Phaelante, Sônia Bierbard e Vanda Phaelante), que prestam depoimento sobre Arandir ou conversam com Selminha.
Em outro momento, aproximando de modo ainda mais satírico realidade e ficção, exibe-se o programa investigativo popular Bronca Pesada, exibido no Recife, ao estilo de outros programas como Brasil Urgente. Aqui, o apresentador Cardinot exibe “reportagem” sobre o “beijo no asfalto”, agora como possível caso de um crime passional. Há ainda, ao longo do espetáculo, a reprodução de programas de rádio noticiando o caso. Por intermédio desses recursos, o encenador deixa em primeiro plano a imprensa inescrupulosa e a opinião pública como força antagônica. O encenador resgata os elementos trágicos e expressionistas implícitos no texto rodriguiano sob um pano de fundo urbano completamente corrompido pelos meios de comunicação de massa que intensificam aspectos torpes da natureza humana e onde o indivíduo não pode sobreviver. A sociedade torna-se então o verdadeiro algoz de Arandir.
A encenação produz ainda um efeito de real, em chave cômica, devido à presença de repórteres e entrevistados reais, que acentua o caráter lúdico da representação, além de procurar trazer a narrativa para a atualidade. Todavia, essa atualização é superficial e problemática. Por um lado, há a repercussão dos fatos por meio da televisão e das mídias sociais, o que inclui no tecido dramatúrgico do espetáculo gírias e expressões típicos do “falar” local, que contrastam com objetos e expressões em desuso, como “batata!” (com certeza!) ou “extra, extra!” (na voz dos jornaleiros), ou um modelo de telefone com fio, que se torna obsoleto diante do universo digital que a peça explora (projeção de redes sociais em cena).
Outra escolha que merece consideração é a opção por um intérprete negro (o ator Arthur Canavarro) para o personagem Arandir. Diferentemente da peça Anjo Negro, cujo protagonista Ismael sente vergonha de sua cor e sua esposa Virgínia, branca, em ato extremo de ódio à raça a qual pertence o marido, afoga todos os bebês mestiços que concebe; em O Beijo no Asfalto, Arandir não é negro, nem há menção ao racismo. Em nenhum momento do espetáculo, os demais personagens se referem à cor do protagonista, nem mesmo quando Arandir é violentamente interrogado pelo delegado Cunha e pelo jornalista Amado Ribeiro, ou quando é assediado pelos colegas de trabalho. A questão do racismo é um signo apenas latente, não explorado pela encenação.
De modo geral, o espetáculo carece de um trabalho dramatúrgico mais profundo e questionador do material textual utilizado. A peça de Nelson Rodrigues nos apresenta uma beleza singular, mesmo que, em muitos aspectos, possa soar datada, no que concerne às questões de gênero e sexualidade, ou mesmo às implicações da calúnia e do assédio moral que se tornaram tão contumazes nos dias de hoje por intermédio das redes sociais, a despeito dos recursos judiciais que foram criados para vigiar e punir as novas formas contemporâneas de bisbilhotice e fofoca. Este trabalho dramatúrgico implica justamente uma “desleitura” do texto primário no sentido de “mostrar a recorrência da mesma situação de fala, outrora e hoje, privilegiar a diferença ou tentar uma relação”.[1]
O trabalho dramatúrgico implica no estudo em relevo da peça, tendo em vista sua representação concreta. Ou seja, o modo teatral, ou a forma cênica, que ela tomará no palco. De acordo com Patrice Pavis, a dramaturgia refere-se ao “conjunto das escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de realização, desde o encenador até o ator, foi levada a fazer. Este trabalho abrange a elaboração e a representação da fábula, a escolha do espaço cênico, a montagem, a interpretação do ator, a representação ilusionista ou distanciada do espetáculo. Em resumo, a dramaturgia se pergunta como são dispostos os materiais da fábula no espaço textual e cênico e de acordo com qual temporalidade”.[2] Em sentido mais amplo, ultrapassa o simples estudo do texto dramático para envolver o par texto e encenação, escritura dramática e escritura cênica.
Este trabalho não foi suficientemente realizado na atual versão cênica de O beijo no asfalto. Por exemplo, o corpo do ator Arthur Canavarro exprime uma virilidade que contrasta com a fragilidade do personagem. O protagonismo que Amado Ribeiro e o delegado Cunha desempenham na peça – personagens muito bem defendidos por seus intérpretes Ivo Barreto e Pascoal Filizola – remete-nos a Othelo, de William Shakespeare, cujo protagonista negro também é levado ao infortúnio em virtude de uma trama caluniosa encetada por Iago, verdadeiro protagonista da tragédia shakespeariana. Todos esses aspectos, este jogo entre o visto e o dito, entre a presença e os sentidos que ela veicula poderiam ter sido explorados pela encenação que nos oferece imagens e ideias bastante férteis. Contudo, elas permanecem matéria-prima bruta à espera de lapidação.
[1] UBERSFELD, Anne. A representação dos clássicos: reescritura ou museu. Trad. Fátima Saadi. Folhetim, Rio de Janeiro, Teatro do Pequeno Gesto, n. 13, abr./jun. 2002, p. 20.
[2] PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.