Crítica – O voo | Um túnel-lente para o luto coletivo
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Imagem – Alexandre Salomão
Por Marilia Deodato
Artista da dança e Licencianda em Licenciatura em Dança (UFPE)
Elis Costa tem trajetória na área de dança, teatro e audiovisual. É licenciada em História pela UPE e em Artes Cênicas pela UFPE. Possui especialização em Dança pela Faculdade Angel Vianna e mestrado em Direitos Humanos (UFPE), tendo tido como objeto de estudo a dança.
Certamente por esta última formação e pelos interesse que a motivaram, a artista tem se dedicado aos temas que surgem do encontro dos campos da dança e dos direitos humanos. Assim, desenvolveu o projeto O mais que humano em nós, criado e executado em tempo de isolamento pelas mídias sociais, e no qual percorretemas da dança e dos direitos humanos em uma série de lives com convidados e convidadas.
Em 2020, no contexto da pandemia do COVID-19 tal como vivida no Brasil, iniciou um trabalho criativo autoral que resultaria na videodança O Voo.. Elis contou que os primeiros passos dessa criação aconteceram durante uma performance on-line chamada COVID-A, idealizada por Valéria Vicente e que contou com mais de 30 artistas do país, em homenagem às vítimas da Covid-19, no momento que o país chegava ao marco de 100 mil mortes em agosto de 2020.
Entender o luto, que é um processo humano e necessário, impulsionou Elis Costa a investigar seus próprios movimentos e a mergulhar dentro de si mesma. A artista compreende “o voo como a capacidade de se transformar e se compreeender para continuar viva.
lis apresentou, por 1h30, o experimento que intitulou naquele momento de Estudando o voo. Após esse primeiro experimento, a artista iniciou a produção da videodança Plantando o voo e depois estreou o resultado de todo esse processo, que culminou na videodança O voo. Palavras de Elis Costa a respeito do processo de criação da obra:
“Tenho me compreendido como uma artista que se interessa em exibir o processo. Como a própria natureza do luto é processual, entendo a estreia do novo trabalho e a partilha de seus passos como inseparáveis. Somos aproximadamente 6 milhões de enlutados e enlutadas hoje no Brasil só por COVID. É muita gente. Ainda assim enfrentamos uma crescente invisibilização na medida que as narrativas oficiais induzem a dúvida sobre o horror que vivemos. Foram 650 mil vidas perdidas, oficialmente, entre elas a do meu pai – e o número segue crescendo diariamente. A ausência do meu pai é concreta e eu a sinto a cada segundo. Para nós, a memória é um lugar imprescindível no caminho pela justiça e reparação necessárias. Há um sentido de denúncia dessa banalização, seja na própria videodança, seja na escolha por partilhar o seu processo […] Gosto de dizer que ‘O voo’ contém as suas fases anteriores, que fazem parte de um mesmo caminho, ainda que seja outro lugar. Os próprios nomes escolhidos das obras já revelam essa posição, assumem o processo, a construção, a artesania”[1].
Para a realização da videodança O voo, a artista contou com uma equipe de profissionais que auxiliaram na cinematografia, na dramaturgia, no roteiro, na caracterização, na trilha sonora, na direção de arte e todas as demais funções necessárias para a construção coletiva de uma videodança. Temos, como seres humanos, a necessidade de permanecer em constante movimento, e em tempos difíceis, como a pandemia da Covid-19, isso faz com que nós nos reinventemos, para dar continuidade à vida
A obra audiovisual de Elis é um convite a mergulhar na imaginação, trazendo a oportunidade de criar e recriar novas possibilidades. A artista expressa, na sua composição, o sentimento que atravessa o seu corpo nesta pandemia; o sofrimento causado pelas rupturas de vínculos significativos de forma brusca; e a consequente sensação de perda, fatores que acabam modificando a realidade.
Neste trabalho artístico, os elementos do audiovisual estão em movimento contínuo: o enquadramento, a iluminação, a fotografia, o som, a câmera, a edição, o figurino, e outros elementos utilizados para a videodança, estão sempre se movendo junto com a artista, contribuindo para gerar no público a sensação que Elis Costa deseja exprimir ao apresentar a obra.
Em tempos de isolamento social, foi uma atitude tão necessária para o combate à pandemia, e em que os artistas estavam impedidos de produzir trabalhos que fossem apresentados para um público presencial, acredito que Elis Costa encontrou uma espetacular alternativa para produzir sua obra e não deixar de fazer sua criação artística, que foi por meio da videodança.
Considero que as pessoas que assistem ao O voo, e chegam a adentrar nos devaneios trazidos pelo tema da obra, sentem-se contemplados pela mesma, podendo inclusive identificar-se com alguns momentos do vídeo, através da percepção de sentimentos expressados pela artista no momento da dança, que nos causam sensações semelhantes.
Dos vários momentos em que pude me identificar com a produção artística, destaco o momento em que a performer está em frente a um túnel. Particularmente, trouxe à tona um sentimento bastante significativo. O túnel, escuro, logo atrás da artista, aflorou a sensação de que estávamos a mercê de acontecimentos inesperados, que fugiam ao nosso controle, nos quais pessoas importantes eram tiradas da nossa vida de maneira violenta, e não fazíamos ideia de quando “chegaríamos do outro lado desse túnel”, ou seja, de quando tudo isso iria passar.
A abordagem foi, na minha concepção, bem original, criativa e bem articulada. A audiodescrição disponibilizada, torna o trabalho inclusivo, sendo acessível para pessoas portadoras de deficiência visual. Uma ressalva é que, a videodança não está disponível na internet para ser acessada a qualquer momento. Aponto isto pelo desejo de ver a obra mais vezes e também indicar para outras pessoas assistirem.
Por fim, acredito que trabalhos como o de Elis Costa, que foram feitos em meio a uma catástrofe mundial, e produzidos de maneira que as pessoas pudessem acessar de dentro de suas casas, foram e são de suma importância para que arte e sua propagação não fossem interrompidas pela pandemia. Assim como também, já antes citado, pessoas pudessem contemplar e serem contempladas por essa arte, podendo identificar-se com a mesma, uma vez que abordam um tema vivido por toda a humanidade.
Referências
Elis Costa reflete sobre o luto na pandemia na videodança ‘O voo’, com temporada on-line. Folha de pernambuco, 2022. Acesse AQUI.
[Videodança] O Voo. Revista Continente, 2022. Acesse AQUI
Para marcar o Dia Internacional da Dança, Elis Costa lança a performance “Plantando o Voo”. Cultura.pe, 2021. Acesse AQUI
Notas de Rodapé
[1] Para ler mais sobre a entrevista de Elis Costa, acesse AQUI