Crítica – Sistema 25 | Um olhar poético sobre anjos caídos
Imagens – Rogério Alves | Sistema 25
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor Adjunto do curso de Licenciatura em Teatro (UFPE)
“Eram vinte e cinco homens empilhados, espremidos, esmagados de corpo e alma, num cubículo imundo onde mal caberiam oito pessoas. (…) Eram vinte e cinco homens colocados no imundo cubículo para morrer. Para morrer aos poucos. Para morrer de forma que parecesse natural. (…) Para morrer sem estremecer as relações internacionais dos cidadãos contribuintes”. Esse texto, que faz parte do conto Em Osasco, de Plínio Marcos, desencadeou a criação do espetáculo Sistema 25, com direção de José Manoel Sobrinho.
As condições em que foi gestado o trabalho já garantem seu mérito. A ideia de fazer Sistema 25 surgiu como uma forma de resistência a uma política cultural pouco eficiente e operante no estado pernambucano (para não falarmos do próprio país). Com a falta de incentivo dos órgãos estatais, e sem recorrer à iniciativa privada, José Manoel, quixotescamente, convidou vinte e cinco atores para encarar o desafio de montar um espetáculo, não lhes prometendo retorno financeiro algum em troca dos ensaios e do trabalho geral. Eles toparam a proposta: vinte e cinco atores foram seu Sancho Pança. Creio eu que, em parte, por gostarem de José Manoel; em parte, também, porque assumiram o discurso de resistência e resolveram fazer o que mais amam, TEATRO, apesar de.
Vinte e cinco atores das mais diversas gerações e procedências. Vinte e cinco atores falando para vinte e cinco espectadores. Sob a batuta de José Manoel, vinte e cinco atores se doaram ao projeto, criando a dramaturgia do espetáculo num processo colaborativo. Plínio Marcos foi o ponto de partida, mas está presente e forte no tecido dramatúrgico do Sistema 25. Assisti a esses vinte e cinco atores representando vinte e cinco detentos num espaço diminuto do Teatro Marco Camarotti (o que corresponde à metade do espaço desse teatro). Um espaço que evocava uma cela de prisão, um cubículo. Vinte e cinco anjos caídos (o conto que deu início ao processo se encontra no livro de Plínio Marcos, Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos).
Todo anjo é terrível, já dizia Rilke. Para o poeta alemão, interessava pensar e escrever sobre o mistério dos homens e seu destino num mundo que está desaparecendo. Em Plínio Marcos, os detentos marginalizados são anjos caídos. Assim como em Rilke, esses anjos não são puros nem idealizados. Há na relação entre o anjo e o homem uma tensão ameaçadora, que ultrapassa a esfera do visível, uma vez que, transitando entre o plano real e o transcendente, os anjos nos fazem lembrar, com frequência, de nossa efemeridade, de nossas limitações, de nossos constantes exílios. Os infratores em Plínio Marcos caíram porque foram detidos (há no discurso da marginalidade brasileira a associação entre cair e ser preso), mas também porque foram reduzidos à condição mais angustiante da existência – a solidão. Marginais, infratores, mas humanos, demasiadamente humanos, com suas carências, suas dores, suas afetividades e suas perversidades. Todo anjo é terrível…
Assim sendo, em Sistema 25, do burburinho e do emaranhado dos corpos presos num cubículo, vão se delineando algumas personagens de forte expressão e poesia, como o velho interpretado por Normando Roberto; a travesti interpretada por Emanuel David D’Lúcard; o traficante portenho interpretado por Robson Queiroz; o pastor interpretado por Neemias Dinarte; o “doidinho” interpretado por Breno Fittipaldi; o preso interpretado por Samuel Bennaton. Personagens que fazem valer vivamente a metáfora de “anjos caídos”, que sensibilizam os espectadores mais avessos à realidade violenta do sistema carcerário. Esses homens estão num cubículo, mas suas personagens encontram-se espalhadas em diversos presídios brasileiros. O olhar poético desses artistas nos permite ver que existe algo em comum entre nós e os marginais por eles representados: a condição humana miserável.
Para um melhor rendimento da poeticidade da cena, há dois pontos que poderiam ser objeto de maior investigação, a meu ver. Primeiramente, a organização dos corpos no espaço. Salvo um e outro momento em que a encenação encontra soluções esteticamente satisfatórias, em muitas passagens acaba por tumultuar a cena, perturbando sua legibilidade e depondo contra a poeticidade. Não que o tumulto não seja objeto da criação estética, mas me refiro a um aglomerado que gera confusão do olhar e do sistema semiótico da cena. Em segundo lugar – no que para mim recairia o foco maior da atenção –, os jogos dos atores: tanto o da coletividade, que corre o risco de cair no lugar comum; quanto daqueles entre dois ou três atores, em particular. A propósito desse último ponto, imagino que é do caos que emergem as constelações poéticas. Essas constelações são focos de luz que fazem encantar. Ou seja, é no jogo de dois ou três atores que podemos chegar ao conceito-chave do espetáculo: o do anjo caído, dos sujeitos esmagados em sua mais cruel condição humana, na solidão. Se o jogo entre os intérpretes não consegue fazer iluminar, o espectador pode deixar de se identificar com as personagens.
Quando pensamos que, nesta atual conjuntura política, nossos parlamentares, em vez de encontrarem soluções para suplantar o sistema penitenciário brasileiro em vigor – desumano e falido –, estão preocupados em criar novas leis para aumentar ainda mais a população carcerária, num ódio visceral, vemos a atualidade do tema em Sistema 25. Entrar, como espectador, num cubículo onde estão sendo representados vinte e cinco seres humanos em situação subumana foi provocador, a fim de que possamos deixar de lado o ódio e refletir sobre novas regras de convivência numa civilização tão caótica como a nossa.