Crítica – Ópera D’Água | Contra a corrente
Imagem – Divulgação
Por Lorenna Rocha
Graduanda da Licenciatura em História (UFPE) e Atriz
O rio e o meu corpo. O rio, o seu curso, seus impedimentos, seus descaminhos, seus impactos, suas quedas. O rio está em nós. O rio somos nós. O rio e a crise da política brasileira. O rio e sua potência tomada por desastres ambientais é tal como nós: corpo em jogo com liberdade ameaçada.
Para entrar no teatro era necessário água. Uma travessia entre baldes e canos levava ao espaço cênico. O local entre atores e plateia era demarcado por um plástico preto. Entretanto, todo o resto era azul, branco e cinza. Em um aparelho de som, músicas eram tocadas pela rádio cujo nome remetia a um universo aquoso: Rádio Encanada. Para além dos trocadilhos, foi nesse ambiente molhado que o Grupo Proscênio (SESC Ler Surubim) apresentou Ópera D’Água, no SESC Santa Rita, dentro da programação do Usina Teatral 2018.
A água que se tornou moeda na cidade fictícia chamada Aqui poderia ser mediadora de relações de qualquer outro lugar. Como objeto de troca, a água, na peça, faz alusão ao dinheiro, objeto endeusado do ambiente capitalista, e produz assimetrias e hierarquias: é sempre possível pensar naqueles que se darão melhor nessa relação. Alguns poucos se banham das gotas – talvez rio – de suor e sangue dos miseráveis. A esses sobram o trabalho pesado, a disputa, a violência e a impunidade.
Toxicamente, a impunidade espalhou-se pela água. Vinculando o racionamento hídrico e a indústria da seca com acontecimentos conhecidos nacionalmente – como o desastre da barragem de Mariana – o espetáculo convida a pensar sobre o tempo-espaço do aqui e agora em nosso país. Não por acaso, também entram na conta de custos e perdas a luta pela sobrevivência dos atores e fatos recentes da política brasileira: a prisão do ex-presidente Lula, o áudio do “Grande Acordo Nacional” de 2016, a bipolarização do país e a retirada de direitos dos mais pobres.
A pressão sobre esse rio é tão grande que parece necessário transbordar. Mas como ser água livre, corrente, enquanto juízes fazem da justiça o que querem, trabalhadores são explorados para garantir sua gota de água em casa e os artistas estão, a cada dia, perdendo liberdade de expressão?
A peça teatral, desde o princípio, foi invadida por água revolta que quebrou a quarta parede. Em um momento específico do espetáculo, há uma cena de interrogatório, seguida da tortura de um garoto que decide se rebelar contra o poder através do rap e da poesia. Há uma alteração radical do jogo cênico, uma vez que um dos atores decide interrompera representação. O microfone, então, é aberto, talvez de forma não bem mediada, para que todos e todas, a partir de suas inquietações, transbordem junto com os atores.
Por não assumirem o corte como procedimento pensado para provocar reflexão e, em vez disso, simularem uma decisão repentina e improvisada – e nada convincente como tal – a intervenção do público não se deu com o potencial que eles pareciam esperar. No silêncio que se instaurou, os atores acentuaram o constrangimento já provocado com apontamentos que soavam até autoritários, como se a mudez fosse fruto de apatia ou alienação política.
Ainda que a realização meio desajeitada desse intervalo crítico tenha provocado uma queda de energia, também é possível dizer que seria difícil demais reunir palavras suficientemente expressivas diante do que tinha sido apresentado até então. O silêncio também serve de lembrete: é preciso coragem para nadar contra a corrente do sistema. Será que temos?
Num ambiente plástico, reconstruído várias vezes através de encaixes e desencaixes, a água corrente de um ato político transbordado estava no palco de forma poética, precisa e musicalmente potente.