Crítica – Ossos
Imagens – Divulgação
Por Bruno Siqueira (Doutor em Letras – UFPE) e Rodrigo Dourado (Doutor em Artes Cênicas – UFBA)
Professores da Licenciatura em Teatro (UFPE)
Espetáculo mais recente do Coletivo Angu de Teatro, Ossos narra a viagem do dramaturgo Heleno de Gusmão de volta a suas lembranças e origens, a pretexto de entregar os restos mortais do seu amante aos familiares, borrando as fronteiras entre música, dança e representação. Mediado por interferência de um coro de Urubus, os fatos são apresentados de modo não linear, embaralhando começo, meio e fim. Uma parte se desenrola num submundo paulistano, povoado por diferentes classes de retirantes nordestinos, e outra se dá na estrada que leva o escritor até Sertânia, no interior de Pernambuco.
Estimulados em experimentar novos formatos de escrita de críticas teatrais, nossos colaboradores os Profs. Drs. Bruno Siqueira e Rodrigo Dourado inauguram, no site Quarta Parede, uma “crítica-diálogo” sobre o espetáculo do Coletivo. Confira a seguir:
Bruno Siqueira
Oi, querido. Estava aqui pensando no Ossos, espetáculo do Angu. Ele me fez lembrar de duas referências: Walter Benjamin, com sua concepção alegórica da História; e a diáspora, pensada na perspectiva de Hall. Duas referências que me ajudam a compreender a proposta do espetáculo. Quer saber por quê?
Rodrigo Dourado
Quero, sim. Pode desenvolver. 🙂
Bruno Siqueira
- Benjamin demonstra que, em direção contrária à do símbolo, a alegoria expressa a visão humanizada, não-ideal, dialética da realidade histórica. Ela deixa ver o homem frente a sua falibilidade existencial. Para ele, a alegoria expressa a História “em tudo o que nela desde o início é prematuro, sofrido e malogrado”. Por isso, na expressão alegórica, a imagem tende a ser fragmentada, expondo as ruínas de uma História despedaçada, humana, distante do clarão divino. Diferente da perspectiva linear dominante, na alegoria, a História é contada pelas suas ruínas. Isso vem a se relacionar com o segundo ponto: a diáspora
- A personagem, o escritor, precisa fazer esse retorno que a experiência diaspórica passou a lhe requerer como necessidade. Necessidade de, através dos “ossos” da história, da sua própria história, reconstruir um significado para sua existência. Sendo que a busca desse significado é desde sempre fadada ao malogro
- Então, a estrutura dramatúrgica opera através das ruínas. Dos fragmentos de uma existência, só flagrados pela memória – ela mesma contaminada pelo deslocamento diaspórico.
Faz sentido?
Rodrigo Dourado
Então, Bruno, acho que faz e muito. Primeiro, eu queria dizer que, dentre os trabalhos do Angu com texto de Marcelino, esse já nasce como um desafio para o próprio autor, o de verter um romance para a forma dramática. É um grande desafio, sobretudo para ele, que já foi tão montado no teatro e só agora se “inicia” como dramaturgo. Nos trabalhos anteriores, Angu de Sangue e Rasif, um conjunto de contos era vertido para a cena e, em ambos, é o fragmento, o quadro, a unidade dramática mínima. Cada quadro traz uma personagem ruminando suas questões. Marcelino chamava de “vexames de personagem”.
Bruno Siqueira
Isto!
Rodrigo Dourado
Esses personagens são sujeitos da margem (seja ela social, sexual, geracional, etc.), que tentam elaborar suas questões, dialogando diretamente com a plateia. Esses quadros tinham muita força, as personagens eram alegorias muito potentes, cada unidade daquela tinha muita autonomia, mesmo que houvesse um sentido macro alinhavando o todo. Agora, acho que o grande desafio de Marcelino foi o de construir um tecido dramático: uma narrativa com enlaces, com algum arco temporal, com diálogo direto entre as personagens, com relações de causa e efeito, etc. Tudo o que a forma dramática demanda. E isso não é pouco. Então, acho que há êxitos e dificuldades nessa aventura em que ele se lançou. E isso faz parte da experimentação.
Pensar a diáspora também é essencial para entender esse drama, que, ao fim e ao cabo, fala de deslocamentos (do autor como alguém que migra para a forma dramática, do nordestino que tenta a vida em São Paulo, do homossexual que sai de seu local de origem para viver sua sexualidade, e, sobretudo, desse caminho de volta, de retorno para o lar).
Bruno Siqueira
Esse paralelo entre a produção anterior do Coletivo Angu com a escrita de Marcelino e a produção atual é fundamental para compreender o percurso não somente do escritor, como também do grupo. Nessa nova aventura do Marcelino junto ao Coletivo Angu, por mais que o escritor opte, na transposição do romance para o teatro, por uma estrutura que problematiza o dramático – quadros com relativa independência e sem ordem causal rigorosa (lembro de Aristóteles), concordo que ele constrói uma carpintaria cuja ordem ainda é mais dramática do que narrativa.
É por aí que entra a referência de Benjamin. E vou ainda além, trazendo à tona a concepção de “mônadas” na narrativa histórica compreendida pelo pensador alemão. As mônadas são entendidas como pequenos fragmentos da História dotados de significados. Juntas, essas mônadas podem contar um todo, muito embora esse todo possa ser contado em um fragmento. Cada fragmento de narrativa trabalha com fragmentos de identidades. Sob os temas que você apontou, transitam identidades: identidade trans, homossexual, artística, identidades fragmentadas como os ossos perdidos de Garcia Lorca.
Agora, compreendo melhor certa inquietação minha enquanto espectador. Apesar de ter sido grata a surpresa de ver essa nova aventura do Marcelino, trago uma problematização para o que eu pude conferir destes resultados estéticos. Se esses fragmentos/mônadas da narrativa dramática trabalham de fato com essas identidades que compõem o sujeito que é o autor, elas me parecem surgir a partir do viés do estereótipo. Quando Benjamin trata das mônadas que compõem a História, ele alerta que seus significados não são apenas ancorados num passado, mas que eles também estão prenhes de futuro, de novas significações.
As personagens chegaram a mim através do estereótipo, o que conforma os processos de significação ao lugar comum das identidades postas em cena. Talvez falte ainda a essas mônadas a “força do relâmpago”, termo do próprio Benjamin, que uso para ilustrar meu pensamento. Ou seja, falta ainda fazer com que essas identidades teatralizadas possam ganhar peso e contribuir para o todo da narrativa dramática. Mas vejo que o Coletivo procurou solucionar isso que me pareceu uma carência da dramaturgia.
Rodrigo Dourado
Então, Bruno, quando você levanta a questão dos estereótipos, eu concordo bastante. Claro que não há como fugir de alguma representação, de alguma imagem. E esse é um grande problema contemporâneo. O teatro tem tentado fugir desse compromisso da representação. Como se fosse possível! Porque, no palco, tudo significa, então, por mais inquieta que seja a representação, ela nunca vai dar conta do todo da experiência, sempre “fracassará”. No entanto, para mim, se no formato do conto, Marcelino consegue mergulhar mais fundo na identidade das personagens. Em Ossos, eu visualizo um trabalho mais superficial, mais planificado. Não que as personagens de Angu de Sangue e Rasif deixassem de ser “tipos”, mas eram tipos que iam além da caricatura, ao menos eu os percebia assim. Em Ossos, a personagem do Garoto de Programa, por exemplo, se desenvolve pouco, sabemos muito pouco de sua identidade. Uma figura essencial para a dramaturgia. A personagem de Estrela também. E o próprio Heleno, o autor-personagem, acaba se tornando uma figura muito plana. De maneira que muitos expedientes da dramaturgia tangenciam as questões profundas, o mergulho nessas figuras.
Bruno Siqueira
Ou seja, questões dramatúrgicas.
Rodrigo Dourado
Exato. No campo da dramaturgia, penso ainda nas ideias de sucesso e fracasso. O primeiro, representado por Heleno, que se torna um dramaturgo de renome, embora fracassado no amor; e o segundo, pelo garoto de programa, que é assassinado. Essas vidas têm em comum a origem pernambucana e o encontro afetivo entre ambos. Mas são absolutamente opostas desse ponto de vista: sucesso e fracasso. Cícero é muito mais vulnerável socialmente que Heleno. Essa díade tem muita potência dramatúrgica, mas eu penso que não se desenvolve. Por exemplo, na viagem de volta de Heleno, trazendo os ossos do amante, um logo trajeto pelo Brasil e pela alma dele próprio, o que se ressalta é seu encontro com o motorista funerário. Um tipo interessante, folclórico, defendido com brilho por Arilson Lopes, mas claramente um desvio de rota, que nos impede de acessar a intimidade de Heleno nesse caminho de volta. Sua motivações profundas.
Bruno Siqueira
Fico realmente muito feliz de poder compartilhar dessa experiência do Marcelino e do Coletivo Angu. Estamos acompanhando a trajetória de artistas de respeito. Quero ler mais textos do Marcelino para teatro. Será que ele tomará essa experiência como inspiradora para voltar ao filão da dramaturgia? Espero que sim.
Rodrigo Dourado
Espero e torço que sim. Sem dúvida, Marcelino é um homem de teatro. E ele tematiza isso na peça, sua inquietação, seus medos como dramaturgo, seu eterno “caso” com o Coletivo Angu. Ele presta homenagem ao teatro, namora com o melodrama e essa é outra camada da dramaturgia que se coloca. Mas, às vezes, acho que o namoro com o melodrama, como homenagem a uma forma teatral por excelência, impede um mergulho possível ali. De maneira que, penso, é um dramaturgo que tem muito poder em construir tipos humanos interessantíssimos e que podem ser aprofundados dramaturgicamente, tanto quanto o são nos contos.
Bruno Siqueira
Quanto à encenação, o mestre Marcondes Lima nos envolve numa atmosfera lúgubre, noir, para expor vísceras. A dramaturgia de luz foi fundamental, a meu ver, para alcançar o underground. As caixas de som, ao fundo, conferem uma precariedade à cena. Nesse caso, o precário me pareceu um conceito em que se apoia a criação estética da cena. Não sei se o uso de microfones, num ou noutro momento, contribuiria para as partes cantadas. Mas isso diz respeito à criação. Não compete a mim, o espectador.
Rodrigo Dourado
Verdade. A sonorização da cena ganharia muito tecnicamente se os caixas laterais ao palco estivessem funcionando. Acho que também valeria a pena pensar nalgum sistema de microfonagem.
Rodrigo Dourado
Para mim, ficou bem evidente a intenção do iluminador, Jathyles Miranda, em ressaltar esse tom noir, de submundo. Ali estão o submundo da prostituição masculina, do sexo casual, da vida homossexual às sombras. A luz também traduz a escuridão da estrada, do caminho de volta ao lar, da incursão pelo sertão do Brasil. A escuridão da morte.
Bruno Siqueira
Great!
Rodrigo Dourado
Há também uma tênue luz que ressalta a teatralidade dos figurinos nas laterais do palco. E, sobretudo, a luz dialoga com as figuras dos urubus, que compõem um coro dark que exalta a morte, que espreita as carcaças humanas, que brinca com a dor da perda. No entanto, reforço que a luz pode ser uma excelente metáfora da dificuldade que a dramaturgia tem em “lançar luz” sobre determinados episódios/personagens. Sim, a escuridão tem uma função simbólica essencial, mas tudo aparece como silhueta, como sombra, sem que possamos ver e conhecer, de fato, as profundezas daquele universo. É preciso fazer dialogar a escuridão com a “claridade”, penso eu, é preciso conflitar mais. Além disso, há uma ribalta que pouco ou nada se utiliza, ela quer traduzir a homenagem ao teatro que o autor ensaia fazer em sua dramaturgia, mas não se realiza. Sobre o coro: o que você acha dessas personagens?
Bruno Siqueira
É uma questão que me intriga. Do ponto de vista dramatúrgico, vejo pouco significado, podendo ser retirado do texto, talvez, sem tanto comprometimento da economia dramática. Porém, vejo que os atores encaram o jogo com muito prazer. Eles estão se divertindo com o jogo de cena. O que nos faz divertir também. Sem comprometer a atmosfera lúgubre que a função de um coro de urubus requer, o jogo dos atores confere uma leveza à narrativa dramática.
Bruno Siqueira
Para o ritmo do espetáculo, essa alternância de tonalidades é produtiva, mas vejo ainda pouca função do ponto de vista da dramaturgia da cena. E você, também ficou intrigado?
Rodrigo Dourado
Eu estranhei bastante o coro dos urubus nas duas vezes em que vi a peça. Inicialmente, meu incômodo tinha a ver com as atuações. Reforço: eu acho o elenco do Angu um bom elenco, no conjunto. Com pesquisa continuada e com grandes talentos individuais. No entanto, me parece que corporalmente e vocalmente, a execução dos urubus é um pouco prejudicada pela falta de preparo físico e vocal. Algo que pode avançar muito nas temporadas.
Em seguida, quero apontar algo que é dramatúrgico, mas também cênico. Há uma clara opção pela ironia, pelo chiste, pelo exagero, pela caricatura, pelo bizarro, pelo queer na composição dos urubus. Eles são quase como um coro de “malditas”, de gente/bicho que se regozija com a desgraça alheia, que zomba da dor do outro, etc. Me lembram os filmes de terror B, as mulheres de Doroteia (Nelson Rodrigues), etc.
Essa opção é boa, produtiva, mas, em dado momento, me parece que o coro tangencia sua tarefa em aprofundar o olhar sobre os acontecimentos. A opção pelo riso irônico e sardônico poderia nos oferecer novas formas de ver os episódios, mas eu penso que a dramaturgia os deixa na superfície e, assim, o elenco e a encenação se esforçam para preencher aquele papel fundamental do coro, mas o riso fica na superfície. Veja bem, eu não tenho nada contra o riso grotesco, contra o riso queer, camp, mas acho que, ali, ele se torna algo isolado, não se conecta com o todo, não assume uma função dramática essencial. Tu me entendes?
Bruno Siqueira
Passo a compreender melhor minha inquietação. É ISSO. Enquanto humor queer, camp, o chiste nos diverte, mas é uma diversão pouco conectada com a dramaturgia. Concordo com o que você falou: se esse humor problematizasse os acontecimentos cênicos, ganharia força dramática maior. Também concordo que o jogo dos atores tende a crescer noutras temporadas.
Rodrigo Dourado
Ainda sobre a encenação, mesmo levando em conta a mão consistente e experiente de Marcondes, eu me arrisco humildemente a fazer algumas observações:
- Acho a opção pela mudança de figurino de Heleno e sua relação com o objeto livro, quando ele se assume autor e se distancia temporal e narrativamente dos episódios, uma opção redundante. Sabemos da transposição do romance para a cena, sabemos da origem do autor como homem da literatura, sabemos que aquela é uma forma de manter o vínculo entre o homem das letras e homem da cena. No entanto, não me parece necessário retomar essa imagem sempre, sobretudo porque ela dilata o tempo de cena e redunda. De maneira que o distanciamento não precisa daquelas convenções, ele pode ser mais ágil;
- Há também uma descida do coro para a plateia que não se realiza cenicamente: é rápida e o jogo não se instaura de fato;
- Sobre o universo musical, eu penso que é um ótimo trabalho de composição, mas, como a música não assume uma função dramático-narrativa, não faz os eventos avançarem, não conta a história, é preciso aprofundar mais seu aspecto “afetivo”, mergulhar mais na criação dos climas e atmosferas que a música pode promover, encontrar a espetacularidade própria de cada uma.
Um aspecto que interessa bastante, ainda na construção dramatúrgica, é a invocação de nossos mortos. Carmem Miranda, Lorca, os mortos da ditadura militar, os mortos do teatro (lembrados na canção final). Essa genealogia dos mortos é algo bastante forte na produção artística de temática homo. O José Esteban Muñoz, um pesquisador norte-americano, dizia que a história gay poderia ser lida como um livro-funerário, pois a perda é um sentimento permanente para a comunidade LGBT: é um sentimento que constrói comunidades. E nossos mortos não são somente aqueles assumidamente homossexuais ou sexo-dissidentes, mas todas essas figuras deslocadas, que tiveram as vidas interrompidas simplesmente por fugir às normas. E que acolhemos como nossa família.
Bruno Siqueira
O Coletivo Angu tem feito uma trajetória respeitável. Em Ossos, o grupo se arrisca, porque fazer arte, bem sabemos, é lidar constantemente com os riscos. Essa coragem e vulnerabilidade são, sem dúvida, qualidades louváveis do grupo. A seriedade com que todos os artistas encaram seu trabalho, somada às questões atuais e contemporâneas que nos envolvem enquanto cultura(s), nos incitam a nos debruçar sobre a criação e interagir com ela. Fomos assistir duas vezes, não é isso? Voltar ao trabalho e apreciá-lo novamente só foi possível porque se trata de um espetáculo e de artistas que nos têm muito a dizer. As questões que trago como problematização vão na direção de poder dar algum tipo de contribuição, caso venham, por acaso, a significar algo para o grupo.
Rodrigo Dourado
Penso como você: que Ossos é um trabalho inquietante, por fugir ao padrão do que vimos do Coletivo Angu anteriormente; pela aventura de Marcelino no terreno da dramaturgia; pela abordagem temática necessária; pelas investigação permanente de Marcondes, como encenador, em torno das formas queer; pela miríade de intertextos que ele manipula. E como espectador-crítico eu reforço que é uma cena que me inquieta, que em sua estranheza e no seu “angu” me faz buscar muitas respostas e que me move, o que é essencial para o teatro.